Fazenda
Ponciano
Uma robusta aroeira revestida de
casca cinzenta e escamosa, com nós no tronco a mostrar o cerne incorruptível de
uma madeira imputrescível, resistiu aos vendavais do tempo, ao crestar de raios
impiedosos e ao perverso machado da mão dos homens. Escapou de ser uma mera estaca,
uma singela viga ou um roliço mourão de cerca nas fazendas dos Sertões de
Crateús. Hoje é um longevo ser,
indivíduo lenhoso, leal e centenário que, firme e de pé, guarda as histórias e
os segredos que se passaram nos terreiros da Fazenda Ponciano. Sente a ausência dos antigos companheiros, uns
velhos mulungus copados que degringolaram, não resistiram à corrosão das eras,
e eram aonde se amarravam os animais que chegavam às terras do rico fazendeiro
João de Melo Matos.
Em frente ao conservado
casarão, e olhando aquele honrado tronco de aroeira, fiquei a captar suas histórias,
como que absorvendo por uma estranha e vegetal osmose. Sussurro de vento foi o
que me pareceu a voz daquela árvore anciã, relatando-me o passado. Ouço,
atentamente, aquelas confissões arbóreas e me dispus a transpô-las para um
papel, como me solicitou a velha guardiã do Ponciano.
“Houve um tempo de muita fartura,
uma época de abundância por aqui. E o que faltava, era só o que não era
necessário!”. Bem atencioso fiquei, do começo ao fim, àquela história! E a falante
planta prossegue, relatando-me as suas memórias:
“A Fazenda Ponciano foi
assentada no topete deste pequeno morro para fugir das cheias do Rio Poti. Nas
chuvas torrenciais, aquela vigorosa grota que tem o mesmo nome do local, ajudava
o inconstante rio a isolar o casarão do resto do mundo. Bem aí, onde você está
parado, estendia-se uma movimentada trilha por onde passavam os transeuntes, a
pé ou a cavalo, rumo ao longínquo Curral Velho. Quem passasse, fosse quem
fosse, em frente ao casarão do Ponciano de Seu João de Matos, tinha direito a
uma tora de rapadura e a saborear um naco de queijo, expostos num cepo de
madeira, enfincado perto do calçadão.”
“Olhe ali, para o alpendre da
fazenda, naqueles armadores ficavam descansando os arreios, as peias, as cordas,
os cabrestos, as rédeas, os brides, as esporas, os baldes, as esteiras, os
gibões, as celas, as cangalhas e tudo que um vaqueiro precisa para começar o
traquejo do dia, bem cedo, ainda no escuro da manhã.”
“Sob as ordens do Senhor João
de Matos, que participava de tudo, desde a ordenha matinal das vacas no curral,
até o tanger de ovelhas no entardecer e todas as atividades agrícolas eram
realizadas por um batalhão de pessoas que residiam no Ponciano. Quando se deitava
numa rede estirada na varanda, para fazer o balancete do dia, a Dona Maria Rezende
de Matos Melo, sua esposa, vinha lhe servir uma xicara de café quente.”
Eu via somente os ressequidos
galhos da aroeira contrastando com o céu azul, e ficava a imaginar de onde
poderia vir aquela voz: Seria dos rombudos nódulos do tronco?
“O quintal era enorme e fazia
gosto de se ver: Os perus, os capotes ariscos, as gordas galinhas e até os
exibidos pavões desfilavam, ciscando no terreiro. Mais afastado, devido ao
aroma característico, havia o chiqueiro de sujismundos porcos. No curral de gado, construído
com caules das carnaúbas, que ficava ao lado direito da casa, estava a vacaria
que produzia a principal mercadoria da fazenda e ainda sobrava leite para a
gostosa coalhada e para tantos queijos, que chegavam a petrificar na tábua da
dispensa. Vi um queijo de quilos, já pedrento, servir de escora para uma porta.
Mesmo com Seu João de Matos, cutucando com um gravetinho de madeira o vão entre
dois tijolos do piso, só para tirar um carocinho de feijão perdido e retorná-lo
aos tambores da despensa, ali era a casa da fartura.”
A velha aroeira, percebendo
minha admiração por suas histórias, continuou: “Quem sabia contar realmente
historias, e das boas, era o negro João Mariano que vinha do Quirino de Cima para
cá, em época de matutagem.”
