O dia de domingo, sendo límpido,
venerável e reverencial, está predisposto aos cultos, às celebrações que
fortalecem o espírito. Mas, igualmente, é um dia mágico e devotado à arte do
futebol como um banquete de noventa minutos sem deixar de ser religião, tornando-se
uma questão de fé, flamejando em nosso espírito como uma bandeira poeticamente
bíblica.
Quando a multidão, absorta a um pontinho esférico
esvoaçando no tapete verde de um estádio, se levanta e grita em uníssono o seu canto
de esperança e guerra, em ato de vida e morte, obriga aos poetas a declararem
que o domingueiro esporte bretão não se joga somente nos gramados, nas praias,
nas várzeas ou nas ruas, se joga também na sacrossanta arena da aguerrida alma,
por uma animosa sujeição que trazemos amarrada ao peito, desde a remota infância!
Naquele domingo, em que o sol já
amanhecera escaldando o tempo nas primeiras horas do dia, o Senhor Moacir Machado,
treinador do Botafogo, uma equipe de talentosos garotos que prometiam ser o Dream
Team do futebol crateuense, mostrava-se
apreensivo. Estavam de saída para um jogo
amistoso na vizinha cidade de Ararendá, mas um importante desfalque na lateral
direita o afligia. Moacir lembra que o
goleiro do seu time lhe falara de um menino que batia um bolão na Rua Farias
Brito, no campinho ao lado da cadeia pública.
- Nicolau, vamos buscar o
lateral que você me falou?
- Vamos sim, treinador, sei
onde ele mora!
Deparam-se com o pai do
menino, na porta da casa: - Seu Francisco, cadê o Lacuxia?
- Sei não! Aquele menino só
quer saber de bola! Provavelmente vocês o encontrarão jogando na beira do Rio.
Dito e feito! Lá estava ele correndo atrás de
uma quicante “Bola Pelé” no campinho improvisado, se divertindo numa “pelada”.
Demoram-se um pouco, só observando como o talento que buscavam “manejava”
aquele organismo semivivo chamado pelota.
O convite, que fora aceito de imediato, não o surpreendeu, pois já era um
espírito amadurecido para a pouca idade que tinha. Sim, uma alegria brotou no
peito, visto que era o primeiro degrau para um grande sonho e sabia que fazer
parte do quadro da estrela solitária crateuense era um grande privilégio.
Todo time que joga em casa tem
uma primazia, mas quando na equipe adversária sobram talentos, a vantagem do
outro é como fogo de palha... O jogo, em
Ararendá, não foi fácil e já pertinho de terminar o segundo tempo, num angustiado
aperto de 1 x 1, o time adversário comete uma falta, um pouco afastado da
meia-lua. O Moacir ordena de longe “Deixem o Lacuxia bater!!!”. Todos, que
estavam ao redor do campo de terra batida, ouviram uma pancada seca, como um
coco caindo das alturas e se estalando no duro chão.
O torpedo descreveu a precisão geométrica de uma parábola, raspando o ângulo de
900 da trave ararendaense, estufando a rede. A festa da vitória foi
regada com muito aluá na praça da estação, em frente à casa do experiente
técnico Moacir.
Os holofotes só necessitam de
um foco, e a luz daquele jogo acendeu as lâmpadas, ligadas em série, que
abrilhantaram a trajetória desportista do João Lacuxia. O Futebol de salão lhe aprimorou
as armas poderosas que já tinha: a habilidade, a explosão, a velocidade e a
potência do chute que aplicava na pesada bola, em explosão tão violenta que a
bila partia como um “pombo sem asas”, a mais de 100 Km/h e com 80 kg na
pancada.
Desde o Futebol de Salão na quadra do colégio Regina
Pácis, cujo técnico era o Prof. Eurides, que partiu para jogar em quase todos
os outros times: do União do Deromir ao Palmeiras do Dr. Almir, participando de
todas as seleções crateuenses que se formaram na sua época.
O palmeiras jogava com uma
equipe de Independência, na quadra da cadeia pública, quando o juiz marca um
pênalti a favor do verdinho. Lacuxia prepara-se para bater, mas antes avisa bem
alto ao goleiro, como sempre avisou, acho que se lembrando do irmão, que também
era guardião: - Saí do gol!!! O incauto
atleta afoitou-se em encaixar a bola, mas o torpedo o jogou para trás, como um
coice de uma mula. Alguém da arquibancada gritou, ao perceber que arqueiro não
se levantava: - Morreu! Foi quando o
Dr. Almir e o Dr. Camurça correram para socorrer o coitado. Foi direto para o
hospital e para a mesa de cirurgia.
