sábado, 20 de agosto de 2011

PARA INGÊS VER


Não é querer ser do contra, mas muitos hão de concordar que o Brasil é pródigo em leis que nunca saem do papel. Como se diria tempos atrás, é coisa pra inglês ver. O país inteiro, cada município deste imenso território, tem sua fatia de “boas intenções” ou bizarrices entupindo páginas e páginas dos códigos de condutas, leis orgânicas e similares que nunca, nunca mesmo!, viu sua aplicabilidade no campo do mundo real.

Quem de nós, um pouco mais antenado no mundo virtual da informação, não lembra, por exemplo, do prefeito que criou um “discoporto” na cidade de Barra do Garças (MT) esperando, é claro, a visita de ETs. Ora, todos sabem que eles andam por aí aos milhares. Então, nada mais prático do que criar um aeroporto para suas naves!

Sem ir muito longe, que tal você, transeunte desavisado, se meter a besta e tentar atravessar a rua na faixa de pedestre, sem olhar para os lados, pra ver se o carro que vem desembestado em sua direção pára? Vai encarar?

Pois bem. Este mês vence o prazo para as escolas de ensino infantil e fundamental colocarem em prática a educação musical em sua grade curricular, ou adequá-la às aulas de arte. A Lei 11.769, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino de música na educação básica, foi sancionada pelo presidente Lula em agosto de 2008 e estipulou um prazo de 3 anos para que os sistemas de ensinos se adaptassem à lei.

Voltemos aqui à expressão “para inglês ver”, que tem tudo a ver com o que tratamos aqui, mesmo 180 anos depois. Aconteceu em 1831. O Governo Regencial do Brasil, atendendo as pressões da Inglaterra, promulgou, naquele ano, uma lei proibindo o tráfego negreiro, declarando livres os escravos que chegassem aqui e punindo severamente os importadores. Tudo mentira, enganação, engodo! Assim foi cunhada a célebre e sempre atual frase “para inglês ver”.

Será a Lei da Educação Musical uma lei para inglês ver? Para não dizer que somos intransigentes, vamos esperar mais um pouquinho, até 2012 que seja. Quem viver, verá!
 
Lourival Veras
 
Karla disse...

É amigo, as coordenadoras pedagógicas e diretoras estão buscando feito loucas profissionais da área da música, só que não existe pessoas graduadas para ocuparem as vagas. Acho muito "bunito" o Estado fornece os instrumentos e cria a obrigatoriedade, mas não dá condições de formação à professores que sejam músicos, nem estimula músicos a serem professores. Uma prova disso é a greve estourada!
20 de agosto de 2011 11:10

Raimundo Candido disse:
Paulo Freire afirmava, do alto de sua montanhosa experiência vivencial, que: ensinar um povo a ver criticamente o mundo é sempre uma prática incômoda para os que fundam os seus poderes sobre a inocência dos explorados. Eu, de minha diminuta planície existencial,  completo que essa inocência, de que ele fala, ignorante e cega, vem sendo perpetuada perigosamente, quando se coloca um colírio como um tapa olho no rosto do nosso povo. Educação musical na grade curricular, escola inclusiva, aberta, democrática, solidária, laboratórios de física, química e informática, é muito “ bunito” como disse Karlinha, sem o devido profissional capacitado para as respectivas áreas e como sabemos, educação ( e cultura?) não é prioridade de nossos governos. Eu, cá de minha planície, que não dá para ver muito bem, farejo um aroma estranho daquele de probidade, moral e decoro. É realmente, amigo Lourival, para Inglês ver, só pra ver mesmo, porque o que eles viram e gostaram, há muito, já nos “levaram”.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011


Ocaso

Agorinha mesmo,
 quebrei as vitrines   
de picos inatingíveis.
Desfiz-me dos museus,
densos de transportar.
Como planta decídua,
que lenta,  desfolha-se
no disparado ímpeto
 de ser árido e só!
Raimundo Candido

Gigante olha pedra e vê pó



Ontem sai pra caminhar em direção a lugar algum, sem pretensão de encontrar amigos, de trocar palavras. Minhas pernas me levaram pelas ruas desta cidade empoeirada, toda em re-construção. Nas calçadas tropeço em tijolos, em montes de barro, entulhos, em homens sujos de cimento e cal.

