Fazer amigos é um atributo
indispensável a todo ser humano. É uma tendência própria que depende unicamente
do caráter e do temperamento de cada um. Alguns já nascem com um manual
embutido na pele e fazem amizades instintivamente, pela água, pela terra e pelo
ar.
O Luiz Bonfim – um esclarecido e erudito
cidadão de vida boa – pertence a essa espécie, e não passa muito tempo sem
regar suas afeições e suas estimas, mesmo quando um companheiro querido já foi
recompensado com o merecido descanso da fatigante faina terrestre. Veio da
cidade de Fortaleza, com inoportuna urgência, prestar as últimas homenagens ao
amigo e colega aposentado do Banco do Brasil, Francisco de Matos Melo, a quem
chamavam de capelão, pela atenção e imensa cordialidade com que atendia às
pessoas, indistintamente.
Nos momentos tristes de um funeral,
em que se velam as últimas horas de um falecido com o pesar familiar e as cordiais
despedidas dos amigos, uma melancolia desabrocha nas almas ali presentes,
trazendo à tona as mais diversas recordações da vida que se transmutou em outra
enigmática vida.
Acompanhávamos, na marcha penosa, o
cortejo fúnebre relembrando o exemplar servidor que representava a figura emblemática
do “Matos”, pensando que o País seria bem mais “Brasil” se houvessem muitos,
como ele, empenhados com denodo, dentro das repartições públicas.
Um clarão nos surgiu rápido, quando
passamos em frente ao Externato N. S de Fátima, na Frei Vidal, relembrando um
inusitado encontro revestido de mistério, quando o profeta capuchinho Frei
Vidal, o Pe. Juvêncio, o ilustríssimo Dom Fragoso e o bondoso Alfredinho vieram
ao encontro deste propenso poeta para confabular e alertar sobre alguns sigilos,
mas nada muito sobrenatural.
O séquito, após a encomenda do
corpo na Igreja da Matriz, atravessa a Praça José Coriolano e desce o “Beco do
Seu Raimundo Bezerra”, na Rua Carlos Rolim, rumo à última morada, o acolhedor cemitério
São Miguel. O triste repique do sino, em despedida, me fez recordar um singelo
verso de minha larva: “E na memória do Sino / plena em presságio, / cabem todas
as almas / dos desvanecidos corpos.” Já ao pé do túmulo, alguém se pronúncia
florejando os atos de um benfeitor e a confirmar a benquerença ao amigo que parte.
Em voz baixa, confidencio: – Amigo
Luiz, este momento de despedida me lembra o discurso de Marcos Antonio no
funeral de Júlio Cesar “Amigos, romanos, meus concidadãos, deem-me ouvidos. Vim
para enterrar César, não para louvá-lo. O bem que se faz é enterrado com os
nossos ossos, que seja assim com César.” O Luiz, um espírito perspicaz, já
refletia sobre outra observação que lhe incidia sobre o olhar, perplexo:
– Raimundo, observe aonde o amigo
Matos vai ser enterrado! É o túmulo do Luiz de Araujo Melo, o sogro, conhecido
como Luiz Mano. E me testando, pergunta: – Você sabe quem foi ele?
Já tinha algumas referências sobre
aquele crateuense que fora Diretor da Escola Técnica de Comércio e o orador
oficial da primeira turma de contadores em 1948, época em que formatura, além
de requerer uma grande festa, era um ritual de passagem para uma vida digna de
trabalho e responsabilidades, familiar e social. Sabia que tinha sido um homem honrado
e bondoso e que ajudava até os carreteiros do mercado, quando para estes,
trabalho não havia. Soube que a sua morte, por um apêndice supurado, causou uma
enorme comoção na cidade, abalo igual só na morte do Dr. Olavo Cardoso, pois
eram cidadãos amados pelo povo.
O rejuvenescido Gravatinha, carinhosa
alcunha do Bonfim, professoralmente continua na sua explanação sobre o Luiz
Mano, um cidadão que Cratéus não podia e nem deve esquecer.
– Professor Raimundinho, fora essas informações
que você já sabe, o Luiz Mano foi um ativo vereador de nossa cidade, numa época
de UDNs, PSDs, curais eleitorais, votos comprados, políticos vendidos e outros
vis crimes eleitorais. Ele exercia sua atividade política com consciência, com a
mais limpa honestidade, voltada para uma benfazeja cidadania. Era simpatizante
de um socialismo inofensivo e sentimental, que podemos até chamar de utopia
cabocla. Na época, pelo rádio, se ouvia falar nas greves dos trabalhadores, lá
em São Paulo, em luta por melhores salários, por uma vida digna e melhor,
citavam as convenções de um Partido que conclamava a batalha pela reforma
agrária, à luta pelo “Petróleo é Nosso”, pela concentração de esforços contra o
imperialismo americano. Por aqui, em 1943, onde até a Câmara Municipal vivia
momentos conturbados, pois havia duas assembleias constituintes, uma verdadeira
e outra falsa, dividindo os vereadores, uma terrível mão invisível chegou. A
perigosa concepção de um senador iaque, Mccarthy, para combater e perseguir
todos aqueles que tivessem alguma relação com o comunismo de um mundo bipolar, era
uma imperceptível garra feroz e destruidora, que por aqui também sobreveio. Uma
simples imagem na alma de um povo ignorante e ingênuo logo vira um fato
concreto, e num instante os comunistas estavam em todo canto, devorando
criancinhas. Os soldados aliciados para uma guerra invisível são os piores
soldados, não sabem por que lutam, por que matam ou morrem! As unhas afiadas do
mecartismo ganhavam adeptos. E o Luiz continua a falar, se empolgando cada vez
mais, como se revivesse aqueles instantes:
– Aquele foi um momento perigoso,
Raimundo! O Luiz Mano tramou um comício, planejou uma assembléia popular, na
Praça da Estação, e convidou seus inúmeros amigos e os muitos simpatizantes de
suas ideias, já que nem a câmara municipal se entendia. Mas, às vezes, entre os
amigos existe a dissimulação, e o fingimento correu a gritar nos ouvidos da
incivil estupidez.
