O lugar mais bonito do mundo, atestam
alguns saudosistas, é aquele que trazemos guardado no recôndito do coração. Esse
belo ambiente, habitualmente, é uma colina repleta de árvores frondosas, com
uma ligeira declividade para um rio que abranda o clima, que revitaliza a fauna
e reaviva a flora verdejante. Todo local com essas características é,
naturalmente, designado de Boa Vista. No Sertão de Cratheús existiu a fascinante
Boa Vista dos Correias, que ficava no começo da estrada carroçável e que é a continuação da
Rua Frei Vidal da Penha, a antiga estrada principal de quando éramos um povoado
chamado Príncipe Imperial. Um paraíso predestinado às deslumbrantes paisagens, às
telúricas poesias e ao celeiro de gente da mais alta estirpe.
Ali, no patamar da Boa Vista, no
inicio do Século XIX, o poeta José Coriolano, mal entrara na adolescência dos 14
anos, já ruflava asas sonhando com um longo voo ao sem fim do mundo poético. Naquele
terreiro de fazenda, muitos anos depois, Cícero Marçal, o encantador de cavalos,
confabulava com seus equinos machadores para que orquestrassem os passos no
desfile pelas ruas da cidade, como se fosse num grande picadeiro de circo.
Ali, naquele bucólico sertão, na
casa da Dona Iaiá, mãe do menino João, um radinho de pilha tocava as músicas da
Jovem Guarda nos anos 60 e, aos domingos, se juntava um grupinho de rapazes,
para torcer pelo Botafogo carioca, onde um tal de Mané Garrincha fazia as suas estripulias,
dançando com a bola no pé, deixando os adversários tontos de tanto dribles
desconcertantes.
Num campinho, entre as moitas
de mufumbo e espinhentos mandacarus, um menino de 14 anos já mostrava as
habilidades de Garrincha e alimentava um sonho. Sonhava como o poeta Coriolano sonhou, em levantar
um longo voo, do patamar da Boa Vista rumo ao sem fim do transitório mundo da
bola de futebol.
Às vezes, inexplicavelmente, a
fatalidade interrompe a fantasia das crianças. E o destino não quis que o sonho
de João se materializasse. O menino driblador se viu com uma repentina dor no
pé, que subia rapidamente pela perna. O Dr. Luiz Chaves e Melo e o medico do
Batalhão, Dr. Zé Fernandes, detectam
paralisia infantil nas pernas e nos anseios de João. Mesmo com injeções diárias,
aplicadas pelo Chico Saia Veia, um enfermeiro prático que andava impecavelmente
de branco, a doença não cedeu e entorpeceu as pernas do menino, que passou a
andar de muletas.
Muitos sucumbem com os
reveses, mas João sobreviveu, sustentou-se nas asas de um sonho e na arte de
tocar realejo, sanfona, bandolim, e o Calunga renasceu, transcendente para o
futebol, jogando pelas pernas tortas de outros meninos no time que formou: O
famoso Botafogo do João Calunga!
Foram tantos os meninos bons
de bola: Gonçalo, Piranha, Bugre, Chico, Baião, João Henrique, Rildo, Robério,
Edmar, Deoclides, Berreca, Franklin, Olavinho, todos orgulhosos de ostentarem a
Estrela Solitária no peito, e davam um espetáculo digno dos melhores times de
futebol dos bons tempos, corriam pelo chão duro de terra batida do Campo dos
Vencedores, como se jogassem pelo verdadeiro Botafogo de Garrincha e em pleno
Estádio do Maracanã.
João Calunga era instrutor,
amigo e pai para aquela garotada e a concentração do time era na casa da Ponte
Preta. Muitas vezes, ao término de um jogo, em particular, chamava um dos garotos
e aconselhava: - Meu amiguinho, você entrou muito duro naquela jogada. Isso foi
desleal! Não faça mais isso não! Um carrinho daqueles pode acabar com vida de
um atleta. E ali, abraçava o protótipo do zagueiro violentão, sabendo que o
futebol tem destas coisas mesmo, mas sempre preferia o jogo da compreensão e da
paz, como fez questão de levar a vida, embora cheia de reveses.
Às vezes, pelas dificuldades
financeiras, ele chamava o melhor jogador da equipe, o Robério, para ajuda-lo na
costura das bolas que estavam se rasgando. Chegaram a cortar couro para, eles
mesmos, com agulhas e suvelão, fabricarem as redondinhas que enchiam os olhos
dos pais dos meninos que iam assistir aos jogos no Campo dos Vencedores.
Convite, para jogar fora de
casa, nunca faltou, desde quando o jogador Edmar Soares passou a relatar, por
telefone, o dia-a-dia do Botafogo do João Calunga num programa desportivo da
Rádio Educadora. Era uma multidão para assistir os meninos do João Calunga jogando
nos campos do interior, no campo do Cremilândia , no campo do Cruzeiro, e nos
campeonatos dos bairros onde a estrela solitária crateuense sempre brilhou. Mas
era para isso mesmo, como um técnico disciplinador e exigente que até nos
treinos apitava falta quando Robério, o craque do time, chutava com a perna
direita, pois queria-o chutando com as duas pernas e o atleta ficou ambidestro.
Imagine, e já era um perigo com uma perna só!
Como o próprio João, evoluído
espiritualmente, o Botafogo também prosperou, e formou-se um time de adultos. Foi
quando luziram grandes estrelas como Mazola, Pai-da-Mata, Nonatim Teixeira, Nene
Pagão, Vieirão, Chico Rufino, o grande craque Nicolau Matos, mas a maioria dos
jogadores era de oleiros, que saiam das fábricas de tijolos, direto para os
treinos, ainda lambuzados de barro. Atletas que, verdadeiramente, tinham amor
ao time e ao futebol, bem diferente da maioria de hoje, que só “suam a camisa” ouvindo
o tilintar do dinheiro.
Mesmo a mais forte das árvores
um dia cansa e, se desvanece em pó. João trazia a vida restrita no peito, o
prazo se venceu e ele se foi. Foi para o lugar das estrelas solitárias, na
certeza de que deixou uma sementinha plantada no Campo dos Vencedores, no Campo
do Cruzeiro, e em todos os campinhos de futebol dos Sertões de Cratheús. E, na
abobada do firmamento, uma estrela solitária olha para o sertão de Cratheús e
aplaude.
Aplaude o Edvan Vieira Barros,
da ASSEJOC, por continuar o seu digníssimo trabalho com os jovens atletas crateuenses,
regando esperanças, acendendo sonhos, revelando talentosos e os enviando para o
Ceará Sorting, para o Tiradentes e até para os grandes times do Sul do País.
Um dia João Calunga, como uma estrela solitária no
firmamento, já sem muletas, aplaudiu cada lance, e até chorou de alegria pela
realização da 1ª Copa João Calunga de Futebol de Base para garotos entre 15 e
17 anos. Calunga, com o coração povoado de saudades na imensidão dos Céus, aplaude
os meninos, que despontam para o futebol, neste difícil e isolado sertão. E
quem o conheceu sempre escorado numa moita de mufumbo na lateral do campo, dando
instruções àquela meninada, também o aplaude! E aplaudimos, como tendo feito um
belíssimo gol de Garrincha, porque constatamos que o seu trabalho proporcionou
e continuará proporcionando o fruto da dignidade, da cidadania e da
emoção. Valeu, grande João Calunga do
Botafogo, senhor absoluto do Campo dos Vencedores!
Raimundo Cândido
Até que enfim mais uma
ResponderExcluiresplêndida prosa poética
de um grande encantador de ouvidos
daí desta mitológica Ribeira do Poti,
continue por favor!