Tenho certeza que sou deste lugar, que moro nestas casas antigas demolidas sem consideração, que pertenço a estes homens, a estas ruas estreitas e esburacadas onde viro o pé e machuco o tornozelo. Penso naqueles que nunca saberão ao certo como foram as casas e os prazeres destes trabalhadores.

Com o cérebro anuviado busco na lembrança as cores das árvores. Não lembro. Elas são tão poucas e inconvenientes que já estão se tornando invisíveis aos meus olhos. O que vejo com mais clareza são as garagens enfeitadas com flores e araras de gesso multicolorido.

No final do percurso, outra certeza. Ela sussurrou baixinho em meu ouvido, como quem segreda: “Menina, ‘gigante olha pedra e vê pó’".

Karla Gomes

quinta-feira, 18 de agosto de 2011


                                     Dr. Luiz, além de tudo, humano!
            Nunca achei decente começar uma narrativa parafraseando uma citação de efeito de algum outro escriba, principalmente quando nem se sabe que admirável índole a produziu. Louvo quem a gerou e alço-me de uma coragem, como a de quem furta, mas peço desculpas por descerrá-la, adulterada assim: “Se quiseres fazer alguma coisa para durar uma estação, plante flores.  Se quiseres fazer alguma coisa para durar uma vida, plante árvores. Se quiseres fazer alguma coisa para durar uma eternidade, se propale, você mesmo, como uma semente do bem, no coração do um povo e sua obra será ressoada nos ecos do tempo, como uma agradável recordação, num perfumado hálito benfazejo em todas as dobras ferruginosas das longínquas eras!”
            Na comunidade em que vivemos, não somos obrigados a ser médico, a ser professor, político, mestre de obra, ou exercer qualquer outra atividade vantajosa, mas somos obrigados, sim, a ser cidadão! E antes de nos tornamos cidadão, a natureza nos faz homens, e antes de sermos feitos homens, já éramos, como somos e seremos, sempre, espíritos à luz de uma Força Maior!
            Hoje, nesta diminuta área delimitada por uma simples e branca folha de papel, numa tarefa demasiadamente difícil, tento derramar algumas singelas palavras, de modo fiel e convincente, na esperança de que elas sejam suficientes para traduzir numa linguagem cordial e real uma figura ímpar na história de Crateús, que carregava a autêntica humildade sobre uma grandiosa capacidade humana e espiritual. 
            No final década de 30, o mundo se agitava num período de intranquilidade e violência. Na Europa, tinha começado o horrendo genocídio chamado holocausto e iniciava-se a sangrenta Segunda Grande Guerra Mundial. Nesta época, assim conturbada, se um casual forasteiro, displicentemente caminhasse pela rua Cel. Zezé e chegasse na esquina da João Tomé, seria compelido a olhar, inevitavelmente, para um imenso casarão amarelado, com uma larga alameda na frente e um tapete pavimentado, margeado por terrenos ajardinados que dava para um imponente alpendre de grossas colunas, como a dizer: Isto aqui é uma fortaleza, tome cuidado! Mas o viajante estranharia aquele vai-e-vem, num entra e sai diuturno de gente com uma felicidade estampada no rosto e para sua surpresa perceberia que aquele castelo, com fama de mal-assombrado, era a casa da humildade, a senhorial residência da bondade. Um edifício com altas e largas portas abertas para atender o que quer que fosse de necessidade. Era o lar de um cidadão formado em medicina pela Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, uma aventura impensável para a época, mas o que ele realmente ostentava era um título de Nobreza de Espírito. Também dependurado na parede de sua sala, como se já não bastasse o de doutor, outro Diploma de Farmacêutico, pela antiga Escola de Farmácia do Estado do Pará, mas a honraria principal surgia de sua alma como um invisível sustentáculo de benevolência, confirmando a asserção de Alan Kardec “Fora da caridade não há salvação!”
             Quantas vezes Dona Sancha, sua esposa, ia buscá-lo, na linha do trem, depois que ele tinha distribuído para uma enfileirada pobreza, quase todo o dinheiro apurado com suas receitas, quando recebia por estas consultas, pois na realidade, a maioria dos pacientes levava até os remédios, de graça. Dizia: - Não reclame não, minha querida, o nosso ficou lá! Vamos para casa, baixinha! A nossa felicidade será naturalmente proporcional em relação à felicidade que fizermos para os outros. Repetia esta frase como base para os dois livros espíritas que logo viria a escrever.
            Numa certa tarde, em que lia um de seus livros favoritos, sentado numa cadeira de balanço, entra um molecote com um anzol enfiado na perna, e ele logo o tranquiliza: - Não chore não, Prego Dourado, não vai doer nada, não! Era o Elias Vieira, um menino traquina, que chegou chorando da pescaria do rio, mas logo saiu contente e ainda com umas moedas de tostões no Bolso. Hoje, Elias relembra quando sua mãe, Dona Maria Vieira, gravemente enferma, procurou Dr. Luiz. Este apertou firmemente sua barriga com as mãos e detectou uma criança que estava lá, há mais de 10 anos, por causa de um trabalho mal feito por uma parteira. Sua influência com o Dr. Cesar Cals , presidente do Centro Médico Cearense, foi primordial para que conseguisse uma das primeiras cirurgias para extração deste esqueleto fetal no Ceará, a qual o Jornal fortalezense Gazeta de Noticias , do dia 4 de abril de 1939, estampava em primeira página esta notícia fenomenal.   
            De outra feita, atendendo ao clamor do povo, se candidata a prefeito, pelo Partido Social Democrático para fazer frente ao forte udenista João Afonso. Não o elegeram, mas se divertiram muito cantando pelas ruas: Eu vou votar é no Dr. Luiz/ é o que o povo diz/ ele é um médico popular/ ele receita o rico e o pobre/ e o remédio ainda dá.
            Do casarão amarelo só um cacimbão restou, um poço como a sabedoria do Dr. e que nunca esgotou, nem na seca de 42, quando uma sequidão invadiu o mundo. O povo chegava com suas latas na cabeça para retirar água de lá, e ainda tinha o direito a tomar um cafezinho com pão que ficavam expostos numa grande mesa. Um de seus herdeiros, material e moral, o bonachão Elpídio ou o moderado Cornélio, ia comprar o saco grande de pão na padaria de seu Norberto, pai de nosso querido Ferreirinha que já trabalhava por lá, no balcão.
            Quem passa por aquela esquina, agora ouve um longo silêncio. É o som mais doce que há, pois é o som da alma, no limiar da grandiosidade entre a vida e morte, neste universo que é obra de Deus... ou será o próprio Deus? Com certeza o Dr. Luiz Chaves e Mello, nos diria! Ou nos dirá?

