A água que é um bem limitado,
valiosíssimo e irresponsavelmente desperdiçado, virou motivo de piadas: -
Raimundo, você soube do caminhão de cargas que assaltaram na estrada de Novo
Oriente?
Caí, inocentemente, na
brincadeira: - Soube não! E o que levaram? O gaiato cidadão, em disfarçado deleite,
num sorriso cínico, respondeu-me: - Você me acredita que eles só quiseram levar
a água do radiador do carro!
Na crise hídrica se agravava,
cada vez mais, de 2011 até o início de 2015, o desespero era iminente! A
Barragem de Cratheús, sobre o leito do Rio Poti, a primeira grande obra feita
pelo saudoso 4º Batalhão de Engenharia e Construção, logo que por aqui chegou,
mostrava, novamente, as entranhas estripadas, num aspecto funéreo, macerada,
com cinco décadas de acúmulo de lodo e lama no seu bojo. O ano mal começava e
já trazia duas grandes ameaças para a cidade, a volta do pesadelo do Quinze,
depois de cem anos, e as derradeiras gotas de água potável, estavam sendo distribuídas
para a preocupada população. Mesmo com a moderna tecnologia sugando a seiva
aquosa dos veios subterrâneos e canos emendados para aduzir água do longínquo Açude
Araras, o povo só mostrava fé na providência divina.
A cômica piada, do amigo
brincalhão, me fez viajar por lembranças ressequidamente aquosas. No dia 17 de
Fevereiro a Igreja Católica, através da Paroquia Imaculada Conceição, planejou
a Caminhada das Águas para rogar por chuvas, e os fieis, guiados pelo Pe. Beto,
escalaram um imenso bloco de pedra, no centro da Barragem, oraram
fervorosamente e enfincaram um enorme cruzeiro na rocha, implorando águas aos
céus. No outro dia veio uma chuva copiosa que apagou a ameaça do famigerado 15
e atiçou a esperança dos devotos crateuenses. Admiro a crença do povo nos travessões que se
cruzam, no elo que liga a terra aos céus e aonde se travou o maior duelo entre
a vida e a morte. O sertanejo a reverencia: “Salve, Ó Cruz, Tu és a nossa
esperança!”
Uma seca cruel, uma cruz milagrosa
e chuvas a cair dos céus não foram, e nunca serão, eventualidades na Ribeira do
Poti, no sofrido Sertões de Cratheús. Como o protesto da Romaria das Águas, em
Novo Oriente, contra a transposição de 7 milhões de m3 de água por
uma terra ressequida, do Açude Flor do Campo para o Açude Carnaubal, com ordens
de um autoritário governador, ocasionando um enorme desperdício de água potável
e deixando, de sobra, um crime ambiental no leito do rio.
O Pe. Alfredinho já dera sinal
de uma sublime influência, quando, em 1983, logo ao encerrar um sacrifício
habitual, com a Cruz de Cristo nas mãos, e de súbito, cai um aguaceiro enorme,
depois de três anos seguidos de seca. No ano de 1884 ele tinha enfincado a
Santa Cruz dos Flagelados no canteiro de obra do Bolsão da Santa Fé, quando um rígido
comandante do Batalhão ordenou: “Se ele não tirar essa cruz daí, podem derrubar,
e a fio do machado!”
A “Procissão dos Flagelados” é
o livro do crateuense José Hortêncio de Medeiros, editado em 1953, onde ele
narra uma viagem que fez de Pau-de-Arara, em 1932, ano de outra seca braba. Ele
saiu de fortaleza para passar as férias em Cratheus e viu coisas horrorosas no
campo de concentração dos flagelados, em São Luiz do Curu, onde o Governo do
Estado acumulara dez mil pobres almas construindo a estrada de rodagem
Fortaleza-Sobral. Ele diz: “Nos acampamentos um cheiro de morte impregnava o ar.”
E, ao chegar a Cratheús, assistiu a uma
desesperada procissão de fiéis levando uma cruzeiro ao túmulo dos revoltosos. Os
crateuenses esperavam que os milagrosos guerrilheiros tivessem forças suficientes
para abrir as torneiras do céu, era a última cartada de esperança dos
sertanejos.
