Que os leitores e as estimadas
louras me perdoem, por incluí-los na introdução desta narrativa com aspiração à
literatura de abstração, de passa-tempo. Mas suponhamos uma situação fora do
comum: O caro amigo entrega um buquê de flores para uma determinada loura que,
displicentemente, lhe pergunta: - São Flores? Não exalto as discriminações e sei
que o polido amigo responderia com reverência de gentlemen. Fico a imaginar é a pitoresca resposta de
pessoas como Seu Lunga, um juazeirense nada educado (— Olá, Seu Lunga, está
sumido! Por onde tem andado? — Pelo chão, não aprendi a voar ainda...), ou Seu
Antônio Ricardo, comerciante do Mercado Velho de Cratheús (— Seu Antonio, o que vou fazer com essas
moedinhas de vinténs do troco, não valem mais nada! Ele responde rápido: — Jogue no... mato!), ou o Senhor Francisco
Cavalcante, Seu Fransquim, um personagem agreste e folclórico na época da
Chegada da Maria Fumaça, que na certa responderia: — Não são flores, não! São cenouras, não
está vendo!
Desde 1882 que a princesa do
Norte escoa seus produtos para o Porto de Camocim, pela estrada de Ferro de
Sobral (EFS), propiciando uma época de industrialização na região de Caiçara, da
fidelíssima cidade Januária de Acaraú. E a linha férrea saindo de Sobral,
passando por Ipu, Ipueiras, Nova Russas, Sucesso era a esperança do
desenvolvimento e redenção de um marasmo mortal nos sertões de Crateús.
Alguém anunciava, entusiasmado:
— Seu Fransquim já começou a construção da estrada de ferro entre as cidades de
Sobral e Crateús. Centenas de trabalhadores estão aplanando o chão, que nem uma
mesa, colocando dormentes de aroeiras, de pau d’arco, de maçaranduba de 2
metros cada, e sobre eles assentam pares de trilhos de ferro de 8 metros de
comprimento, tão pesado que necessita de umas 20 pessoas para levantar um só. Os
homens estão trazendo a Maria Fumaça para Cratheús, Seu Fransquim!!!
Seu Chico Fogueteiro, o apagador de lampião da cidade, do alto
de sua incivilidade e pessimismo, só resmunga e blasfema: — Trazem nada! Estão
trazendo é o fogo do inferno para essa cidade que já está é derretendo de tão
quente! Os únicos homens que temos aqui são o Senhor do Bonfim e o Rio Poti.
E vinha sim, mas só o Senhor
Franquim desacreditava. De dormente em dormente, assentados no chão, o
progresso rastejava rumo aos Sertões de Cratheus.
— Seu Fransquim, a linha
férrea já passou pelo Ipu, por Ipueiras e está em Pinheiros. É uma festa
grande, Seu Fransquim, tem bancas de café, de bolo, de tapioca e de aluá. É
gente pra tudo quanto é canto, que nem cabe no povoado de Sucesso!
— É nada! Que trem de ferro
coisa nenhuma! Isso é coisa é do capeta! E naquela terra não passa nem a besta
fera!
No sábado do dia 17 de Julho
de 1911 a população atravessa o leito do Rio Poti, e do Riacho Tourão, para contemplar
os cassacos trabalhando, parafusando placas de apoio, batendo os longos pregos
nos dormentes, prendendo os trilhos, assentado uma linha singela como uma máquina
de costurar que cinge um zíper rumo ao horizonte infindo.
— Seu Fransquim, a linha do
trem já passou pelo Feijão, pelo Tetéu, pelos Pastos Bons e já está nas Cajás!
Até já se ouve o trem apitar! Ouça... Seu Fransquim!
— É não! É o cão! É o cão
peidando por lá, e o povo gosta é de ser enganado, feito bestalhão!
— O trem já caminha sim, seu
Fransquim, a linha férrea vem se desenrolando, de lá pra cá, como quem estira
um tapete.
