segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Deus e a dor


A humanidade de quando em vez caminha com a tragédia. Muitas vezes um terremoto. Um tsunami. Um tornado. Outras vezes o próprio homem se destrói. Londres foi destruído duas vezes: por um grande incêndio provocado por um padeiro. E na II Grande Guerra, quando foi bombardeada durante 40 noites. A mesma cidade foi acometida por uma epidemia da chamada peste negra, quando a cada dia morria 8 mil londrinos. No grande Terremoto que destruiu Lisboa em 1755, todos correram para os barcos ancorados na praia. Surgiu um tsunami. Todos voltaram para terra e a cidade se incinerava em um incêndio dantesco. Era 1 de novembro, dia de todos os santos. Em plena missa o celebrante ao proferir:”memento Domine, famulorum famularunque tuarum. Lembra-te Senhor de teus fieis, uma laje desabou sobre o próprio padre. Voltaire perguntou em meio aquela catástrofe: “onde esta Deus?”. Na  tragédia de Santa Maria da Boca do Monte, RS, alguém ira fazer a mesma pergunta. Deus deu ao homem o livre arbítrio. O direito de se decidir por si. Deus não patrocinaria a morte de tantos jovens mergulhados em sonhos e esperanças. A ilicitude ética legalizada neste Brasil, é responsável por esta tragédia. Deus está na solidariedade. Deus está na dor compartilhada. Deus está nas lagrimas divididas. Deus está nos abraços de enternecimento. De compaixão. A morte nada salva. O que salva e a vida. Não foi a morte de Jesus, a experiência consistente de Deus, que nos salvou. Quem nos salvou foi a ressurreição. Foi a pedra tombada do sepulcro que deixou derramar-se a vida sobre nós. O antídoto da morte é o nascimento. Nesta dor que não tem fim, a presença de Deus se faz nos gestos humanitários. A dor que se divide na imensidão do mundo. Quando fui medico residente em Porto Alegre, a Universidade de Santa Maria era referencia nacional. Foi a primeira Universidade no interior do Brasil. Nos anos setenta, somente a USP e Santa Maria dispunham de microscópio eletrônico. Cidade de gente pacata, educada e companheira. Esta triste maneira de morrer, lembra Manoel Bandeira: eu suspiro por ar. Jovens abatidos em pleno voo quando se preparavam para trazer mais esperanças e mais vidas para tantos. Como águias que alçam voos para o céu e são mortalmente feridos de morte. Sonhos e esperança que se transformaram em negras fumaças de dor.

Fortaleza, janeiro de 2013

Jose mariabonfim de morais- medico cardiologista

 

O Padre


              Havia desistido de perscrutar a vida do velho padre, por conselhos de cautelosos amigos que têm por bem resguardar os valores eclesiais e também pela persuasão, agudamente sábia, de um ex-clerigo que me convenceu a empregar o dom da prudência. Acatei e me arrependi desta obsequiosa sensatez, pois o fantasma do sacerdote ficou martelando na minha mente, forçando a maçaneta como a querer provocar uma nova visita. Apoiei-me na prudência de Dostoievski, um escritor russo que diz ser, o seu mal, uma doença chamada consciência e recomenda: para se conhecer uma pessoa é preciso ir-se chegando devagar, com cautela, evitando equívocos e preconceitos, coisas bem difíceis de corrigir e de se reparar. Já tinha suficiente dados sobre as ações e impressões que o reverendo deixara assinalados na linha do tempo, e a consciência impeliu-me a segui em frente. Prudens in loquendo est tardus! (Bom saber é o calar, até ser tempo de falar!)
               Achei por bem começar esse relato pelo mês de fevereiro de 1937, devido a intervenção de outro digníssimo padre em nossas vidas, o Padre Cícero de Juazeiro.  Foi um sacerdote cuja fama de milagreiro só aumentava desde o dia de sua morte, em 1934, aos 90 anos. O Padim, com uns túrgidos olhos azuis, sonhara com Jesus Cristo no exato momento da última ceia e, enquanto Ele celebrava para os apóstolos, uma multidão de retirantes invadem o recinto interrompendo, obrigando-O a se pronunciar pela decepção com os homens, disse estar disposto a fazer um último sacrifício para salvar o mundo. Porém, se a humanidade não se arrependessem depressa, Ele acabaria com tudo de uma vez. Naquele momento, apontou para os pobres nordestinos e, voltando-se inesperadamente para Cícero, ordenou: - E você, Padre, tome conta deles! Eram sonhos determinantes, os sonhos daquela época. Por uma sonhosa prescrição,  Padim Cícero ganhou uma enorme autoridade.