Raimundo Candido


Luiz Bomfim disse...
Raimundo, O Dr. Luiz foi também escritor, teve ter ainda nos meus arquivos dois livros da autoria do mesmo.
Catecismo Esperita
O TELVIDEO
O primeiro foi o Elpidio que me presenteou e o segundo, o nosso querido Norberto Ferreira Filho.
Quinta-feira, 18 Agosto, 2011

Paulo Nazareno disse...

Primoroso o seu texto; realmente têm personagens que necessitam deste resgate, e dados a conhecer às novas gerações. Esta aí um filão a ser trabalhdo pela cultura (memória) em nossa urbe.
Sexta-feira, 19 Agosto, 2011

Silas Falcão disse...

Esclarecedor texto, Raimundinho. Lembro-me do seu Elpídio atendendo os clientes. Inúmeras vezes saí da Rua da Cruz para comprar remédios na farmácia ao lado do casarão. Nessas horas não perdoamos o tempo que criou esse longo e triste silêncio. Parabéns pela bela crônica que resgata importante memória de Crateús.



Sexta-feira, 19 Agosto, 2011

Junior Bonfim disse...

Caro Raimundinho:

Fiquei encantado com o seu pergaminho telúrico e tomei a liberdade de postá-lo no meu blog.
Quando comecei a escrever crônicas exaltando pessoas que, no seu micro ou macro universo, salpicaram luz na nossa urbe, fui às vezes incompreendido. Por isso, fico feliz em ver essa cultura da difusão das sílabas do bem ganhar força e vigor. Parabéns!
Fraternalmente, faço apenas uma ponderação em relação ao juízo emitido no parágrafo inicial. Jamais se melindre de citar outros lavradores da escrita. Começar uma narrativa citando outro escriba é bom sinal, de sabedoria, de agregação e de humildade, qualidades que você mansamente ostenta.

