O FELINO
De manhã, antes do
sol despontar no horizonte, Irisbela
saiu do sono, levantou-se,desarmou a rede de fios brancos entrelaçados, a pouca
distância das outras, na oca ,recolheu-a
e se encaminhou para o rio. Ao tomar banho, imergindo com vagar o corpo na
água,volveu à aldeia,comeu peixe moqueado com beiju, de cócoras, e saiu.
Irisbela deixou a taba, habitação do pai Pajaci, da mãe
Liraquim, e caminhou para o interno da mata, endereçando-se à serra, lugar
constantemente úmido, com permanente estação fria. Fora coletar frutos,
destinados a ela, à mãe, ao pai, aos irmãos, aos primos e às primas.
Irisbela coletou bastante frutas, arrumou-as numa espécie
de cesto, decidiu regressou à aldeia. Já trilhava o caminho de retorno, olhando
para frente e para os lados, quando avistou um filhote de jaguar, gemendo,
estendido no chão coberto de folhas secas, ao
lado de uma árvore. Parou, saiu da sua rota, aproximou-se dele, percebeu
que estava ferido. Havia sofrido um tiro na pata direita, perdia muito sangue.
Ao lado da cria, a poucos metros, achava-se a mãe, onça
pintada, espichada no solo da floresta, sem vida. Vários tiros, vindos de diversas direções, haviam atravessado o
pescoço do animal que tombou,morta. Irisbela inferiu que foram os caçadores
brancos, filhos de terras estrangeiras, os matadores da fera. Mataram-na para
se livrarem do ataque mortífero. Praticaram um grande mal. Deixaram o filhote
ferido, privado de mãe, não sobreviverá na floresta. Será uma presa indefesa na
mata referta depredadores.
1
Irisbela, filha de Pajaci, condoeu-se do felídeo, filho
da onça pintada. Não era bruta, era humana, tinha sentimentos. Não podia
abandoná-lo. Se o deixasse ali, só e desprotegido, não escaparia à sanha dos
predadores da fauna. Logo,logo, faria parte da dieta deles. Resolveu salvá-lo.
A silvícola pôs o cesto com frutos no chão, tomou o
filhote nos braços, mimou-o como se fosse um filho. Acariciou-o, beijou-o, com
lágrimas caindo dos olhos. Julgou-o bonito e imaginou que, se fosse possível,
queria gerar num venturoso dia, após amar seu esposo póstero, um rebento tão
formoso quanto o felino órfão. Depois olhou atenta para todos os lados da flora
e, percebendo que ninguém a via, rumou para um lugar seguro.
Dirigiu-se à gruta onde costumava brincar com crianças
aborígines, suas amigas, filhas da aldeia. Entrou, apanhou todas as pedras
dispersas, depositou-as num canto. Fez, no fundo da gruta, uma cama de folhas e
varas, nela depositou o felídeo. Limpou seu pelo mosqueado, manchado de sangue,
tratou-lhe os ferimentos, deu-lhe comida para recuperar-se e crescer robusto.
Feito isto, tornou ao cesto de frutos, ergueu-o,
depositou-o na cabeça, endereçou-se à aldeia. Chegou com atraso demais de uma
hora. Não contou à mãe, ao pai, às amigas, sobre o filhote encontrado ferido.
Receava que eles, se informados, fossem à gruta para maltratá-lo ou matá-lo,
sem um motivo capital. Era um segredo, e só ela, o céu, a terra e os espíritos,
seus protetores, sabiam.
Todo dia, pela manhã, Irisbela despertava antes dos
outros autóctones, dirigia-se aos animais domésticos que alimentavam os filhos,
fazia a ordenha, recolhia o leite numa
cuia, levava-o para o felino. Abria-lhe a bocarra, introduzia nela o leite através
de um cipó oco que servia de canudo. O animal sugava o cipó com satisfação.
Depois, ao chegar à idade de rejeitar o leite, ela levava carne para ele,
patas, vísceras e cabeças de caças abatidas
pelos aborígines. Bem alimentada, a fera cresceu saudável, fez-se vigorosa,
pronta para enfrentar os perigos postos pela natureza.
Ao fazer-se adulto, Irisbela descerrou a bocada gruta,
tirando a pedra para soltá-lo. Ele havia ficado enorme e precisava de mais
carne do que a encontrada ao alcance da boca. A selvagem compreendeu que não
podia suprir as necessidades do animal crescido; resolveu libertá-lo. Livre, o
felídeo embrenhou na flora, procurando a sobrevivência nos pontos onde houvesse as maiores quantidades
de mamíferos grandes e gordos.
2
O jaguar adentrou a mata, sabendo que ele e sua dona, irisbela,
eram amigos para sempre. Devia a sua vida à generosidade da silvícola e
prometeu, a si mesmo, defendê-la do perigo em todo o tempo.
Raimundo Candido
disse...
Primeiro capítulo de um dos quatro romances inéditos do
escritor Gilberto Pereira Santos (Professor do Ceja-Crateús). Este é num estilo
alencariano, os outros romances são machadianos puros, confirmando o que tenho dito: - Aqui
é um grande celeiro. E aí de quem duvidar!
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