domingo, 26 de agosto de 2012

Cabaré


              Um crepúsculo vespertino se despedia, impregnado de um aviso imperceptível, aspergindo um sofrimento silencioso, característica das tardes lacrimosas. O lúgubre entardecer ia, lentamente, se dissipando entre a neblina do álcool misturada com fumaça cinzenta de cigarros, tangido por uma emotiva música que sondava o vazio impreenchível dos pertinazes corações a suplicar as ilusões de amores efêmeros.  

E a noite desce no final da Rua Dr. João Tomé, como um manso presságio a ensombrar as alegrias, cumprir as tristezas, despertar os sonhos e ativar os remorsos.

A animação na Casa de Maroca já se clareava, desde os últimos raios do dia. 

 Na vitrola o LP de Roberto Muller entoa, harmonicamente, “Entre espumas” para deleite de um opulento comerciante, que chegara mais cedo para ter o prazer de beber, dançar e sonhar com Pretinha, uma jovem e circunspecta morena, de riso entristecido, mas bem contornada nas linhas femininas a provocar desejos dos frequentadores daquele singelo lupanar: “Uma noite sentou-se a minha mesa / E entre tragos lhe dei todo o meu amor/ Transcorreram só duas semanas / Como em sonho, minha vida se acabou...”

A moça estava apreensiva, pois seu “dono” poderia, a qualquer hora, chegar. Na mesa, as flores murchas de crepon, entre as garrafas de cerveja, filtrava uma tênue luz bordô. Se existe uma lei que determina que se algo pode dar errado, então dá, nasceu naquele fatídico dia. Um Jeep Willys risca na porta do Cabaré da Maroca. Desce um raivoso senhor, demonstrando avançada embriaguez e já apontar um revólver na mão. Espuma um ciúme que traduz o sentimento de uma ignorante e estúpida propriedade:

— Pretinha!!! Prepare-se, que hoje você vai morrer!

            A única reação da desprevenida rapariga foi agachar-se para se proteger, mas facilitou o desfecho do criminoso “proprietário” daquele frágil corpo humano que ficou estendido no chão, todos correram com medo das balas. Ninguém desligou a vitrola que continuou, harmonicamente, a tocar: “Se um amor nasceu de uma cerveja / Outra cerveja beberei para esquecer / Um amor que surge numa mesa / entre espumas terá que terminar”.

            É pré-histórica a arte deste amor dissimulado, do amor monetariamente fingido que cabe na cama e no colchão de amar, onde um corpo se estende com outro corpo, mas as almas, não. Os “especialistas” dizem que nos envolvemos com as meretrizes porque queremos uma mulher submissa, obediente, descartável e sem conflitos. Não parei para pensar nisso, ainda!

            No final da feira-livre reside o Senhor João Furtado Ribeiro, um idoso e brincalhão duende que, enquanto aguarda o encantamento final, vigia o portal de entrada dos antigos cabarés, a inicia-se no quarteirão da Rua Azul. Entre um trago e outro de uma forte aguardente, ele relembra: Fui motorista de praça e num fim de semana eu não parava um instante de trazer os fregueses para a Raimunda da Justina, a Maroca, a Naninha, a Alayde ou para a Casa de Diversão da Nair. Por aqui, numa temporada boa, chegava-se a ver centenas e centenas de mulheres para abastecer toda a região. A mais famosa delas foi a morena Cícera, na casa de Raimunda da Justina, todos queriam estar com ela. Triste era quando a polícia chegava, sempre às dez horas da noite, mandando todo mundo pra casa e trancavam até as portas dos terreiros de macumba. Certo dia, os policiais mataram um valente soldadinho do batalhão, afoito para brigar que nem lampião. Neste dia o cabaré se transformou num inferno, o 4º Bec sitiou tudo, ninguém saía, ninguém entrava.

            Enquanto nos bordéis de Roma, no desabrochar da Floralia, as mulheres dançavam com seus vestidos floridos, em homenagem a deusa Afrodite para principiar o sagrado festival de abril, na Raimunda da Justina o mais puro pé de serra troava com a sanfona, o triângulo e zabumba do sanfoneiro Vicente Pedro, fazendo com que muitos pés de valsas, exímios dançarinos, antecipassem o ritmo quente das lambadas nos animadíssimos cabarés dos Sertões de Crateús. 

            Há um hino chamado “Rancho de Amor a Ilha” que canta as belezas sem par de Florianópolis: "Um pedacinho de terra, perdido no mar!... Ilha da moça faceira, ternura de rosa, poema ao luar...” por lá, Ilha do Amor, um poeta matuto admirou-se de tantos bordéis, de tantas belíssimas gurias que aguardavam, calmamente, seus fregueses na noite de luar... E bateu uma imensa saudade do final da Rua João Tomé, com seus cabarés bucólicos, repletos de putas tristes...  

            Mas só é triste porque o amor humano sempre se reduziu a uma torpe luta de células, num asco prazer, através da matilha espantada dos instintos e que, em torpor, a poesia recebia a resposta sincera e honesta de uma bela meretriz: “Quanto a esse tal de amor / Guarde-o à alguém que o mereça / Ou jogue-o fora: esqueça, / Só nunca mais me ofereça / Algo que não me presta / Algo que eu nunca quis.”

 Raimundo Candido
José Alberto de Souza disse...
Anisio Silva, Cláudia Barroso e outras vozes do amor clandestino, quanto não alimentaram as ilusões de insensatos na penumbra das amarguras!

5 comentários:

  1. Anisio Silva, Cláudia Barroso e outras vozes do amor clandestino, quanto não alimentaram as ilusões de insensatos na penumbra das amarguras!

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  2. POR COINCIDENCIA A 5 MINUTOS ATRÁZ MINHA MÃE ME CONTAVA AUGUMAS ESTORIAS DESSA ÉPOCA QUE ELA TAMBEM VIVEU, FINALIZOU DISENDO ASSIM, TINHA AUGUNS MOMENTOS BONS, A MAIORIA ERA RUINS,SOBRE AS MUSICAS EU GOSTO MUINTO DE ANISIO SILVA, ELE CANTA O AMOR....

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  3. O João Furtado Ribeiro é meu pai. Esta história é verdadeira?

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