Havia
desistido de perscrutar a vida do velho padre, por conselhos de cautelosos
amigos que têm por bem resguardar os valores eclesiais e também pela persuasão,
agudamente sábia, de um ex-clerigo que me convenceu a empregar o dom da
prudência. Acatei e me arrependi desta obsequiosa sensatez, pois o fantasma do
sacerdote ficou martelando na minha mente, forçando a maçaneta como a querer
provocar uma nova visita. Apoiei-me na prudência de Dostoievski, um escritor
russo que diz ser, o seu mal, uma doença chamada consciência e recomenda: para
se conhecer uma pessoa é preciso ir-se chegando devagar, com cautela, evitando
equívocos e preconceitos, coisas bem difíceis de corrigir e de se reparar. Já
tinha suficiente dados sobre as ações e impressões que o reverendo deixara assinalados
na linha do tempo, e a consciência impeliu-me a segui em frente. Prudens in loquendo est tardus! (Bom saber é o calar, até ser tempo de falar!)
Achei
por bem começar esse relato pelo mês de fevereiro de 1937, devido a intervenção
de outro digníssimo padre em nossas vidas, o Padre Cícero de Juazeiro. Foi um sacerdote cuja fama de milagreiro só
aumentava desde o dia de sua morte, em 1934, aos 90 anos. O Padim, com uns
túrgidos olhos azuis, sonhara com Jesus Cristo no exato momento da última ceia
e, enquanto Ele celebrava para os apóstolos, uma multidão de retirantes invadem
o recinto interrompendo, obrigando-O a se pronunciar pela decepção com os
homens, disse estar disposto a fazer
um último sacrifício para salvar o mundo. Porém, se a humanidade não se
arrependessem depressa, Ele acabaria com tudo de uma vez. Naquele momento,
apontou para os pobres nordestinos e, voltando-se inesperadamente para Cícero,
ordenou: - E você, Padre, tome conta
deles! Eram sonhos determinantes, os sonhos daquela época. Por uma
sonhosa prescrição, Padim Cícero ganhou
uma enorme autoridade.
Uma das beatas da Igreja de
Crateús, além de oniróloga, era devota incondicional de Padre Cícero. Decifrava
sem medo de errar os sonhos das colegas. Para uma, que sonhara com o Pe. Juvêncio
celebrando uma missa para ela, a
religiosa advinha interpretou como uma provável felicidade no lar, se ela
deixasse de bajulações com o dignissimo padre. À outra que vivia sonhando com
uma pessoa pegando uma caça, disse: você conseguirá um homem valente e forte.
Dito e feito! A amiga logo casa-se com um caçador, um velho amigo de infância.
Naquela noite, de um invernoso
fevereiro, foi ela mesma que sonhou: O Padre Cícero lhe chega ao pé do ouvido e
confessa baixinho: “Cratéus está com seus dias contados! Fujam depressa, pois
tudo será destruido pelas águas caudalosas e barrentas do poti!” Acorda assombrada e alardeia o mundo. Depois
de uma madrugada chuvosa e o rio avolumando-se,
as colegas se dispõem a espalhar a notícia pela cidade inteira. O
desespero já toma conta de muitos e alguém ainda nota uma fenda na estátua do
Cristo Redentor. Outro, com memória de prontidão, recorda a profecia do capichunho Frei Vidal
da Penha a dizer: o patamar da Igreja vai ser uma cama de monstros marinhos e
só escapará quem ficar à 8 léguas, rio acima ou arribar de vez com a família
toda. O senhor João Batista de Sá fez questão de não deixar nem saudades! Uma pandegas foi lentamente se incorporando,
tomando feições de incontido alvoroço e necessitou da intervenção, na missa
noturna, do agil e inteligente Padre Juvêncio:
- Meus queridos amigos e amigas,
crateuenses fiéis, ouçam-me bem! Comecou o sermão com uma voz intensa, rouca
que saía de um rosto com feições helénicas, num perfil alto e garboso que
arrebatava os ouvintes. - Sonhar é próprio do ser humano! Sem sonhos a vida não
tem brilho e às vezes, às vezes... Quero que me entendam direitinho, por isso estou
repitindo, somente às vezes, estes sonhos são mensagens divinas! E continua com uma voz firme: - Saibam que
não é dia, nem hora de divinais mensagens de sonhos em nosso meio, mesmo porque
o Pe. Cícero ainda tem muito que fazer em Juazeiro. Acalmem-se! Tirem esse medo
de seus corações! O Rio Poti terá uma cheia normal e escoará tranquilo para o
mar! Rezemos para que as nossas safras não sejam prejudicadas e tenhamos boas
colheitas.
Foi alívio geral, no pavor e nas
apreensões mentais dos fiéis, ali presentes.
A religiosa sonhadora se dirige à
fila da comunhão e quando o Padre deposita a hóstia sagrada na sedenta lingua,
alguém lamenta que não tenha escorrido uma flepinha de sangue pela boca da
beata, pois teria sido a nossa redenção.
A safra daquele ano foi uma
benesses dos céus, e há muto se acabara o hábito de deixar as igrejas
inacabadas para não pagar impostos ao Governo Português, o dinheiro arrecadado
deu para que o vigário construísse a
torre do lado esquerdo da monumental Igreja Matriz, colocando um pequeno sino
de cobre e ainda empossando um segundo galo altaneiro, que mais tarde receberia
o nome de Macedo, para fazer companhia ao galo Bonfim.
A máxima em latim que diz: Devemos nos calar até um momento propício,
havia deixado de molho, em mim, irrequietas palavras que teimavam em falar. Da
pesquisa de campo para o artigo Os Distritos
do Município no livro Crateús 100
Anos da Academia de Letras, percebi, admirado, como o Padre Juvêncio de Andrade ainda vive
na memória do povo.
