Um cidadão destes que gostam
de provocar o que está quieto com indagações inusitadas, interpelou-me: Professor,
diga-me, como é que nasce um poeta? Passado o atordoamento que a insólita
pergunta me causou, tentei responder: - Bem, meu amigo, depois de nove meses de
gestação surge um ser quase que normal, como todos nós, porém dotado de
estranhas mutações, no íntimo da alma: eles possuem olhos que ouvem, ouvidos
que enxergam, sofrem de uma eterna febre no enternecer e, contrariando a ordem
natural das coisas, crescem, se desenvolvem e nunca morrem! O cidadão ficou
boquiaberto com minha afirmativa, mas respondi convicto, pois estava pautado na
vida e na obra do primeiro vate crateuense: O grande poeta José Coriolano de
Souza Lima.
Na fazenda Boa Vista, propriedade
do Sr. Gonçalo Correia Lima, descendente dos aguerridos Mourões, corria o ano
de 1851 e a existência era uma eterna lida com o gado nas mãos calejadas pela
enxada e no espanto de ver a Caatinga, ora abatida num cinza semimorto, ora
pintada de uma verdejante vida. Dona Ana Bezerra, católica fervorosa, em época
de quaresma, vai à Vila Príncipe Imperial para as desobrigas, quando os padres
vinham do São Raimundo Nonato, celebrando pelos sertões abandonados. Desta vez
o sacerdote era seu filho primogênito, o Cônego Sebastião Ribeiro Lima, que,
ainda criança, acompanhara os padres para seguir a Cristo. O coração de mãe estava,
mais uma vez, apertado, pois o filho caçula, o José Coriolano, acompanharia o
irmão padre para estudar na cidade que um dia fora a fazenda de Domingos Afonso
Mafrense, terras doadas aos jesuítas, após a morte do famoso bandeirante
matador de índios. O Jovem Coriolano, de 16 anos, já demonstrara uma
inteligência extraordinária, lia todos os livros que o irmão padre lhe trazia: os
poetas portugueses Luiz de Camões, Gil Vicente, Almeida Garret, inclusive os
versos picantes de Manoel Maria Barbosa du Bocage.
Se no rude sertão da época existia
uma criança com olhos que ouviam, ouvidos que enxergavam, a padecer febres no
corpo raquítico e asmático e ardência poética na alma causando admiração no
sertanejo rude, é logico que tinha que bater asas e arribar seguindo a trilha
do irmão mais velho, numa longa e penosa viagem de centenas de quilômetros, em
lombos de animais.
São Raimundo Nonato também se
mostrou ínfimo aos sonhos do menino que desenvolvia um estro literário ao sabor
dos ventos e, saudoso, cantava o Rio Poti, as aves, a mata e o homem da terra e
os pintava em versos telúricos. E lá, entre tantos, escreve mudanças, um dos
mais belos poemas da nossa literatura: “... Já balouça o vento as verdes copas
/ As flores não dispersam mais perfumes! / Quem uma tal mudança produzira, / Eu
bem saber quisera! // Mas, ah! nada mudou-se – eu só me iludo! / Meus olhos,
sim, mudaram-se de tristes: / Tudo existe no estado primitivo: / Eu somente
mudei!” E segue com seus protetores, os bonachões padres, rumo a ilha de São
Luís do Maranhão.
Na ilha continua compondo
belos versos e a crescer espiritual e literariamente. Poeta romântico, modernista,
social, abolicionista e a cantar a natureza e a Deus de forma magistral. E da saudade da amada, Cisalpina, a musa que lhe
fora prometido como esposa quando ainda criança, brotam os versos liricamente românticos:
“Eu careço de ti, ó minha amada, / Como da rotação carece a terra, / Como
d’alma carece o corpo imbele. / Como o
mundo – de tudo quanto encerra...”
As notícias do mundo
circulavam no vai e vem das batinas dos padres e de Olinda, mais precisamente do
Mosteiro de São Bento, em Pernambuco, chegam notícias da primeira Faculdade de
Direito a funcionar no Brasil. Alvissaras que atiçam, ainda mais, os sonhos do
poeta crateuense. Com a benevolência dos padres, Coriolano embarca num navio
rumo a Marim dos Caetés, numa viagem perigosíssima para a época, pois quem
embarcava ao mar nunca sabia se voltava. Mas Coriolano levava, além de uma
carta de recomendação, a coragem sertaneja e aquelas mutações determinantes com
que nascem os poetas. E Olinda mostrou-se arrebatadora aos olhos do primeiro
poeta crateuense. A inspiração jorrou como lavras de um vulcão, tornou-se um
incansável cultor das ciências e das letras.
Como Orfeu que, quando sua lira vibrava, os pássaros paravam de cantar e
até as árvores se curvavam para pegar seus versos dispersos aos ventos. Antes
da Faculdade de Direito de Olinda mudar-se para Recife, o poeta vai buscar sua
amada nos sertões de Cratheús e retorna para terminar o curso na afamada Escola
de Recife, onde estudaram nada mais nada menos que Tobias Barreto, Joaquim Nabuco,
Clovis Bevilaqua, Sílvio Romero, Capistrano de Abreu, Graça Aranha, Araripe Júnior e muitos outros intelectuais,
entre eles o poeta Castro Alves, e há quem afirme, após ler Coriolano, que nos
versos de Navio Negreiro estão embutidas as influências do poeta crateuense. Escreveu
centenas de poemas e inúmeras prosas ficaram impressos no jornal Ateneu
Pernambucano e nas revistas literárias: Revista Acadêmica, Ensaio Filosófico,
Arena e Iris. Coriolano foi senhor do seu tempo e é considerado, por muitos,
como o fundador da literatura piauiense.
Ainda em Olinda concebera um
épico magistral em homenagem a um touro da fazenda de seu pai: “No belo
Crateús, sertão formoso, / Obra sublime do Supremo Artista, / Num terreno
coberto de mimoso, / Está sita a Fazenda Boa Vista”; / Do Príncipe Imperial,
pravo e rixoso, / Vila do Piauí, seis léguas dista: / Aí, num massapê torrado e
brusco, / Nasceu o valoroso
“touro-fusco”.” Cantou também sua terra natal: “Lindo sertão meus amores, /
Cratheús, onde nasci, / Que saudade, que rigores, / Sofre meu peito por ti! /
São amargos dissabores / Que em funda taça bebi! / Que saudade, ó meus amores,
Cratheús, onde nasci!”
Terminado o Curso de Direito
volta ao Piauí, exercendo diversos cargos públicos em várias cidades: Deputado Provincial,
Promotor Público e até Juiz. Aos 40 anos, a asma crônica e uma congestão
cerebral o fazem voltar à Cratheús, terra onde nasceu e onde haveria de... Não,
morrer, não! Um poeta nunca morre! José Coriolano de Souza Lima encantou-se no
Sertão de Cratheús onde, um dia, reinou o Touro Fusco!
(Os poemas de José Coriolano
podem ser lidos no Blog: Impressões e Gemidos, postados por Ivens Mourão,
trineto do poeta. O escritor Saulo Barreto Lima, bisneto de Amâncio Correia
Lima, tem feito um belíssimo trabalho de resgate do nosso primeiro poeta,
poesia inéditas e suas prosas, e conseguiu publicar dois volumes de poemas do
Coriolano em São Luís do Maranhão.)
Raimundo Cândido