Paz!
Júnior Bonfim



Sexta-feira, 19 Agosto, 2011

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Cura centenário


Monsenhor Francisco de Moraes neste agosto completaria 100 anos de idade, se não tivesse ido há dois anos. Foi quando se encontrava na terceira margem do rio da vida, como dizia Guimarães Rosa. Nasceu em Crateús que seria elevada à condição de cidade quatro meses depois. Não nasceu na sede do município. Preferiu o murmúrio do campo. O esplendor e a calma que esverdinhavam a mata. Escolheu agosto. Quando a lua merencória se desfaz em beleza. De um céu pincelado de azul, quase em desmaio. Lá longe já se escutava o balido das ovelhas. Os eflúvios do verde pincelavam a aurora que já se anunciava. Foi assim que a natureza recebeu este homem prodigioso que escreveria uma história de vida notável. Trilhou o caminho do sacerdócio. Foi o evangelizador robusto. O semeador competente. O pregador convincente. Tomou o arado e partiu para trabalhar na vinha do Senhor. Ancorou-se na cidade do Ipu. Lá, escreveu seu apostolado. Homem de profunda fé erigiu torres vivas e inquebrantáveis. Partiu de Crateús como um profeta. Foi praticamente o construtor do Ipu. Lá, deixou a marca do seu imenso destemor. Construiu o Patronato, o Colégio Ipuense, o Salão Paroquial, maternidades, hospitais, estradas de rodagens, capelas e casas do menor abandonado. Porém, foi no recôndito dos templos que se fez arauto de Deus. Pregação profunda e profícua. Foi um mensageiro de uma intensa fé. No altar, nas ruas e nos recônditos mais distantes vivia envasado de Deus. Deixou uma lacuna impreenchível. Mesmo ao ir se já com uma vida tão longeva. Pranteamos hoje a sua memória. Dissecamos sua vida tão cheia de luz. Rememoramos que Moraes passou por esta vida, mas não passou em vão. Deixou marcas indeléveis de trabalhador incansável. Foi promotor de dignidade e de libertação. Não se conteve nas prédicas dos tabernáculos, foi à procura do seu rebanho, para elevá-lo, tirá-lo da miséria. Trouxe-lhe uma centelha de luz. Exerceu esta sua missão embriagado de Deus. Eivado dos princípios maiores de respeitabilidade a todos, inclusive os mais carentes. Deixou saudades. Mas plantou, naquela bela cidade, sementes que frutificarão para sempre.

José Maria Bonfim de Morais - médico cardiologista
Diário do Nordeste, 16/08/2011


Paulo Nazareno disse...


Beleza!!!! Enfim em sua função verdadeira; pena neste dia estar no Ipu a serviço.
Carpe Diem.
Sexta-feira, 19 Agosto, 2011


Nega disse...
Vamos sim!!
Olá Raimundinho, faço coro ao seu chamado!!!
Disse Drumond , o poeta:
"Ir ao teatro é como ir à vida sem nos comprometer."
Então vamos ao teatro!