O futebol proporciona tantos
os bons momentos como àqueles instantes em que se arrisca a vida. Um poeta já
disse uma vez que a morte é uma curva na estrada e isso costuma ocorrer,
literalmente. A equipe de Futebol de Salão do Regina Pácis ganhara um jogo na
cidade de Nova Russas, deram um show no placar de 5 a 3. De volta, o motorista
Demontier que pilotava uma velha pick-up, demonstrava pressa de chegar e se
esquecera da perigosa curva fechada que alguém avisara na ida. Em um átimo de
segundo uma perversa tangente puxou o carro para fora da estrada, que tombou
diversas vezes. Desnorteados, pelas pancadas recebidas, o Lacuxia e o Paulo
Estefani conseguem sair do carro e arrastam os colegas que estavam machucados e
sangrando para beira da pista. Do Luciano Ciferal, eles sabiam que estava vivo,
o Fenelon se desesperava com o rosto cheio de fragmentos de vidro, mas o craque
Nenen e o motorista Demontier não davam sinal de respiração. Saem a ermo, pela
estrada poeirenta e só depois de correm uns 4 km conseguem socorro. O sete de
setembro em Crateús, daquele ano, foi de uma total comoção pelas vítimas.
Com insistência tenho ouvido
de meus concidadãos que só tivemos futebol de qualidade na época em que os
times do São Vicente e do Petróleo se intercalavam no pódio de campeão,
promovendo belíssimas contendas, jogos históricas nos gramados do Jumelão.
Para alegria dos torcedores do
São Vicente do Zé Bezerra — a irrequieta Graça Nascimento, a jovial Silvia
Régia e o impaciente Ticuá querendo
entrar em campo para jogar — enquanto tinham o Lacuxia, eram sempre
campeões. Mas o Petróleo do Marcelo, que era o time das elites e do dinheiro, arrastou
a peso de ouro o João Lacuxia para os seus quadros. No primeiro confronto entre
os rivais, o jogo empatado e no finalzinho da partida, marcam falta para o
Petróleo... Os torcedores vicentinos, com o coração na mão imploram clemência,
mas o torpedo não teve piedade, riscou o ar como um foguete e cumpriu sua
missão, a de profissional, que João sempre soube ser, como cidadão integro.
Naquelas saudosas e disputadas
pelejas podíamos ver jogando os craques: Zé Maria, Nicolau, Eliezer, Gilberto,
Chico Calunga, Almir, Marconi, Ary, Coscata, Pirrita, Henrique, Paiva, Zé
Ivan... Era arte pura em futebol harmonioso
regido por um grande maestro: o João Lacuxia, que recebeu muitos convites para
jogar em outras equipes, como Guarani de Sobral, o Fortaleza, o Ceará e teve um
convite para fazer um teste no time da vila Belmiro, o Santos de Pelé, mas
resolveu ficar na sua terrinha natal, engrandecendo nosso esporte, como um dedicado e eficiente professor!
A seleção crateuense, num
amistoso bem disputado, jogava com o Ceará Sporting Clube, o querido Vovô. O Jogo também estava 1 x 1 e o Lacuxia,
inexplicavelmente, sentado no banco. O técnico Zé Bezerra o convoca a entrar,
atendendo ao pedido dos torcedores. A
zaga do Ceará atrasa uma bola displicentemente para o goleiro Lulinha que não
conhecia a explosão do torpedo Lacuxia. Ele
se antecipa chutando a bola, a mão e a intenção de defesa do velho arqueiro, no
lance que lembrou o espetáculo de um dos maiores artilheiros do passado: “E
novamente ele chegou com inspiração, com muito amor, com emoção, com explosão e
goool!” Foi tanta a emoção que seu Adalberto jogou a sua bengala dentro do
campo!
Hoje, Lacuxia ainda tem
disposição de sobra, tem coragem para emprestar a muitos dos jovens que ele ensina
e uma energia de fazer inveja quando o vemos passar correndo, se preparando
para mais um grande jogo da sua vida.
Um dia, um duende mágico do
futebol crateuense chamado Manurim lhe deu de presente o primeiro par de chuteiras,
e só se via o menino João treinando chutes, sozinho, no estádio Juvenal Melo. E
se você precisar falar com o Lacuxia e não o encontrar na Rua Farias Brito, ou
nos colégios ensinando futebol e cidadania aos jovens alunos, pode se dirigir
ao Jumelão, que ele estará lá, todas as terças-feiras, com as velhas chuteiras
mágicas, treinando um potente torpedo!
Raimundo Cândido
José Alberto de Souza disse...
Ah, mas que coisa fantástica, até parece que o espírito do saudoso Nelson Rodrigues andou baixando nesse notável cronista crateúsense!
José Alberto de Souza disse...
Ah, mas que coisa fantástica, até parece que o espírito do saudoso Nelson Rodrigues andou baixando nesse notável cronista crateúsense!
Ah, mas que coisa fantástica, até parece que o espírito do saudoso Nelson Rodrigues andou baixando nesse notável cronista crateúsense!
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