Quem trafega pela CE 362, que
transpassa o Distrito de Taperuaba, município de Sobral, observa um pico bem ao
longe, do lado oposto à monumental Pedra da Andorinha, é a Serra da
Caminhadeira. Lá viveu Vicente Lopes Vidal de Negreiros, o famigerado Vicente
da Caminhadeira, um valentão chefe de um bando de cangaceiros e inimigo mortal
de outro intrépido cangaceiro, o crateuense Alexandre Mourão. As crianças de Taperuaba
ouviam os mais velhos recitarem os versos que falavam da vida daquele facínora,
com o famoso rifle canário na mão: “Quando o canário abre o bico / turva-se o
tempo, meu bem / chore quem tem que chorar,/ que não sou pai de ninguém”
Por
ali, um magérrimo menino, aproveitando uma enxurrada recente a escorrer no meio
da rua, construía uma barragem de brinquedo, mostrando sua engenhosidade
precoce, pois, de tanto ouvir os versos sobre o cangaceiro Vicente, confundia
sua baladeira com um bacamarte e já se achava um destemido cangaceiro também,
mas maturava mesmo era a laboriosidade e as artimanhas de um poeta Cancão, que
se revelaria mais tarde.
Mesmo
com as agruras que a vida nos impõe, o jovem Humberto Paz, com sua eterna magreza,
foi batalhar, foi estudar, foi subir os patamares que só os artimaniosos
meninos conseguem alçar. Em Itapagé, onde viveu sua adolescência, deixou marcas
nos bancos escolares e, com uma viola na mão, cantou Raul e Fagner pelas
calçadas e bares da vida. Depois de
muito ralar e de muito penar, se viu com um diploma de Engenheiro na mão,
carimbado pela renomada UFRN.
E andou, e vagueou, ganhando
experiências, sapiências, agudezas, enredos, ardis para a concatenação numérica
e vocabular e, de tanto bater asas pelo mundo acabou pousando no sertão de
Cratheús para construir a imensa Barragem do Realejo, mas isso ele já sabia
fazer desde criança. Engenheiro laborioso, preciso no prumo e no olhar, foi
deixando sua arte em tudo que se propunha a realizar. O Teatro Rosa Moraes foi
um exemplo da exatidão métrica dos números e foi um reflexo arquitetado para
que a cidade se orgulhasse de um monumento grandioso saído da mente de quem
verseja os números e numera as letras.
E
assim projetou, com carinho e afeto, a Biblioteca Norberto Ferreira, para os saborosíssimos
livros que ele mesmo iria “devorar”, em honra ao avô que lhe apresentou a magia
da leitura na campestre e bucólica Taperuaba. Projetou e construiu o Ginásio
Poliesportivo Deromir Melo para que as crianças pudessem desenvolver suas irrequietas
artimanhas com tranquilidade. Conseguiu erguer o interminável Terminal
Rodoviário da cidade, e foi edificando um prédio aqui, estampando outro ali, e depois
do benfazejo açude em Bom Jesus, assentou inúmeras barragens pelo sertão onde
só se viam redemoinhos de poeiras, tudo isso como um caprichoso João de Barro
que a tudo apura e averigua os prós e os contras, cristalizando, o que antes
eram simples ideia no papel, em sólidas obras no ar.
Um
dia o destino gritou bem alto e disse: Te aquieta, Cancão! Tu tens agora outra
missão! E um aneurisma na aorta apaziguou sua ânsia de concretizar os monumentos,
para que ele, pacientemente, solidificasse os momentos da vida em arte e
poesia. Disse-lhe um amigo, o Júnior Bonfim, também um poeta metido a bonachão:
“É, meu camarada, os versos não têm idade. Alguns nascem, crescem, permanecem
invisíveis, nunca perecem e, um belo dia, aparecem.”