                Uma das beatas da Igreja de Crateús, além de oniróloga, era devota incondicional de Padre Cícero. Decifrava sem medo de errar os sonhos das colegas. Para uma, que sonhara com o Pe. Juvêncio celebrando uma missa para ela,  a religiosa advinha interpretou como uma provável felicidade no lar, se ela deixasse de bajulações com o dignissimo padre. À outra que vivia sonhando com uma pessoa pegando uma caça, disse: você conseguirá um homem valente e forte. Dito e feito! A amiga logo casa-se com um caçador, um velho amigo de infância.

                Naquela noite, de um invernoso fevereiro, foi ela mesma que sonhou: O Padre Cícero lhe chega ao pé do ouvido e confessa baixinho: “Cratéus está com seus dias contados! Fujam depressa, pois tudo será destruido pelas águas caudalosas e barrentas do poti!”  Acorda assombrada e alardeia o mundo. Depois de uma madrugada chuvosa e o rio avolumando-se,  as colegas se dispõem a espalhar a notícia pela cidade inteira. O desespero já toma conta de muitos e alguém ainda nota uma fenda na estátua do Cristo Redentor. Outro, com memória de prontidão,  recorda a profecia do capichunho Frei Vidal da Penha a dizer: o patamar da Igreja vai ser uma cama de monstros marinhos e só escapará quem ficar à 8 léguas, rio acima ou arribar de vez com a família toda. O senhor João Batista de Sá fez questão de não deixar nem saudades!  Uma pandegas foi lentamente se incorporando, tomando feições de incontido alvoroço e necessitou da intervenção, na missa noturna, do agil e inteligente Padre Juvêncio:

                - Meus queridos amigos e amigas, crateuenses fiéis, ouçam-me bem! Comecou o sermão com uma voz intensa, rouca que saía de um rosto com feições helénicas, num perfil alto e garboso que arrebatava os ouvintes. - Sonhar é próprio do ser humano! Sem sonhos a vida não tem brilho e às vezes, às vezes... Quero que me entendam direitinho, por isso estou repitindo, somente às vezes, estes sonhos são mensagens divinas!  E continua com uma voz firme: - Saibam que não é dia, nem hora de divinais mensagens de sonhos em nosso meio, mesmo porque o Pe. Cícero ainda tem muito que fazer em Juazeiro. Acalmem-se! Tirem esse medo de seus corações! O Rio Poti terá uma cheia normal e escoará tranquilo para o mar! Rezemos para que as nossas safras não sejam prejudicadas e tenhamos boas colheitas.

                Foi alívio geral, no pavor e nas apreensões mentais dos fiéis, ali presentes.

                A religiosa sonhadora se dirige à fila da comunhão e quando o Padre deposita a hóstia sagrada na sedenta lingua, alguém lamenta que não tenha escorrido uma flepinha de sangue pela boca da beata, pois teria sido a nossa redenção.

                A safra daquele ano foi uma benesses dos céus, e há muto se acabara o hábito de deixar as igrejas inacabadas para não pagar impostos ao Governo Português, o dinheiro arrecadado deu para que o vigário construísse  a torre do lado esquerdo da monumental Igreja Matriz, colocando um pequeno sino de cobre e ainda empossando um segundo galo altaneiro, que mais tarde receberia o nome de Macedo, para fazer companhia ao galo Bonfim.

                A máxima em latim que diz: Devemos nos calar até um momento propício, havia deixado de molho, em mim, irrequietas palavras que teimavam em falar. Da pesquisa de campo para o artigo Os Distritos do Município no livro Crateús 100 Anos da Academia de Letras, percebi, admirado,  como o Padre Juvêncio de Andrade ainda vive na memória do povo.

                O distrito dos Tucuns, repleto de palmeiras com uns frutinhos doces, era o local preferido para o descanso do reverendo nos fins de semana. Uma tropa de adestrados cavalos subia a ladeira íngreme, numa perigosa trilha por entre rochas, até o clima aprazível da serra, onde uma casinha o aguardava. Afirmava que nos Tucuns tinha tudo que gostava, gente sincera e humilde,  caldo-de-cana, a farinha, o manzape, a água mineral e o ar puro da serra. Em Crateús, dizia-se:  quando o Padre sobe a ladeira, até do mundo ele esquece!

                Outro Distrito predileto era o disperso Irapuá. Sempre ia celebrar na Capelinha do Senhor Bom Jesus, que é mais antiga que a Catedral da Matriz. Uma casarão bem montado tembém o acolhia, isso quando não dormia num reservado da própria igreja, atrás do Altar. O povo, em bisbilhotice indiscreta, encostava os ouvidos na parede por trás da igreja, para ouvir os gemidos das orações entre os rangeres dos armadores das redes do padre e das cantoras do coro que ele levava para lá. Num botequin, que quebra a monotonia do abandonado agreste, alguém nota uma figura depauperada se arrastando pela estrada e afirma: - Lá vem, novamente,  o filho do Padre!  Aquele ali...  Nem foice nem terço, é só cachaça!