Incrível, mas aquela velha árvore
estava mesmo lendo meus pensamentos, captando meus sentimentos, sem que eu perguntasse,
e como que debochando de minha ignorância, explica-me:
“Matutagem é como se chama a
matança de gado nas fazendas do sertão. Toda semana se matava um boi no
Ponciano. Vinha gente dos outros locais, que também eram propriedades do senhor
João de Matos: das Melancias, da Grota, do Quirino de Cima, do Lago, da Cana
Brava e da Taboa. A animação durava o dia inteiro, e o melhor era ver a lua
prateada no céu estrelado, ouvindo o negro João Mariano, sentado num tamborete,
contando as suas assombrosas histórias, até a meia noite.”
“Uma multidão, o Seu Júlio, o
Milton, o Wilson, o Manoel Joaninha, o Antônio Filó, a Janoca, o Vicente
Damião, o Manoel e o João Palhano, o Cosmo Viana e alguns fazendeiros que
moravam por perto, faziam um círculo ao redor do negro contador de lorotas. Alguém,
lembrando-se das suas gabolices anteriores, ia logo perguntando: — Mariano e
aquele marruá preto, ainda tem aparecido no Quirino? O negro, um individuo alto,
que pela aparência se dizia logo que era um pelejador de roça, mas o vivo olhar
denunciava a inteligência fina, respondeu: — Nem me pergunte por aquela
assombração desgarrada, meu amigo. Quando eu vinha andando pra cá, estranhei o
silêncio da mata. Parei e fiquei atento aos vultos nas veredas. Nada! Mas meus
cabelos continuaram de pé, eriçados! Quando olhei pra trás, vi as duas tochas
de fogo no breu do escuro. Era ele me farejando. Eu corri, da beira do rio até
aqui, mais rápido que um mocó em loca de pedra. Outro dia, o touro endiabrado,
acompanhou o Trem de cargas que passa na madrugada, até tangê-lo para fora das
suas pastagens, a gente só ouvia os cascos dele pisando o chão duro, misturado
com o som do mastigado das rodas de ferro nos trilhos.”
Quis perguntar algo a mais
sobre o negro Mariano, mas lembrei-me que a aroeira usava da telepatia, tinha
poderes extra-sensoriais. Respondeu-me:
“O Negro Mariano morava, com
duas irmãs, na propriedade do Senhor João de Matos, chamada Quirino de Cima. Era
uma época em que não existiam esses aparelhos mágicos que relatam fatos para as
pessoas. E no Ponciano, o contador de história, deu um espetáculo de fabulação.
Disse que foi pescar de linha, já tarde da noite, no poço assombrado na beira
do Rio Poti. Já estava irrequieto, pela ausência do peixe. E na impaciência
gritou, assim: — Tomara que eu pegue um peixe, nem que seja pelas artes do
diabo! Neste instante algo começou a fisgar no anzol. Morde firme. Ele dá um
puxarão pra fora d’água e o bicho se estatala no chão. Quando olha, vê um
tiçãozinho de gente, mais parecido com um macaco, dando umas rasteiras na areia
e convidando o Mariano: — Vamos Jogar capoeira, meu negro!”
“As histórias de João Mariano
continuariam pela noite adentro, se a plateia não lembrasse que no Ponciano não
havia dias de folgas. Logo de manhã cedo estão todos no batente, na labuta novamente.
Os arreios, as rédeas, a cangalha e as esporas trabalham de domingo a domingo”
Já estava me sentido como um daqueles
velhos mulungus, nos seus dias de fim, com suas raízes aparecendo no ar pela
erosão das águas e do vento, quando olho para o casarão e não mais vejo aquilo
que existia outrora, o bucólico Ponciano do Senhor João de Matos, o Pudidi, avô
da Dona Delite. Tudo agora é outro tempo, outro lugar, outra vida. E a velha
aroeira que me pareceu mais triste, mais desiludida, ainda consegue me dizer,
num choro implorado: “Amigo, escreva no papel que o meu passado não quer se
calar!”
Raimundo Cândido
“E ai de quem me derrubar
ResponderExcluire depois tocar fogo no tronco cortado,
há de arder nas chamas do inferno
com um’alergia pra castigar esse herege!”