Dizem que, quem muito crê,
nunca mente e quem muito confia, nunca engana. Ouvi, de um destes especialistas
em psique, que as mentiras quase sempre se apresentam em duas cores distintas: nos
momentos em que tingidas pelo negrume das trevas são perversas, são desastrosas
ou quando inócuas lorotas alvacentas, tal flocos de neve, são leves e ingênuas como
um cabritinho tentando ludibriar um lobo voraz. Escutei, deste mesmo perito em
embuste, que cada ser humano mente, pelo menos, seis vezes ao dia. Emite enuviadas
estorinhas comprovando que o ato de mentir vem construindo a humanidade desde o
surgimento do homo sapiens, há 200 mil anos. Mentir aumentava-lhes a autoestima
e continua exacerbando o nosso amor-próprio, até hoje! É, ou não é?
Bem, esse ensejo, sobre
verdades e mentiras, veio à baila num dos encontros diários dos confrades da
Academia de Letras de Crateús, quando o poeta Lucas Evangelista lembrou-se da
época de pescador, período em que os versos trovadorescos não lhe davam, ainda,
a necessária guarida, imagine o peixe. E como que numa irrefreável compulsão,
relatou:
—Professor, já se dissipavam
os últimos raios de sol no horizonte e eu ali, na ponta da parede do açude,
concentrado na linha amarrada na ponta da vara de marmeleiro. Já havia pego
algumas traíras e percebi, pelas beliscadas na isca, que aquela era bem grande.
Por sobre minha cabeça passava bandos de marrecos e patos. Eu só ouvia o ti ti
ti deles. A traíra fisgou e eu soqueei o anzol de uma vez. Quando o peixe voava
sobre minha cabeça ouvi um barulho diferente, assim como um rrei... rrum... zuuumm...
de algo girando. Foi tão forte que tomou a vara da minha mão e tudo foi cair lá
atrás da parede. Assustado, eu disse: — Que foi isso, meu Deus? E corri para
ver. Mas professor, a linha do anzol estava toda enrolada no pescoço do pato
que se debatia junto à traíra, como se fosse cachorro e gato brigando. Se
quiser acreditar, acredite, mas você sabe que nunca fui homem de mentir.
O poeta Cancão até perdeu sua
discreta fidalguia e, pasmo, olhou-me como a dizer: “Raimundo, aqui está
ficando igual aos discursos dos políticos quando nos comícios! ”
Participei de boas pescarias, mas
dizem, por aí, que eu só pegava peixe enlitrado. O que gostava mesmo era de
ouvir as estórias de pescadores. No momento em que fervilha no sangue uma incontrolável
mitomania de beira de açude, ou das margens do rio, comendo pirão quente de
curimatã, os relatos vão borbotando, livres, inquietos, cada um mais esmerado
que o outro. Foi num destes momentos aquáticos que conheci o melhor pescador da
Ribeira do Poti.
Antes de perder o afã fluvial,
o Rio Poti vai deixando piscinas repletas de peixes por toda interrupta extensão.
A mais piscosa delas é o Poço Piau, e é quase um sagrado estuário no Distrito
da Ibiapaba. Nele, o menino Luiz dissipou sua infância, e agora sazona a vida adulta,
modelada, dissolvida no líquido palco da vida. De tanto mergulhar nas águas do
Piau seu corpo passou por uma mutação interna, para adaptar-se no âmago das
águas, provando que somos obra-prima em evolução. Mostrou-me as mãos calejadas,
mordidas de piranhas, e um dos braços com uma bocanhada dos dentes de um jacaré.
No causticante sol do meio dia apresenta-se como se tivesse saído de uma
geleira. Ali, nas areias do rio, aprendeu a arte da paciência com a candura das
garças, que armam o pescoço como flecha tensa para um disparo fatal. Copiou as
artimanhas do socó, que suspenso no vazio, como que pousado nas plumas do ar,
dispara um mergulho certeiro e sobe com o peixe no bico. E as experiências destes
pescadores passam, de geração em geração, ao decifrarem os segredos do rio, nos
murmúrios das correntezas.
— Eu sempre peço permissão a
Jesus Cristo, com o sinal-da-cruz, quando vou entrar na água. Depois é só mergulhar,
sem nada, e trago o peixe que quero! Afirmou-me
Luizão, na simplicidade da certeza absoluta e senti que, naquela consideração,
por um simples poço e por uma profissão, está um elo poderoso e sagrado que o torna
excepcional pescador dos barrancos do Poti. É um exímio pescador e com as mãos.
