Eu sempre
desconfiei das coisas do mundo. Não acredito na estabilidade das formas sólidas,
na espontaneidade líquida do que fluí com feitio brando e que me arrasta rio
abaixo, com uma bravia carranca. Até da fingida desordem de um aéreo caos que
se me apresenta, determinando o que vejo, eu duvido. Fizeram-me acreditar em
muitas coisas bobas, como no invisível átomo carregado de partículas e que sou uma
mera poeira de um imenso Big Bang a caminhar inexoravelmente para o decantado Big
Crash. Incutiram-me a crer até nas mágicas fórmulas de felicidade, mas, no
íntimo, eu sei que é necessário acreditar em algo bem maior, se não o
viver fica desonesto.
Há
muitas razões para se duvidar dessas coisas mundanas, mas eu possuía uma forte
intuição, tinha uma clara visão de que poderia haver uma interação entre a
minha determinante vontade e um mundo paralelo que se reflete no espelho da
minha alma, uma tábua de salvação, a existência do aprazível Éden onde posso rever
a todos que um dia se foram. Para confirmar esta minha visão, um encontro me
fora marcado. Agora poderia desvendar esse impenetrável mistério.
Os encontros mais importantes que se
tem notícia na história da humanidade foram combinados pelas almas antes mesmo dos
corpos se avistarem na casualidade. É como a confluência dos rios, somos
predeterminados com bastante antecedência a entrechocarmo-nos em convergência
divina, num afluxo que há muito emana de nossas mentes num curso caudaloso e
propício a um novo renascer.
Aquele fadado
encontro e que há muito já estava agendado, me fora despertado numa mensagem
eletrônica pelo ilustríssimo Luiz Bonfim, um aposentado de vida boa, por
intermédio das ondas de uma rede social assombrosamente moderna. Certas pessoas
virtuosas aproveitam estes espaços inusitados para enviarem seus sopros de
esperança, como a benevolente Vera Lúcia Teixeira e o poeta-compositor Ocelio
Camelo, afeitos anjos benfazejos. Na missiva virtual, o amigo Luiz, me dizia
assim:
— Vá, chegue bem cedo e fique aguardando...
porque eles, com certeza chegarão.
Confesso que
senti certa objeção, pois um verso de um memoroso poeta, exímio driblador da
morte e apelidado de São João Batista do Modernismo, o libérrimo Manoel
Bandeira, não me saía do espírito: ”Se queres sentir a felicidade de amar,
esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar
satisfação. Não noutra alma. Só em Deus — ou fora do mundo. As almas são
incomunicáveis. Só os corpos se entendem, mas as almas não”.
Enchi-me de
coragem e fui. Já escorado na esquina da Fábrica de sonhos, no prédio do velho
Externato N. S. de Fátima, esperava assim meio inseguro naquela situação, mas
sem a aflição desesperadora de quem não sabe aguardar. Sentia uma pontinha de
impaciência, o que não deixa de ser uma fração de um pecado, pois foi a falta
desta virtude que nos fez ser expulsos do paraíso.
Repetidas
vezes estendo a longa vista pelos cruzamentos das ruas em busca de algo enquanto
o tempo, propositalmente, demora a transpor o umbral da tarde. De repente, meus
olhos que tantas vezes viram o ocaso, extasiam-se no crepúsculo do fim da rua, foi
como se alguém descesse dos últimos raios que se despediam, num vulto vagaroso,
encurvado sobre um bastão e a caminhar lentamente, me pareceu que estava só aguardando
o fim do dia. Foi inacreditável o êxtase e ainda duvido do que vi. Pela mesma
rua que outrora fora conduzido numa rede estirada no longo varal de aroeira, o velho
frade capuchinho, chamado Frei Vidal da Penha de Frescarolo, vinha ao meu
encontro, os pés descalço, vestido num habito preto, e só se via a longa barba
branca saindo debaixo de um negro capuz pontiagudo. Já bem perto, com um olhar cansado, mas
penetrante, me dispara uma pergunta a queima roupa, numa voz fatigada e
trêmula, característica dos anciões:
— Quem é você?
Atordoado estava e mais pálido
fiquei, sem forças para responder aquela urgentíssima pergunta.
— Este é o poeta Raimundinho,
meu Frei, que nasceu nesta esquina e cresceu brincando neste sacrossanto espaço
que agora pisamos.
O medo aumentou
desproporcionalmente, pois aquela resposta, com um som tão seguro, não saíra de
minha boca. Vinha da outra esquina, uma figura esbelta num caminhar firme e elegante,
rosto fino, mas com uma voz que me pareceu emitida por um trovão. Só podia
ter-se sublimado das partículas do ar, pois acabara de olhar naquela direção e
não vira nada.
— Que prazer lhe encontrar por
aqui, digníssimo Pe. Juvêncio! Viu como está a nossa rua, agora é uma Avenida bem
moderna, com esse tapete preto a lhe cobrir a poeira, nem parece mais aquela
estradinha dos anos de 1800. Ainda bem que não afirmei que esta terra seria uma
cama de baleia e nem cresceria como o rabo de minha besta.
— Não foi digníssimo, ainda
bem! Pois todas suas profecias se realizaram como estava previsto. Eu sinto é uma imensa saudade das águas doces
dos Tucuns, se os crateuenses tivessem
continuado a beber daquela divina nascente, a situação municipal estaria bem
melhor, e alguns cidadãos não teriam ido, com tanta sede, beber em outras
fontes, como temos notado ultimamente.
Com os nervos já se acalmando,
o temor e o tremor sumindo, ouço um “Boa Noite!” educadíssimo com uma voz doce e suave. Eu tenho
a firme sensação de conhecê-la. Viro-me rápido na direção da voz e vejo o
inacreditável para meus olhos, mas que alegrou meu coração, uma dupla
inesperada caminhava ao nosso encontro, era Dom Fragoso, com aquele sorriso
largo e sincero acompanhado de perto pelo Pe. Alfredinho, que me pareceu ter um
círculo brilhante sobre a cabeça, mas foi só impressão, pois me lembrei que ele
não gostava que lhe atribuísse essas coisas.
— Está tudo bem, Raimundinho?
— Tu... tu... Minha voz estava presa e meus olhos deviam
perecer umas bilas de gude de tão arregalados. Ele mesmo continuou a falar.
— Fiz uma visitinha aos meus
velhos aposentos já que o governo espiritual desta diocese está se mudando.
Transmita aos nossos amigos que desejo que o novo Presbítero nem seja tão carne
nem tão peixe e cuide bem do nosso rebanho.
Aproveitando a ocasião, tentei
balbuciar uma pergunta importantíssima sobre uma questão de saudade, e percebi
um disfarçado sorrir afirmativo na sua face, entes mesmo de ouvir a minha
pergunta, quando uns estampidos de fogos pipocaram no ar.
Despertei assustado, os
estrondos deviam ser os fogos da Igreja convidando os fiéis para alguma festa
religiosa ou alguém avisado aos incautos da chegada de algo muito bem aguardado.
Mesmo acordado, tive a
impressão de ter ouvido um quarteto se despedir em coro, anunciando ao longe:
— Não dê crédito aos
artificiosos sussurros que existem por aí, Raimundo, nem se importe com as
ilusões da matéria, siga o único caminho da fé que você chegará a Deus e poderá
viver plenamente. Até o nosso próximo encontro!
E um agradável silêncio, como
um amém bradado dentro de uma Catedral, ainda ecoa no imenso espaço vazio da
minha mente.
Raimundo Candido
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