Ao ler o livro de José
Hortêncio, lembrei-me de uma penosa história que o Dr. José Arteiro Soares Goiano,
um confrade da ALC, me contara:
- Raimundo, minha mãe, Dona
Cotinha, sempre falava de um trágico episódio. Ela nem tinha nascido, e só ouviu
pela boca de meus avós o que se passou na Sombras, o lugar onde eu nasci, que
fica depois do povoado de Santo Antônio dos Azevedos. Era o ano de 1915, ano da grande seca, o sertão
estava num desalento só. Tudo parado, num silêncio pesado e a monótona cor de
cinza no chão era quebrada, aqui e acolá, pelos ossos brancos dos animais, só
se via carcaça espalhada pelos descampados do sertão. Às vezes, o som de um
galho quebrado na mata só aumentava a melancolia, e mais pesava na alma daquela
gente.
O Dr. Arteiro continua o
relato sobre a procissão de flagelados que passaram na Sombras, a fazenda dos
seus avós: “Água era coisa muito rara, a não ser nos locais que tinha um
cacimbão na beira do rio, e assim mesmo tendo que, constantemente, rebaixar o
seu porão para alcançar um novo veio d’água. Na Caatinga, só se sentia o bafo
de quentura, como se saísse das brasas e o único verde que havia era dos
Juazeiros e dos Mandacarus que escaparam de virar ração para o gado. Era mais
de uma família, os retirantes que chegaram na Sombras. Os velhos e as crianças estavam visivelmente exauridos, em letargia
total, num torpor de não se saber se estavam vivos ou mortos e vieram
caminhando, lá do lado da Vaca Brava, na Independência. Disseram que estavam
arranchado debaixo do Juazeiro da Lagoa Grande e ouviram um chocalho
tocar. Um deles se levantou e caminhou,
no rumo do badalo e com poucos metros viu a casa do Seu Herculano das Sombras,
onde foram todos bem recebidos.”
O Doutor prossegue: “Minha
avó, dona Genoveva, rapidamente preparou uma miraculosa Cabeça de Galo com
água, sal, pimenta, farinha, temperado na nata e bastantes ovos de galinha, que
é o alimento propício para quem está muito fraco. Eles se refestelaram e alguém
até pediu um cigarrinho de palha ao meu avô. Foi quando minha avó ouviu uma
conversa, entre eles: - A gente devia de ter trazido o coitadinho, talvez ele nem
estivesse morto! Minha avó perguntou: – Vocês deixaram alguém pelo caminho? – Deixamos um menininho, mas achamos que
estava morto. Ele ficou debaixo do Juazeiro!”
“Eles correm para chegar
depressa no Juazeiro da Lagoa Grande, que ficava ali pertinho e se assustam com
a cena de horror que viram: Os urubus arrancavam os olhos de um menino de uns
nove anos. Notam o corpo do menino ainda quente e ficaram na dúvida se não
estava vivo quando o abandonaram! E uma cruz, enfincada debaixo do juazeiro,
marca o lugar do infortúnio cruel no ano de 1915, na fazenda Sombras, de Seu
Herculano e dona Genoveva.”
Lá fora caia uma chuvinha fina
a confirmar que o 2015 não será como aquele de há cem anos e até que eu já
sabia disso, pois um profeta da Independência, na Fazenda Ipanema, o cabo
Ocelio, mandou me visar: - Raimundo, meu amigo, pode acreditar, eu vi no suor
do sovaco do peba, é muita chuva que vem aí, o inverno está para chegar!
Eu prefiro acreditar naquela
cruz debaixo do juazeiro da Sombras, na cruz dos Famintos da Santa Fé, na cruz
enfincada no pedregulho da Barragem do Batalhão , elas parecem ecoar a meiga
voz do Pe. Alfredinho, num glorioso
sermão: “- Dá cruz da Santa Fé, mais uma vez, morre e nasce a vida no sertão!”
Raimundo Cândido
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