Continuei explorando as técnicas do aquaman crateuense. E ele prosseguiu:
— Presto bem atenção no feitio
da água. Chego à beira e vejo a maneira do peixe se mexer. Pode ser a lapada do
Cari, ou da curumatã, são quase do mesmo jeito. Quando são os corós a flor da
água vai ficando ondulada. Mas tem que ter um olhar preciso, para poder ver,
senão você vai achar que é o vento a correr. Quando ocorrem uns beijinhos na
lâmina d’água, são as piabas brincando ou branquinhas dançando, mas com certeza
os grandes estão por ali. Para pegar traíras, você tem que ouvir aonde elas estão
a comer, aí e é só armar um espinhel por lá.
Ousei fazer um desafio ao
grande pescador: — Luizão me tire agora, com as mãos, um peixe das águas do
Piau! Ele olhou para o sol a pino, não para sentir os causticantes raios no
rosto, mas para constatar que não era a hora do peixe. E os banhistas estavam
em total algazarra, mas foi! Atravessou a nado o velho poço até as pedras altas
da margem oposta e começou a mergulhar. Submergido, tateando nas locas da
pedra, enxergando com as mãos numa impossível visão aquática.
Sei que uma pessoa normal pode
suportar até dois minutos sem respirar. Em certo momento tive receio de que o
pescador não voltasse à tona, pois extrapolará, e muito, o limite sem
respiração. Luizão nada de volta e trás só um cari bodó na mão. Justifica: — O
poço já foi muito pescado, meu amigo, e o peixe não gostam de barulho não!
Mesmo com os quatro anos
cruéis de estiagem, todos os açudes esturricados de secos, o milagre do peixe
ocorrem nos Sertões de Crateús, como há 2 mil anos no Mar da Galileia: “—Faze-te ao largo, e lançai as vossas redes para a pesca.” E Pedro pescou o que nunca havia pescado
antes.
E recordo-me de outro distinto
Luiz, outro bom pescador. Sempre que a professora Maria Delite queria saborear
um pirão de piau chamava o Luiz Junior, um parente pescador. — Luiz peça
permissão ao Milton Menezes e vá pescar uns piaus no açude dos Pereiros. Ela
pedia.
E lá estava o Luiz na beira
d’água, já colocara o galão paralelo a uma velha cerca submersa, encostara a
câmara de ar e se deitara numa rede armada em duas estacas enfincadas no chão.
Pitava um cigarro de palha, olhado o céu estrelado, quando notou um claro,
caminhando pelo cercado. Era um vermelho que se azulava vindo ao seu rumo.
Senta-se na rede e espera que a pessoa chegue, para saber o que quer, pois ele
tinha permissão para pescar. A cena se repete diversas vezes e o corajoso Luiz fica
a imaginar que marmota era aquela. Grita alto: — Quem pode mais do que Deus?
Mas percebeu que aquela visagem era surda. Não esperou os primeiros raios de
sol, no escuro mesmo retira a rede cheia de peixes e deixa para despescar
depois, pois o seguro morreu de velho e o medo só se acaba no caminho de casa.
Quantas vezes eu estive,
resignado, com um anzol na água e com o peixe a me ignorar, mas via no reflexo
do rio a doce poesia das estrelas a cantar, como o poeta Lucas Evangelista que
vende seu peixe de ilusão nas feiras, com todas as mentiras do mundo, de Deus
ou do diabo, pois aprendemos com os pescadores, e bem antes da Física Quântica,
que o universo é nada mais nada menos que ilusão. Então eu lhes convido meu
caro amigo leitor, vamos pescar: poesias e mentiras, antes que as velhas verdades
virem piabas a nadar.
Raimundo Cândido
Pois foi no porto do Piau, que dava para ver da nossa casa, que aprendi a nadar num cavalete de Mulungu.
ResponderExcluirLarga a maleta no chão,
ResponderExcluirjunta as nadadeiras em prece,
seu corpo ereto e ajoelhado, suplica:
“Não me mate, seu moço,
sou dentista de traíra”.
Excelente texto, Raimundo Cândido. Parabéns.
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