Tornou-se um persistente hábito,
ao passar em frente à Catedral do Senhor do Bonfim, olhar displicentemente para
o lado esquerdo da Igreja da Matriz e enxergar um vistoso busto no meio da
praça. Nós somos aquilo que fazemos, repetidamente, de um raro uso a um costume,
do hábito ao vício, há muito sei disso. Mas ao vê-la, a singela praça, me sinto
um simples ser metálico atraído por um poderoso imã. Apuro mais a vista e o
busto de um poeta não mais vejo, mas enxergo ao longe, uma líquida resignação como
um lago descansando no fim de tarde assombreada, sereno, sentado numa cadeira disposta
na calçada, um monumento vivo. Convido-me e vou prosear com o longevo
historiador Ferreirinha, um patrimônio cultural da cidade, assim, sorvo mais um
pouco a Praça José Coriolano e desfaço minhas inquietações, lendo nas folhinhas
amareladas de quem guardou na mente privilegiada o conhecimento, a sabedoria e
as experiências obtidas no livro do tempo.
A praça foi um dos arrebatados
assuntos de nossa conversa e com uma lembrança autêntica, ele me disse:
- Professor, quando o meu
amigo e poeta Gerardo Melo Mourão esteve recebendo o título de cidadão
crateuense na Câmara dos Vereadores, neste prédio aqui ao lado, ele olhou
longamente para a praça e notei que o seu semblante mudou. Súbito, dirigiu-se
aos políticos, ali presentes, demonstrando uma reflexiva decepção. Ergueu os
braços, em desespero, rumo ao espaço e bradou firme: “Meu povo, cadê o José
Coriolano!?”
Sempre que proseio assim, com
os mais velhos, com meus olhos de sofreguidão, os meus ouvidos de aprendiz e um amplo
desejo de revivência, saio com uma cidade antiga renovada no peito e a nova
cordialmente amadurecida.
Ao chegar em casa, ainda ruminando o
poeta Melo Mourão, que além de ter sido amigo de Pablo Neruda era também parente
de José Coriolano e do “Coronel” José de Barros Mello, mais conhecido por “O
Cascavel”, que morreu ao lado do seu intrépido bacamarte, passo direto para os
livros da estante, e estão todos lá: O País dos Mourões, Peripécia de Geraldo,
Rastro de Apolo e A invenção do Mar, todos do poeta Gerardo que passara parte
da infância em Crateús, guardando na pueril memória a violenta beleza dos
rifles papo-amarelo, nas últimas estripulias sangrentas de um clã, o tropel dos
cangaceiros e a aventura da coluna Miguel – Prestes, quando sob as chuvas de
balas, recolhia com sua mãe, os revolucionários mortos na calçada. No País dos
Mourões delicio-me, mentalmente: “Apalpa, meu amor, meu rosto apalpa, / não tombei: / sou eu. /
Como
venho dos mortos nem eu sei, / mas sei que na partilha me tocou / a herança de
sobreviver.”
Obrigo-me a reler outros trechos, de
mais três livros, ali ao alcance da mão: Meus Avós de Raimundo Raul Correia,
Geneagrafia dos Melos de Irismar de Melo Torres e o esclarecedor Bacamarte dos Mourões
de Nertan Macêdo, que foi um dos ocupantes da cadeira Nº 7 da Academia Cearense
de Letras, cujo patrono é Clovis Bevilaqua.
Sinto um avermelhado cheiro de sangue,
saído daquelas páginas amarelas, a saturar minhas narinas alérgicas. No começo
do Século XIX, quando as cidades ainda surgiam ao redor das fábricas
fervilhando de trabalhadores, nos sertões de Crateús ebulia o ímpeto guerreiro dos
Melos Mourões e no inclemente agreste dos Inhamuns, se excitavam impacientes
por lutas, os Feitosas. Constituíam um único
clã familiar que se disseminou por boa parte do Ceará e Piauí, formando o país
dos Mourões. Povoaram uma imensidão, todos denodadamente valentes e violentos, todos
intrépidos, lavrando a terra, criando gado, matando e morrendo, em lutas que se
tornaram memoráveis. Alexandre da Silva Mourão (IV), num dia de inclemente sol,
subiu a Serra dos Tucuns no meio de 200 praças para abafar a Balaiada, a
primeira revolta genuína, uma façanha de pobres contra os ricos, no estado do
maranhão.
No livro, Meus Avós, leio: 1847 a 1851
– enfrentam-se Mourões e Melos nos sertões de Crateús. Estas famílias se uniam
e depois se intrigavam. O destemido Alexandre Mourão, um homenzarrão habituado
a rijeza do sertão, de quem emanava uma crueldade pelos olhos azuis, foi perseguido implacavelmente com sanha e
fúria, pelo Pe. Martiniano de Alencar, pai de José de Alencar. Alexandre bateu pernas, em desesperada fuga,
pelo sertão a semear Mourões nas raparigas em cio, ao som dos trovejantes bacamartes
e dos famigerados papo-amarelo, dando murro em ponta da faca, como ele dizia, fugindo
do padre benze-cacête, o mão-de-ferro, o filho da primeira mulher heroína do
Brasil, Bárbara de Alencar, que ousou proclamar a República do Crato, no Ceará.