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

 Nelson Sabóia Barros, um Poeta!
            Umas gotas de palavras descem a Serra da Ibiapaba. Murmuram segredos que captam do silêncio sepulcral e arqueológico da Gruta dos Caboclos. A última morada de bravos guerreiros, que ali, em calma ordem, repousavam há milhares de anos, no sono dos justos, antes que passos intrusos e gananciosos lhes removessem os ossos e lhes tirassem o imutável sossego, alimentando novas e excêntricas histórias.
            Mais e mais palavras gotejam e descem aguadas do monte. Vão se juntando, se aglomerando. Percorrem como um rio as modestas ruas de Montenebo. E arrasta um barco em cujo leme vai um Poeta de nome Nelson Sabóia Barros, nascido no sopé da grande serra, o lugar que um dia foi batizado pelo pioneiro Pe. José Juvêncio de Andrade.
            Certas coisas, quando misturadas convenientemente, logo se homogeneízam, como uma multidão de abelhas zunindo, num enxame laborando na florada da época, o que sempre resulta num doce mel. Como a lua clara na abobada escura de Montenebo, apinhada de estrelas. Como a trovadoresca poesia e a doutrina religiosa, que são como dois líquidos homogêneos, quando num mesmo barco, facilmente se misturam. Basta folhearmos a Bíblia, onde navegaremos num caudaloso rio de inspiração poética. Esta narrativa que agora estais a ler, é sobre um agricultor-poeta, ou um poeta-agricultor, mas também está repleta de padres com seus assombrosos sermões que emanavam de suas negras batinas, tudo num só enredo, como uma embarcação que desce um veloz rio.
            Quando um vate canta a sua época, louva o seu lugar, como um patativa canta o sertão, nem o incalculável tempo consegue escondê-lo dos holofotes do mundo, se ele colocou em seus verso a sua alma e a sua arte, numa linguagem nascida do coração.
            Quem consegue transfigurar as duras coisas mundanas em versos, dando-lhes alma, transformando a inusitada luz do dia em poesia, é um arrebatado mago, um prestidigitador. Assim era Nelson, convertia o cotidiano de seu povo em rimas, em versos de pés quebrados, em belos romances. Foi quando o velho caminhão de seu Luiz Estradeiro, mesmo caindo aos pedaços, se arrastando, por lá passou e ressuscitou-se numa bela estória, engraçadíssima, em que cada peça, à medida que se movia, gemia e reclamava da vida e de seu dono, implorando por uma aposentadoria.
            O dia-a-dia se fazia, rapidinho, poesia pela sensibilidade e aptidão que ele tinha com as palavras e com as rimas, como daquela outra vez em que dois sujeitos, um da família Raposo e o outro da estirpe Bandeira, foram às vias de fato, num crime passional e de súbito, saindo da ponta do lápis do nosso Patativa, nasce um verso onde duas iradas feras, um tamanduá bandeira e uma raivosa raposa, duelaram, até a morte.
            Nunca uma só vida é suficiente a um poeta. Ele busca vida nova noutras vidas e noutras paragens. Aí navega. Põe seu barco no rio e o impele com fortes remadas, em busca de mais rimas e mais vida. E já no outono da existência, com sua carga repleta de experiência e os olhos enfastiados da inalterável estampa da serra da Ibiapaba, acolhe o convite de José Palhano, um crateuense nascido na localidade Poty , que se fez Padre sob às sombras das  asas protetoras do poderoso Dom José Tupinambá da Frota. O Padre José Palhano, um galanteador ao estilo Dom Juan sem nada dever aos padres-show da atualidade, aquele mesmo que espalhou aos quatro cantos do mundo que Crateús prendeu a Santa Peregrina, se candidata a prefeito, e o nosso poeta o ajuda a granjear votos, escrevendo “O Testamento de Judas”, uns pesados versos ridicularizando o rival que provavelmente terminava assim: ”Com um abraço e um beijo de Judas”. O adversário se enfeza e mobiliza a polícia na busca do poeta que já estava sob a proteção e amparo da Igreja, dentro de um dos inúmeros templos sagrados dos United States of Sobral .
            Não é mera coincidência se a nossa história sempre recai em barafunda de pessoas e padres, mas é que existe essa atração recíproca entre a poesia e a religião, como já disse. Voltemos a Montenebo. Por lá em anos idos, numa singela capelinha, celebrava uma missa em latim, isso mesmo, no finado idioma latim, numa missa tridentina, o Padre José Maria Moreira do Bonfim. De costas para os fieis, já encerrava a celebração: In nòmine Patris, et Fìlii, et Spìritus Sancti,  e o acólito que o acompanhava, solenemente  respondia: Amen!          
           Numa motocicleta, com o coroinha na garupa, saía o Vigário de Crateús em peregrinação pelas igrejinhas do interior, rezando missa.  Já se fazia tarde e eles teriam que ir, de Montenebo para Santo Antonio, para outra solene celebração. A noite desce seu teatral manto pelas veredas do sertão e eles resolvem pernoitar na fazenda do Sr. Chico Rodrigues Bonfim, no Curral Velho. De lá iriam, de manhã cedo, cumprir esta outra sagrada  missão. A motocicleta devora o chão empoeirado, gemendo sob o peso do padre e do sacristão e eis que, de repente, do meio do mato fechado, surge um bode, que assusta o motoqueiro. E vão os dois ao chão, o padre e o sacristão.
            Notícia assim, num sertão abandonado, corre que nem preá fugindo de raposa. Tem suas veredas próprias para chegar aos ouvidos do povo.  Vai pelo vento, pelos galhos de marmeleiros, dando suporte à inexplicável frase “um passarinho me contou”, matando a curiosidade sedenta da população. E chegou aos ouvidos do nosso poeta Nelson, que de maneira imprevista fez logo uns versos, que agora vou lhes contar, em primeira mão. Aprecie com calma e bem devagar esse primor:
VERSO DO BODE

Eu vou contar pra vocês
Um caso que aconteceu,
Na fazenda Curral Velho
De um bode que apareceu,
Se a história não é verdade
O inventor não fui eu.