O distrito dos Tucuns, repleto
de palmeiras com uns frutinhos doces, era o local preferido para o descanso do
reverendo nos fins de semana. Uma tropa de adestrados cavalos subia a ladeira íngreme,
numa perigosa trilha por entre rochas, até o clima aprazível da serra, onde uma
casinha o aguardava. Afirmava que nos Tucuns tinha tudo que gostava, gente
sincera e humilde, caldo-de-cana, a
farinha, o manzape, a água mineral e o ar puro da serra. Em Crateús,
dizia-se: quando o Padre sobe a ladeira,
até do mundo ele esquece!
Outro Distrito predileto era o
disperso Irapuá. Sempre ia celebrar na Capelinha do Senhor Bom Jesus, que é
mais antiga que a Catedral da Matriz. Uma casarão bem montado tembém o acolhia,
isso quando não dormia num reservado da própria igreja, atrás do Altar. O povo,
em bisbilhotice indiscreta, encostava os ouvidos na parede por trás da igreja,
para ouvir os gemidos das orações entre os rangeres dos armadores das redes do
padre e das cantoras do coro que ele levava para lá. Num botequin, que quebra
a monotonia do abandonado agreste, alguém nota uma figura depauperada se
arrastando pela estrada e afirma: - Lá vem, novamente, o filho do Padre! Aquele ali...
Nem foice nem terço, é só cachaça!
Os Torres, com olhos azuis dos
sulistas que fundaram o lugar, conjecturam o que teria sido do pobre moço, se
não tivesse sido desamparado a esmolar pinga pelas veredas da caatinga e que, um
dia seria encontrado morto nas coxias da vida. Faz-me recordar o Padre
Martiniano de Alencar, que montou uma casa bem afastada de Fortaleza para uma
prima, da qual nasceu José de alencar.
Teve que abandonar a batina e casar-se, para adquirir aceitação na sociedade e
poder politicar. O amigo memorialista
Ferreirinha, no Livro Fatos e Causas do Passado, afirma: “O velho vigário teve
grandes pecados na sua vida, mas os seus méritos ultrapassaram tudo aquilo”.
A política sempre ferveu entre o
vinho e a hóstia, turbilhando a vida dos padres e ali, no Irapuá, o Pe.
Juvêncio conheceu a história da morte brutal do Pe. Inácio, por rixas
políticas.
Assim mesmo, atuou politicamente
fervoroso, sendo eleito prefeito pelo Partido Conservador(os Marretas) mas
administrou a cidade com os oposicionistas, os Rabelistas.
Aproveitava até a pregação do
evangelho na igreja, dizia que PSD
significava Partido sem Deus. Um dos afiliados ao socialismo, Abdoral Tataia,
que sempre sentava à esquerda do altar, se remexia todo, com receio por estar
na missa, mas protestava alto: - Isso não é verdade! - Não é verdade! E o
Padre retrucava: - Ouviram? Pisei nos calos de um!
O Sacerdote-político, como
gestor, pôs em prática boas obras e numa época sem rendimentos, pois o povo não
pagava impostos, coisas que as atuais administrações se encaracolam em
ardilezas políticas, projetos dificultosos, tramas sem fim com dinheiro
suficiente e nunca realizam.
A cadeia Pública ficaca no centro da cidade, bem no início da Rua
Santos Dumont, no edifício da atual prefeitura. Era um prédio de aspecto
desagradável, feio e sujo, tinha uma calçada de meio metro de altura com tijolos
desgastados e janelas com grossas e horrorosas grades de ferro. Quem por ali passasse logo via os detentos
trabalhando, uns cortando couro, outros batendo taxinha para fazer chinelos e diversos
apetrechos. O prefeito Pe. Juvêncio construiu o atual Quartel da Polícia e um higiênico
Matadouro Público. Inaugura, também, um monumento ao Cristo Rei, na Praça da
Matriz e uma capela no cemitério São Miguel.
A
rigidez política e a austeridade de caráter o fizeram se inimizar com muita
gente. Para um comerciante muito popular, Hermenegildo Augusto, um descendente
dos bravos do pé-da-serra dos cocos, sempre a socorrer a pobreza, dentista
prático e proprietário da Drogaria Popular, a vida lhe escasseava. A família
chama o Padre Juvêncio para lhe confessar. O sacerdote se aproxima e o
moribundo, de súbito, reage: - Retirem daqui esse homem, deixem que eu morra em
paz! Não pode esquecer as mágoas que guardava do velho adversário político, uma
consequência hereditária da impetuosidade tradicional dos velhos guerreiros
chamados Mourões, que fizeram fama em Crateús.
Dia
9 de outubro de 1930, pára um trem na Estação de Crateús e desce o célebre Tenente
Aristide Rosal, seguido por inúmeros soldados revolucionários armados com fuzil
e mosquetão, chefiado pelo Cel. Otacílio Mota para depor o Prefeito Padre
Juvêncio de Andrade.
Um
padre que nascera em Santana de Acaraú, e que floresceu por aqui, prestando
assistência eclesiástica a diversas gerações de crateuenses, foi falecer ao
lado da família, em julho de 1947, em Fortaleza.
Cumpriu-se sua última vontade, quando o predileto
coroinha e pupilo, o Monsenhor Bonfim, pessoalmente se encarregou do translado
dos seus restos mortais e o depositou numa
lápide na cripta da Igreja da matriz, marcando o fim de seus brandos dias, no
clima suave dos Tucuns, e o término dos instantes agitados na tumultuosa
política crateuense, e me fez recordar que, nos momentos calmos ou de repentinas tempestades, devemos sempre
valorizar os dias de fé, os dias de luz, não importando se o tempo está nublado
ou se é dia de radiante sol!
Raimundo Candido