A
poesia que vinha amadurecendo em Humberto Paz, estava engarrafada num tonel de
carvalho como um bom vinho, vinha pegando textura e sabor de uma “uva” plantada
lá na infância, talvez originados naqueles versos louvando o cangaceiro Caminhadeira,
quem sabe. E no seu livro intitulado
“Quase Poesia” (Mas espia só!) saboreamos esse petisco: “ Dizem que o tempo não
para, / porém não é bem assim! / Apesar do que parece, / Quem ama não
envelhece. / O tempo lhe será leve / que nem a luz do luar, / o voar dos
colibris... / Com toda sinceridade, / Sua maior felicidade / É ver o outro
feliz”.
Dizem
que os bons poetas andam flutuando, percebem o mundo num ângulo de 180 graus e
até parecem distraídos, mas, como o pássaro cancão do sertão, notam tudo, a
tudo observem captando a essência e o cerne invisível das coisas que somente os
seres iniciados em mistérios são capazes de ver. Chama-se Pareidolia, o estímulo
vago e aleatório de enxergar o que não existe bem no seio na terra, no meio das
nuvens, entre os galhos secos, nas pontas das pedras e foi na construção de um
açude, enquanto uma máquina arrancava troncos e raízes que o construtor/poeta
ordenou para o tratorista: - Para! Para! Para! E retira do meio dos escombros um intrincado
pedaço de raiz e diz que é um animal, um belíssimo teiú arborizado. O que num
pensaram os coitados dos operários de uma situação daquelas! Culparam o sol
quente, na certa! E de lá pra cá nunca
mais parou. Suas peças de resquícios da Caatinga, pedaços de paus e amontoados
de pedras, é uma das mais belas coleções, obras de arte captadas no eito do
sertão e intitulada: Natureza e Poesia.
Um
tronco de aroeira que parece um libidinoso bode bodejando, a ponta de uma
estaca é um pangaré trotador e, se fosse para um bom artesão esculpir não
ficaria igual, uma lasca de pau que é um peixe nadando no Rio Poti, um cipó encurvado
é uma cobra pronta para dá um bote. Há uma tora de pau que é um boneco
indecoroso com todos os apetrechos e penduricalhos de gente, tem um tal de
cancaossauro, um tal cibitulino, um tal saciriema, um cavacopeixe, um
dinoceronte todos de gravetos encurvados e os mais diversos objetos montados em
pequenas pedras: Uma flor, um jogador de futebol, todas as marcas de carros já
produzidos pela indústria automobilística estão lá, um fusca, o fiat, um
ônibus, e diversos caros de luxo...
Bem, para explicar isso, só
mesmo vivendo a vida que viveu o Dr. Humberto Paz, o famoso poeta Cancão, mas
eu acho, penso eu, que foi um inútil capricho do destino, tirar um cidadão de
uma vida produtiva na gloriosa engenharia, construindo obras utilíssimas, para
coloca-lo no meio da sequidão dos açudes, nos leitos extenuados dos rios para
procurar gravetos, raízes e pedrinhas... Sei não, esse destino é meio sem tino
mesmo, eu acho!
Parabéns, poeta Cancão,
engenhoso pelejador das palavras e grande artesão dos resquícios da Caatinga!
Raimundo Cândido
Alguns diziam
ResponderExcluirque ele como engenheiro
era um bom poeta
e outros ainda
que, como poeta,
um bom engenheiro,
pois, dois ideais
uma só expressão.
Seu texto é um lindo presente para mim, professor Raimundo Cândido! Guardarei com muito carinho. Só um grande e "engenhoso pelejador das palavras" como você para falar assim tão bem de outro! Conseguiu dizer com tanta beleza e precisão exatamente aquilo que nós, pobres mortais, passamos a vida inteira tentando dizer e nunca conseguimos. Parabéns aos dois! Parabéns a todos que enchem nossa vida crua, de versos e imagens detonadores de beleza! Obrigada "poeta Cancão"! Minha vida é muito mais bonita por ter você... Pai engenhoso, cheio de artimanhas!!!
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