                Os Torres, com olhos azuis dos sulistas que fundaram o lugar, conjecturam o que teria sido do pobre moço, se não tivesse sido desamparado a esmolar pinga pelas veredas da caatinga e que, um dia seria encontrado morto nas coxias da vida. Faz-me recordar o Padre Martiniano de Alencar, que montou uma casa bem afastada de Fortaleza para uma prima, da qual  nasceu José de alencar. Teve que abandonar a batina e casar-se, para adquirir aceitação na sociedade e poder politicar.  O amigo memorialista Ferreirinha, no Livro Fatos e Causas do Passado, afirma: “O velho vigário teve grandes pecados na sua vida, mas os seus méritos ultrapassaram tudo aquilo”.

                A política sempre ferveu entre o vinho e a hóstia, turbilhando a vida dos padres e ali, no Irapuá, o Pe. Juvêncio conheceu a história da morte brutal do Pe. Inácio, por rixas políticas.

                Assim mesmo, atuou politicamente fervoroso, sendo eleito prefeito pelo Partido Conservador(os Marretas) mas administrou a cidade com os oposicionistas, os Rabelistas.

                Aproveitava até a pregação do evangelho na igreja, dizia  que PSD significava Partido sem Deus. Um dos afiliados ao socialismo, Abdoral Tataia, que sempre sentava à esquerda do altar, se remexia todo, com receio por estar na missa, mas protestava alto: - Isso não é verdade! - Não é verdade!   E o Padre retrucava: - Ouviram? Pisei nos calos de um!

                O Sacerdote-político, como gestor, pôs em prática boas obras e numa época sem rendimentos, pois o povo não pagava impostos, coisas que as atuais administrações se encaracolam em ardilezas políticas, projetos dificultosos, tramas sem fim com dinheiro suficiente e nunca realizam.

                  A cadeia Pública ficaca no centro da cidade, bem no início da Rua Santos Dumont, no edifício da atual prefeitura. Era um prédio de aspecto desagradável, feio e sujo, tinha uma calçada de meio metro de altura com tijolos desgastados e janelas com grossas e horrorosas grades de ferro.  Quem por ali passasse logo via os detentos trabalhando, uns cortando couro, outros batendo taxinha para fazer chinelos e diversos apetrechos. O prefeito Pe. Juvêncio construiu o atual Quartel da Polícia e um higiênico Matadouro Público. Inaugura, também, um monumento ao Cristo Rei, na Praça da Matriz e uma capela no cemitério São Miguel.

                A rigidez política e a austeridade de caráter o fizeram se inimizar com muita gente. Para um comerciante muito popular, Hermenegildo Augusto, um descendente dos bravos do pé-da-serra dos cocos, sempre a socorrer a pobreza, dentista prático e proprietário da Drogaria Popular, a vida lhe escasseava. A família chama o Padre Juvêncio para lhe confessar. O sacerdote se aproxima e o moribundo, de súbito, reage: - Retirem daqui esse homem, deixem que eu morra em paz! Não pode esquecer as mágoas que guardava do velho adversário político, uma consequência hereditária da impetuosidade tradicional dos velhos guerreiros chamados Mourões, que fizeram fama em Crateús.

                Dia 9 de outubro de 1930, pára um trem na Estação de Crateús e desce o célebre Tenente Aristide Rosal, seguido por inúmeros soldados revolucionários armados com fuzil e mosquetão, chefiado pelo Cel. Otacílio Mota para depor o Prefeito Padre Juvêncio de Andrade.

                Um padre que nascera em Santana de Acaraú, e que floresceu por aqui, prestando assistência eclesiástica a diversas gerações de crateuenses, foi falecer ao lado da família, em julho de 1947, em Fortaleza.

                 Cumpriu-se sua última vontade, quando o predileto coroinha e pupilo, o Monsenhor Bonfim, pessoalmente se encarregou do translado dos seus  restos mortais e o depositou numa lápide na cripta da Igreja da matriz, marcando o fim de seus brandos dias, no clima suave dos Tucuns, e o término dos instantes agitados na tumultuosa política crateuense, e me fez recordar que, nos momentos calmos  ou de repentinas tempestades, devemos sempre valorizar os dias de fé, os dias de luz, não importando se o tempo está nublado ou se é  dia de radiante sol!   

 Raimundo Candido