Numa época agitada e impetuosa, repleta
de falsas patentes de coronéis e tenentes, compradas por fazendeiros e
pistoleiros, um caso curioso foi o assassinato do Pe. Inácio Ribeiro de Melo. Na
comarca Príncipe Imperial (no Piauí) onde duas famílias se revezavam no poder,
uma chefiada pelo Padre colado (nomeado) da Freguesia do Senhor do Bonfim,
Francisco Ferreira Santiago, do Partido Conservador (Os Muquecas) e a outra era
do Partido Liberal, Os Melos, liderados pelo Pe. Inácio, homem inteligente e
destemido. Viviam em constantes lutas mortais, por vinganças pessoais e
prestações de contas. O Cascavel, irmão do Pe. Inácio, pistoleiro audacioso e
turbulento, atacava a ferro e fogo, sem dar folga aos adversários.
Após as eleições gerais, em 1849, os
Muquecas contra-atacam visando exterminar o malévolo Mourão, que escapa
alertado pelo estrondo de um espalhafatoso bacamarte boca de sino, pois o
disparo, num tiro frande carregado com grosso chumbo e pregos, errara o alvo. Mas
para um verdadeiro Mourão, vingança não é prato que se come frio. O revide
acontece no povoado de Pelo Sinal (cidade de Independência), José de Barros aniquila
um subdelegado, um capitão e o sobrinho do Vigário adversário. Uma das testemunhas,
assim disse: O Cascavel trajava uma sobrecasaca parda, chapéu de couro na
cabeça, com um brilhante clavinote na mão e ainda deu uma descarga em frente a
igreja, com vivas à Senhora de Santana.
No poder na Vila Príncipe Imperial, os
Muquecas, controlam até a justiça. Instauram um processo contra os autores do
crime de Pelo Sinal, incluindo Pe. Inácio, para liquidá-lo politicamente. Para
escapar da emboscada, intencionalmente armado pelos Muquecas, o padre viaja
para a província da Paraíba, a procura do Juiz de Direito de Piacó (lugar onde tombou o corpo do
bandeirante/sertanista Domingos Jorge Velho, um grande aniquilador de índios,
me confirma o padre historiador Geraldinho), que vinha dar um jeito na anarquia
dominante, na região. Munidos de uma precatória para efeito de prisão, os
inimigos do Pe. Inácio, saem determinados e respirando ódio e sangue, em sua
perseguição e o alcançam em Pedregulho, a meia légua de Souza, na Paraíba.
Quando é para ser até os ventos
contrários perdem as forças, e no enfadonho cansaço os viajantes consentem um
descanso à sombra de frondosas oiticicas convidativas, na margem de um riacho.
Esquecera o padre que a hora do sim é o descuido do não. A comitiva os alcança.
Os assassinatos foram com requinte de muita
perversidade humana, que se pode ler com os mínimos detalhes, na página 100 do
livro do Centenário de Crateús, um artigo do acadêmico historiador Flávio
Machado. Só escapou daquele horroroso e cruel morticínio um menor, de nome
José, sobrinho bastardo do Pe. Inácio e filho legítimo do famigerado Cascavel.
A comemoração da chacina foi com um
memorável banquete, na casa do Pe. Muqueca, Francisco Ferreira Santiago, que
deve ter sido celebrada assim: Tiveste sede de sangue, eu de sangue te encho!
Como uma conclusão para um clã que horrorizou uma longa época nos sertões de
Crateús, e para que saibam que, de todas as lutas do patriarca Alexandre, ele
perdeu todos os filhos e o próprio velho caiu assassinado, tendo o direito de,
agora, descansar em paz.
Foi uma época que, em Crateús, se
fazia política sem promessas, sem discursos, sem festas populares, ela era
feita no sangue e ferro e, por incrível que pareça, por homens de fé.
Alguém uma vez me disse que: “Não há
uma ideia nascida do espírito humano que não tenha feito correr sangue sobre a
Terra.” Meu Deus!
Para encerra essa (in)conveniente e sanguinolenta
crônica, só faço uma perguntinha: Se toda história nos traz lições que devem
ser copiadas ou um passado que não deve e não pode ser repetido, como o
horrível holocausto dos judeus, por que a nossa história, mesmo ensanguentada,
não estão nos livros didáticos de nossas crianças?
Raimundo Candido
José Alberto se Souza disse...
José Alberto se Souza disse...
Conversando a gente se entende e você vai
beber na fonte do "longevo historiador Ferreirinha... o conhecimento, a
sabedoria e as experiências obtidas no livro do tempo". Arrependo-me de não ter
usufruido e minorado a solidão de muitos idosos que lá estavam à espera de
alguém para contar suas histórias e hoje quando os procuro não os encontro e
passo a ser aquele procurado ainda vivo.
Conversando a gente se entende e você vai beber na fonte do "longevo historiador Ferreirinha... o conhecimento, a sabedoria e as experiências obtidas no livro do tempo". Arrependo-me de não ter usufruido e minorado a solidão de muitos idosos que lá estavam à espera de alguém para contar suas histórias e hoje quando os procuro não os encontro e passo a ser aquele procurado ainda vivo.
ResponderExcluirO que foi feito com os bustos das praças de Crateús (CE) ???
ResponderExcluirOnde foi parar o busto de José Coriolano de Souza Lima ???
Quando estive em Crateús (CE) em busca do meus antepassados, constei que Crateús (CE) que os bustos dos homens que fizeram história da cidade foram "abduzidos".
Acredito que Crateús (CE) seja a única cidade do Brasil que um prefeito retira todos os bustos da praças para fazer reforma e some com elas para sempre.
Meu pentavô Manoel da Rocha Oliveira estava envolvido nesse massacre
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