As antigas ruas do centro de
Fortaleza impregnam os pés dos transeuntes de uma doce amargura poética, fazendo
com que voltemos, fatalmente, a lhes revisitar. Penso que é uma espécie de
magia, feito imã, da Fortitudine que nos diz o seu velho brasão,
desrespeitosamente, alterado pelos seguidos gestores que se empoleiram no poder.
Pela Rua Floriano Peixoto
dobro à direita, na Rua São Paulo, e sigo para a Rua Gal Bezerril da velha
praça do herói viçosense da Guerra do Paraguai, Gal Tibúrcio. Tenho fascínio pela
Praça dos Leões, pelo Museu do Ceará, guardião do Bode Ioiô, pelo Palácio da
Luz, sede da ACL, pela histórica Igreja de N. S. do Rosário com uma fila de
moradores de rua, recebendo uma reles merendinha distribuída por padres para
enganar a fome diária e conseguirem dormir, mais uma vez, ao relento na cidade
de N. S. de Assunção. Meu coração se alegra, imensamente, quando avisto uma
velha amiga sentada no mesmo banco da praça, a escritora Raquel de Queiroz.
Percebo que um cidadão lhe faz
companhia, com orgulhosa “poses” para uma cessão de fotos. Ainda bem que ele se
retira com a minha aproximação e aproveito para uma afirmativa fortuita, dando
sinal da minha chegada.
— Vejo
que esteve em boa companhia, amiga Raquel de Queiroz.
Serena estava e tranquila
continuou com as pernas cruzadas, as mãos pousadas no colo, quando me
respondeu:
— Bom
dia, amigo Raimundo. Que bom lhe ver mais uma vez por aqui. Você bem sabe que
eu gosto da vida, que simpatizo com as pessoas felizes. Sinto um enorme prazer
em viver acompanhada, embora sabendo que a gente nasça e morra só!
Não esperou que eu me sentasse
ao seu lado, para perguntar:
— E como
está a cálida terra do nosso grande poeta José Coriolano?
Ela percebe, pelo brilho dos meus
olhos, a surpresa que me causou aquela interrogação e responde-me, antes que possa
reagir, numa óbvia pergunta:
— Sim amigo,
é verdade. Li Impressões e Gemidos de José Coriolano, um dos bons livros da
estante de meu velho pai. Vim de uma família de intelectuais, Raimundo! E Raquel
continua, deleitando-se nas recordações que ela mesma ia tecendo.
— O
Touro-fusco, cantado magistralmente em oitavas rimadas pelo poeta da Ribeira do
Poti, me trás boas lembranças. Enquanto Coriolano verseja o urro retumbante,
qual um trovão, do touro cachaçudo da Fazenda Boa Vista de Cratheús, fazendo
estremecer a terra e tremer o mato, lembra-me os touros da minha infância, na
terra dos Monólitos. Você está com tempo de me ouvir, Raimundo?
— Mas é claro,
amiga Raquel, hoje eu tenho todo o tempo do mundo!
Ela ri e continua: —
Recordo do Touro Carnaúba, da fazenda Junco. Era um boi muito bravo, de aspa
aguda, olhos de fogo, venta chamejante e preto como o cão que brigava três dias
e três noites seguidas, se assim lhe desse tempo de beber água. Já o touro
Xuíte, onde no lugar do pescoço tinha um tronco, era de um gênio ruim. Um dia ele
atacou o trem. O maquinista diminuía a marcha para entrar nas agulhas e ria,
pensando que o touro velho ia se estrepar todo ao se chocar com a máquina.
Soltou um jato de vapor quente para espantá-lo. Que nada! O Xuíte mais se
enfezou, meteu os chifres naqueles canos de cobres que correm pela barriga da
locomotiva, arrancou tudo como quem arranca serpentina num carro de carnaval. A
máquina roncou um pouco e logo parou, em cima das agulhas. Então quem teve medo
foi o maquinista vendo o touro bravo em redor, ciscando, furioso.
Tão atento estava a cada saborosa
palavra pronunciada pela escritora, que meus olhos nem piscavam. Ela continuou:
- Tem a história de outro
touro valente chamado Cabeça-Rosilha. Foi na Fazenda Califórnia, que pertenceu
a minha avó. Cabeça-Rosilha era o soberano total do curral. Apareceu um
tourinho novo, azeitão-escuro de lombo branco, chamado de Caçote. Caçote se
botou para o velho touro como se fosse um veterano, igual aqueles garnizés que
tiram uma coragem imensa que ninguém sabe de onde. Tenho certeza, Raimundo, que
se o Cabeça-Rosilha fosse o mesmo, teria dado cabo do tourinho naquela noite
mesmo. Amanheceu o dia e a briga ainda estava rendendo. De tarde, as vacas
voltaram, e os dois brigando. O chão já estava todo riscado de regos fundos só
deles cavarem a terra e havia tanto mato acamado por onde pisavam que era um balseiro
só, como se ali houvesse passado uma grande enchente. Davam um tempo, como se
ouvissem um gongo, e logo voltavam a entrelaçarem os chifres. Ouviu-se um
estalo, como de pau quebrado. O cabeça-Rosilha recuou. Estava com um chifre
arrancado, ficou só o sabugo no lugar. O
tourinho quis continuar a briga e o velho touro recuou, e recuou mais e mais.