Dizem que o caso se deu
Com o Padre José Bonfim,
Este ia viajando
Montado em seu motorzinho
Quando apareceu um bode
Lhe interrompendo o caminho.

O Padre disse assim
Menino tenha cuidado,
Que vejo aqui na minha frente,
Um bode preto danado,
Que na minha experiência
Este bode é endiabrado.

Fui arredando de lado
O bode a frente tomou,
Foi nesta ocasião
Que quase derrapa o motor,
O menino foi caindo
O Padre se desmontou.

O Padre se assombrou
Com o fantasma do bode
Dizendo tenho certeza
Que passar aqui ninguém pode
Ele pegando o motor
Pra qualquer lado sacode.

Tinha palmo e meio de bigode
Na cabeça um chifre só
Com olho no meio da testa
Com uma perna coxó
Não tinha cauda era suro
Como se chama bicó.

O Padre se achando só
Com o menino desmaiado
Com o fantasma do bode
O Padre estava assombrado
O bode sempre na frente
Pulando pra todo lado.


O menino tinha tornado
E conseguiu se montar
Voltaram pra Crateús
Não foram mais celebrar
E o bode sempre na pista
De quando em quando a berrar.

O Padre pois a puxar
Cento e vinte em seu motor
O bode correndo atrás
Que nunca lhe abandonou,
Na passagem do cemitério
Foi este quem lhe salvou.

Daí o bode voltou
Com duas léguas e meia,
O Padre ficou dizendo
Eu vi a coisa bem feia,
O menino criou coragem
Voltando o sangue das veias.

O bode cortou areia
Pra seu ponto terminado,
O padre saiu dizendo
Agora eu estou descansado,
Mas chegando em sua casa
O motor estava amassado.

Era um bode agigantado
Com dois metros de altura,
Com cinco de comprimento,
Com seis palmos de largura,
O Padre quase se assombra
Quando avistou a figura.

Era fazendo a pintura
Os cabelos eram demais
Tanto caindo pra frente
Como deitavam pra trás
O Padre sempre dizendo
Este bode é o satanás.

Eu acho bem capaz
Deste bode ainda estar lá
Pra atacar os devotos
Que passam pra ir rezar
Como atacou o vigário
Que não deixou celebrar.

 Leitores que iam tomar
O conselho do pastor
Para fazer sua páscoa
Como manda o criador
Que é pra todos se livrarem
Do laço do traidor.

Como um bode ele atacou
O Padre da freguesia
Que não deixou celebrar
A missa no outro dia
Por isso que aconselha
Para fazer romaria.

Em Santo Antonio neste dia
Se achava muito animado
Reinava animação
Do povo por todo lado
Com a história do bode
Ficaram tudo assombrado.

Aqui eu dou terminado
A grande história do bode
Dizendo tenho certeza
Passar por lá ninguém pode
Com o fantasma do bicho
Com barba chifre e bigode.


          Agora, aprume seus pavilhões auriculares e aguce o sexto sentido, aquele que pressente os mistérios do mundo, para ouvir um alegre foguetório, que vem lá de longe, do céu dos poetas, que é o que ocorre quando se descobre mais um vate escondido por esse mundo de meu Deus. E olhe que este saiu de um celeiro de grãos, na aprazível Montenebo. Um poeta com alcunha de almirante, mas que sabia fazer vibrar as cordas do coração, pois era um lírico cultivador da terra e dos versos, com um cognome Nelson!


Raimundo Candido

Bruna Ximenes disse...


Parabéns Raimundinho, excelente trabalho e muito obrigada por fazer essa homenagem ao meu querido avô, que se hoje estivesse aqui conosco com certeza estaria muito feliz por tal reconhecimento que o foi atribuído! Fique com Deus!
Quarta-feira, 17 Agosto, 2011

Anônimo disse...


