quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

                                                     Procissão


                O mundo é obra de fôlego divino, incansavelmente escrita de capítulo em capítulo, que às vezes soletramos com uma vista enevoada por uma cega emoção, mas só devíamos proferir suas prosas ou recitar seus versos pelo olhar da lucidez ou da razão. Há momentos em que, inesperadamente, surpreendo-me ao ler uma jorrante frase, ainda sendo escrita numa página em branco, como ali na calçada da matriz, observando o povo sendo invocado pelas badaladas de um sino, e vão chegando à conta gota para a procissão do Senhor do Bonfim, no primeiro dia do ano.
               Um fim de tarde, ainda ardente, se dissipa devaga, esticando cada vez mais o mormacento dia, imerso em incisiva claridade. Espera-se que o deus Rá dos antigos egípcios se acalme, para que o cortejo do santo comece. Dizem que em cada cm2 do planeta recebemos, em média, duas calorias de vital radiação solar por minuto, mas tenho a impressão que esse número está bastante subestimado, de forma bem grotesca, pois até as plantas se abanam de tanto calor e sufocam ao realizarem uma banal fotossíntese.
              Enfim chega o momento em que Pe. João Batista autoriza o início da cerimônia com um forte comando emocional: — Viva Jesus Cristoooo! As pessoas, autômatas conscientes, respondem: — Vivaaa!!! Foi como se ligar um botão, a multidão caminha e celebra em cânticos, a me lembrar o Rei Davi, pulando e cantando em êxtase. Seguem um arranjo floreado onde se encontra a imagem de Nosso Senhor pregado na Cruz, nosso querido Padroeiro. Desfilam liderados por três coroinhas, com uma cruz ladeada de luzes abrindo caminho pelas ruas da cidade. Na frente do andor o Bispo Dom Jacinto e os Padres, que vestem uma túnica branca como aquela de cor púrpura que foi vestido em Jesus na casa do perverso Herodes.       
               O carro de som, um potente trio elétrico de milhares de watts de potência, toca a marcha como um animado bloco de carnaval em ladainhas e rezas acompanhado dos estouros de fogos de artifícios no ar, que devem ter feito salivar algum cidadão - o sistema nervoso central condicionado, como nos cães que salivam por um pedaço de carne ao ouvir uma sirene – e que vive a confundir todo rojão com o festejo da cannabis sativa chegando à cidade.
               Nas épocas de incertezas somente a fé e a oração é que podem oferecer alguma segurança na vida. Dizem-me os excêntricos poetas, tudo que é maravilhoso está entre as brumas e o que os encanta mesmo é a própria incerteza. Livrai-me da persuasão destes vates, da convicção dos loucos e da ingênua fantasia das crianças. Vade retro! Prefiro mesmo ser um simples matuto do pé rachado. 
               A ciência também me assusta, com suas descobertas que me cheiram a bruxarias pelo potencial de sondar o invisível e espiar o infinito. Chegaram a descobrir que no mistério de um sem fim, equilibra-se um planeta, como nas asas de uma borboleta, confirmando o que me disse uma vez meu amigo Guimarães Rosa, nas trilhas de um sertão, quando nada acontece é porque há um milagre que não estamos vendo. Como uma magia, chamada de El Niño, que impede a ressurgência  de águas frias e profundas nas costas da America do Sul, no oceano pacífico, mudando todo o clima do planeta Terra-Água. Comprovaram até que a feia seca é um fenômeno periodicamente decenal e a expõe num fadado calendário: 71 e 72... 81, 82 e 83... 92 e 93... 2002 e 2003... Meu Deus! Socorra-nos, São José! Se até o dia 19 de março a chuva não vier, vamos caminhar e suplicar em mais uma longa procissão.
               De todas as procissões, a que mais me move e comove é a medieval celebração de Corpus Christi, em adoração ao Santíssimo Sacramento por ser uma fina arte de tapeçaria.
               Os fieis preparam tudo como numa grande festa na madrugada utilizando todos os tipos de materiais: serragem colorida, borra de café, farinha, areia, acessórios como tampinhas, folhas e flores, muitas flores coloridas atapetando o chão com uma belíssima obra que não deixa nada a desejar para arte e a cultura da antiga Pérsia. Na quarta-feira do dia 7 de junho deste ano de Nostradamus, se as surpresas dos caminhos não desviarem meu trajeto, quero presenciar essa magnífica diversão para os olhos e vigoroso júbilo para a alma.
                As cerimônias religiosas absorvem a minha vista e o meu espírito neste grandioso espetáculo de entoar preces com imagens expostas pelas ruas, dignas de veneração.
                Na Semana santa há a comovente Procissão do Encontro. A vida é a arte do eterno encontro, embora haja tanto desencontro pela vida, versejou o poeta Vinicius. 
                Os homens saem da Igreja de São Francisco com o Senhor Morto, coroado de espinhos, ensanguentado, escarrado e carregando a cruz nas costas, é a imagem do Senhor dos Passos.
                As mulheres, da Igreja de São Vicente, levam a imagem de Nossa Senhora das Dores, e as acompanha a piedosa Verônica que enxugou o rosto de Jesus numa toalha, ficando ali estampado uma face, e também a devota Maria Madalena, a que voltou na madrugada do sábado para ungir o corpo de Jesus com os perfumes que havia comprado, e então um Anjo lhe comunica que Ele havia ressuscitado.
                 Encontram-se, na frente da Catedral, numa emocionante dramatização da cena do que aconteceu naquela sexta-feira santa, recordando as dores de Nossa Senhora com o martírio de Jesus.
                 Devo me lembrar que todo dia é propício ao encontro, para que possa olhar no olho do irmão sol e sentir o resplendor da vida, para me confidenciar com a amável irmã lua e poder me encontrar comigo mesmo, seguindo neste cortejo maior ao encontro do Supremo Princípio, palmilhando nesta solitária procissão em que vou ao abraço do paternal  Senhor do Universo.

 Raimundo Candido.

Um comentário:

  1. Comovente e respeitosa descrição da romaria do Senhor do Bom Fim que registra para a posteridade um ato de fé, resistindo a descrença desta época tão açoitada por uma desumanizante tecnologia.
    Falou alto a sensibilidade do poeta.

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