Desceu a procura do riacho do sangradouro e sumiu no meio da mata fechada. Foi
se esconder com a sua vergonha. O Caçote era o novo dono do curral. Passou-se o
inverno, chegou o verão e todos tinham dado o Cabeça-Rosilha como morto. Um dia,
ouve-se um urro bem conhecido. Ninguém acreditou, até pensou-se em assombração
de touro velho. Depois de um ano, abandonado no meio da mata fechada, voltava o
velho touro com as duas espadas reluzentes na cabeça. Inacreditável, não é
amigo Raimundo! Pois bem, o bruto não esperou que ninguém abrisse a porteira,
meteu os ombros e voou pau para tudo que era lado. A briga foi ali, no meio do
curral e desta vez foi rápida. Ouviu-se um longo esturro de touro apanhado. O Cabeça-Rosilha
tinha levantado o Caçote pelos chifres, como quem levanta um gato. Ergueu nos
ares quarenta arroubas de touro vivo e arremessou por cima da cerca. Desta vez
foi o Caçote quem sumiu de mata adentro, no breu da noite escura.
Raquel de Queiroz estava mesmo
com vontade de me encantar com um passado bovídeo e confesso que no meio de
suas deliciosas histórias viajei, de volta ao meu querido sertão, em lapsos de
memória, para as histórias de touros na Ribeira do Poti. Regressei à Fazenda
Pereiros, de Seu Júlio Menezes, o meu avô. Lá, nas margens do Rio Poti, um
touro pintadão chamado Capote, era tal qual elefante velho, mas não podia ouvir
bramido que não fosse o dele, saía derrubando cercas até peitar o atrevido do
vizinho, que ousou lhe afrontar.
Enquanto Raquel narrava as
aventuras de Cabeça-Rosilha, eu senti as velhas emoções do Circo de Touros, onde
uma surrada empanada guardava as arquibancadas de madeira que circundavam a
arena protegida por uma forte cerca de ferro, ao lado do clube 7 de Setembro,
na Praça da Cadeia. Ouvi
os mesmos gritos (Olé! Olé!) da famosa Plaza de Toros de Madrid, vindos
do poleiro de tábuas corridas, onde o Senhor Milton
e Edmilson Menezes avolumavam a multidão sob o olhar indiferente de um avultado pé de mulungu. O indomável Touro Preto de Seu Chico Rodrigues mostrava-se como um Bos Taurus Ibericus, o verdadeiro
touro selvagem. O toureiro Curió, vencido e humilhado, pedira socorro ao toureiro
Bola Sete, um gaúcho negro, alto e experiente. Um carro de propaganda
percorrera as ruas da cidade, chamando público para a Volta do Touro Preto que
enfrentaria agora o invencível gaúcho Bola Sete.
Quando o músico Expedito Paiva
soou o trombone (Como as cornetas que derrubaram os murros de Jericó!) o Touro
Preto entrou furioso na arena, ciscava o chão com as pesadas patas dianteiras,
soltando chispas de fogo pelos olhos, mirando
à plateia. Os dois destemidos toureiros já o esperavam com uma capa vermelha na
mão e a refrega começa. Eles driblam as investidas do animal, só com movimentos
de pernas, e os afiados chifres riscam o ar atrás do capote de pano. Súbito,
todos prendem a respiração, só se ouvia o fole de ar quente das narinas do
Touro Preto soprando no rosto de Bola Sete que se ajoelhara na frente de animal.
( - É um doido! Alguém gritou quebrando o silêncio.) Como uma cascavel o toureiro dá o bote e se
atraca na cabeçorra do touro que o sacoleja como a um chicote. Estava tudo
planejado. Curió também se abraça nas costas de Bola Sete e aos pouco contém a
força do indomável Touro Preto. De
repente ouvi um chamado, distante:
- Raimundo! Oh, Raimundo!!!
- Desculpe, Raquel! Distraí-me um pouco! Pode
continuar a sua história...
- Já relatei tudo, meu amigo! Mas não tem nada
não, sei que você estava na sua terra, nas suas lembranças... Somos assim, presos
ao passado! E eu não sei se lhe parabenizo por isso ou dou os pêsames. Despeço-me,
lembrando que menti para minha amiga Raquel. Não tinha todo tempo do mundo,
pois estava na hora de voltar para Cratheús, mesmo já tendo regressado
espiritualmente. E descubro mais uma vez que o tempo presente não faz parte do
meu ser. Sou um vulto do passado, eu e Raquel. E para que melhor companhia!
Raimundo Cândido
Vultos do passado,
ResponderExcluirsendo devorados pelo futuro,
solitos no tempo presente
que se vai esvai em memórias distantes
e apaga os rastos a voltar.