Existe gente interessante, locais interessantes, espalhado por todo lugar.
Mais tem um lugarzinho bem pequeno escondidinho num cantinho do Ceará, que dele não posso deixar de falar.
Devo confessar, que desde que conheci muita coisa mudou por la, haaaá e que saudade que dá.
Monte Nebo é esse lugar. E é la que existe uma família muito peculiar da mais alta linhagem principalmente no quesito de contos contar.
Nelson Sabóia Barros foi poeta e por muito tempo fez ali seu lar e como deixou historia pra contar e alguns filhos seguem nas calçadas a nossas vidas alegrar
Nunca no cotidiano pude vivenciar, mais conheci cada plano que fica difícil de explicar, como o plano de uma placa que muito trabalho deu pra roubar, porem, apenas devo confessar que se um dia vocês tiverem o prazer de escutar as historias de Tirica irão sorrir ate rachar.
E quando uma vaca avistar, não pode nem deixar pra la, pergunte a Terezinha que um causo ela vai contar e o final é hilário, tem café pra todo lugar, pois de olho fechado uma vaca na escuridão não da pra enxergar ,porem ela não mora mais la,hoje pra conseguir com ela falar pra radio você ligar o radio dela sempre sintonizado está ,pode confiar .
Pra chegar nesse lugar muita estrada tive que pegar mais sempre na companhia maravilhosa de uma diva que de nossas vidas nunca sairá. Maria pra sempre iremos te amar, pra mim tu estas vivas, nas marcas que me deixam em cada canto deste lugar. É uma pena que tudo que ouvi naquele carro eu num posso nem sonhar em comentar.
Porem, antes de la chegar conheci primeiro de ouvir falar por outra filha que muito orgulho me da, outra cujo a saudades é impossível de matar, mais as historias que me contaste Zezé é de sempre recordar e esta tinha logos repertórios que iam dês do tempo que os bichos falavam, passando por cavalos, raposas e todas as camaradagens da floresta até cachos de testa que até hoje é perigoso contar, há ia esquecendo de falar alem dos contos, poesias e versos como tu gostavas de tocar e cantar.
E a culinária? Vocês podem me perguntar. Vou falar tem G de galo de galinha, tem milho da vizinha, tem charutos da Tia Raimunda ótimos pra arrematar e uma delicia de se provar, sim e cocada sem coco o que é estranho de falar mais tudo isso tem mesmo nesse lugar.Claro devo ressaltar hoje se precisar de ovo o Kim deve procurar, mais bezerro nem conte a tempos eu estou a esperar.
Hoje se tudo isso você quiser comprovar sente na calçada do Zé Nelson e se ponha a indagar e eu creio que brevemente suas respostas você irá achar.

Quinta-feira, 18 Agosto, 2011

Anônimo disse...


NETO DO VÉI NELSON
NÃO APRENDI A RIMAR,
MAS OUVIR CAUSOS DA VIDA
ISSO APRENDI A GOSTAR
VOU PARANDO POR AQUI
PRA FAMÍLIA NÃO CRITICAR
O QUE GOSTO MESMO DE FAZER
É OUVIR DO QUE PROPRIAMENTE FALAR.
Sou neto e filho de Terezinha de Sabóia Roberto, esta sim tem muito causo a dizer do véio Nelson, inclusive o Verso do Caminhão Velho.
Quinta-feira, 18 Agosto, 2011

Luiz Bomfim disse...

Raimundo, o Curral Velho, aí citado, era de propriedade de Francisco Rodrigues, que não era bonfim, casado com com a sua Tia Fransquinha e que é pregado a Santo Antonio.
Andei muito com o Pe. Bomfim na carupa da motocicleta mas, garanto que não era eu o garupeiro nesta viagem que se deu o encontro com o bode danado.
Quinta-feira, 18 Agosto, 2011

Anônimo disse...


Também sou neto dele e o ouvi recitar várias vezes muitos versos. Sou filho de Terezinha de Saboia e sou apreciador desta e outras artes. Em um outro dia, quem sabe , tentarei alguns versos.
Sábado, 20 Agosto, 2011

Sobre ideologia e literatura


O Estadão traz um artigo de Gao Xingjian, o novelista e dramaturgo chinês, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2000, que “reflete sobre os embates entre a arte da escrita e a política”. Trata-se de uma tradução a partir do inglês, de um texto escrito, originalmente, em chinês para ser lido em duas palestras do autor. Vale a pena a sua leitura, AQUI.