O zelo mais excessivo do
capitalismo achava-se alojado na igreja, encoberto, inconscientemente, pelas
batinas. O diligente Pe. Bonfim, já não se entendia bem com o professor Luiz
Mano, um sujeito de ideias estranhas e chegado a esse comunismo de Karl Marx
que ousava afirmar: “A religião é o ópio do povo”. Com uma propícia ajuda,
convocou a milícia de Sobral, que chega disfarçada no intuito de impedir a
abertura de uma Loja Maçônica, o braço direito do diabo, a filial do império
das trevas, como dizia a igreja católica na época. E logo na véspera da chegada
da Santa Peregrina, acontecer esse primeiro comício de esquerda nos Sertões de
Crateús, era inadmissível.
– O comício já iniciara quando, de
repente, chega o Pe. Bonfim, colérico, conduzindo a polícia e uma multidão de
fieis, todos propensos a uma guerra santa: “Viemos, em nome de Deus, acabar
essa pouca vergonha, de quem não tem fé e quer enganar o povo, com esse
comunismo diabólico que veio para destruir a religião e a democracia.”
– Raimundo, não houve um tiro. Somente
o trabalhador Luiz Mano, em serena calma, enfrentou as chispas e os raios
desferidos pelo Pe. Bonfim. Como um cidadão íntegro pediu para que os
correligionários fossem para casa, evitando prisões e derramamentos de sangue,
mas consciente de que, aquela ira toda não vinha da voz de um sacerdote ali
presente, e sim das garras do capitalismo ganancioso que ganhava vida e voz, e
vencia mais uma batalha, mas não a guerra.
A cerimônia fúnebre chegará ao fim,
e fiquei a imaginar que o lacre que colocaram naquela lápide não encerrou uma
vida, como disse Marcos Antonio no funeral de Júlio Cesar, o bem que se faz não
é enterrado com os nossos ossos, ele fica como um exemplo para outras vidas que
merecem ser vividas com denodo e coragem de um heróico Luiz Mano ou como a
obsequiosa humildade de um prestativo Matos Melo.
Despeço-me do amigo Luiz, que
resolve voltar para seus urgentes afazeres na capital e sigo no caminho de casa
a cantarolar, involuntariamente, a bela música utopia, do cantor e agente
pastoral Zé Vicente (Quando o dia da paz renascer / Quando o Sol da esperança
brilhar / Eu vou cantar // Vai ser tão bonito se ouvir a canção / Cantada de
novo / no olhar da gente a certeza de irmãos / reinado do povo) fascinado com
aquela história de um herói real e crateuense que pretendo mostrar para meus
filhos, que sonham com os imaginários guerreiros de uma distante literatura.
Raimundo Candido
José Alberto de Souza disse...
Suas crônicas, seus artigos, transpiram transcendência. É impressionante como
você consegue fixar no espaço e no tempo um fato banal através de reminiscências
que não deixam de interessar a quem quer que seja, tal a sua capacidade de
prender atenção e conquistar o leitor pela sua invejável cultura e escrita
fluente e moderna.
Karla Gomes disse...
Ei, Raimundo!
Quando me contou no sábado a história do Sr. Luiz Mano fiquei imaginando como você iria fazer pra colocar todas aquelas informações no papel. Com simetria de matemático, perspicácia de cronista e sensibilidade de poeta conseguiste mais uma vez contar uma bela história
José Alberto de Souza disse...
Quando me contou no sábado a história do Sr. Luiz Mano fiquei imaginando como você iria fazer pra colocar todas aquelas informações no papel. Com simetria de matemático, perspicácia de cronista e sensibilidade de poeta conseguiste mais uma vez contar uma bela história
Suas crônicas, seus artigos, transpiram transcendência. É impressionante como você consegue fixar no espaço e no tempo um fato banal através de reminiscências que não deixam de interessar a quem quer que seja, tal a sua capacidade de prender atenção e conquistar o leitor pela sua invejável cultura e escrita fluente e moderna.
ResponderExcluirEi, Raimundo!
ResponderExcluirQuando me contou no sábado a história do Sr. Luiz Mano fiquei imaginando como você iria fazer pra colocar todas aquelas informações no papel. Com simetria de matemático, perspicácia de cronista e sensibilidade de poeta conseguiste mais uma vez contar uma bela história.