— Eu quero é ver, como é que esse
bicho dos diabos vai passar quando o rio estiver cheio! Cada assertiva do Senhor Francisco era um
obstáculo que ele impunha.
— Uma ponte de ferro toda desmontada
vem de navio, lá de um país chamado Inglaterra. Quando chegar ao Porto de
Camocim seguirá até aqui, nas pranchas da Maria Fumaça, quando será montada
sobre os rios.
— Danou-se! Vão fazer uma
ponte é para passar o teu pai e a tua mãe, seu bicho bruto!
No entardecer da quarta-feira do
dia 12 de Dezembro de 1912, a máquina sete apita bem na entrada da ponte de
ferro, sobre o Poti, era uma Maria Fumaça movida a lenha e vapor d’água, uma
máquina preta, pequenina e ligeira, que mastigava nervosamente os intermináveis
trilhos: vup vup vup tchuc tchc tchc e soltava um silvo longo e
agudo pela primeira vez no céu azul de Princesa do Oeste: — Piuuiiiiiiiii
Huuuuuu Piuuiiiiiiiii ...
O amplo espaço de terra batida entre
os trilhos e as casas já era chamado de Praça da Estação e estava repleto de
amimais amarrados nas sombras das árvores: cavalos, burros jegues que não tinha
quem contasse. Veio gente de toda região, até do longínquo Estado do Piauí.
— Piuuiii... A Maria Fumaça apita novamente, soltando um
rastro de fumaça cinzenta e preta no ar, chamando atenção para a sua estupenda
chegada.
No calçadão, era uma grande multidão que
se espremia, esticava o pescoço para ver o trem que vinha gingando feito bêbado,
como que aturdido de tanto farejar o chão, deixando um rastro de fumaça. Bem na
frente, as autoridades se perfilavam de ternos e gravatas: o Cel. Cazuza
Ferreira, O Senhor Betrônio Frota, o Sr. Tomás Catunda Filho, o primeiro
prefeito, após a vila se tornar cidade, o Pe. Rosa, o Sr. Antonio Jerônimo de
Sousa Lima conhecido por Cel. Giló que seria o agente provisório da Estação enquanto
o Sr. Carlos Rolim de Moraes não assumiria como o 1º agente oficial, e o
farmacêutico Cicinato Rodriguês que mirava de soslaio o rival, o Dr. Luiz
Chaves e Mello. O Sr. Raimundo Marques
de Pinho, avô do barbeiro Erasmo Moraes Cavalcante, ficou tão admirado que permaneceu
boquiaberto por um longo tempo e até o Senhor Urbino Menezes descera do
Buritizinho, com toda a meninada, para ver esse tal de trem de ferro!
Os fogos de artifícios estrondavam no
ar: Pou! Pou! Pou! Paa! A belíssima Maria fumaça já diminuía a marcha e se
podia ver o Engenheiro João Tomé de Sabóia na porta do primeiro vagão, acenando
com o chapéu na mão. O poeta humorista Amâncio Correia Lima constata: —
O bucho do Dr. João Tomé chegou primeiro que a Maria fumaça!
Mas faltou uma pessoa na
grande festa de redenção dos Sertões de Crateús.
— Seu Fransquim, o trem já
veio e o senhor não foi olhar a chegada da Maria Fumaça?
— Você será besta? Acha que eu
vou olhar a chegada do cão dos infernos! Isso é o capeta que veio tomar
dinheiro dos trouxas de Cratheús, se preparem! E profetizou: — Eu só quero de
vida nesta vida no dia em que eu chegar perto de uma besta fera de ferro, desta
aí!
Os trilhos e a locomotiva a vapor
continuaram o seu trajeto rumo ao por do sol e logo chegariam ao distrito de
Poti e, um pouco mais, na aprazível Oiticica, uma região de veraneio dos ferroviários,
com a Maria Fumaça saindo da Estação pela manhã de domingo e voltando no
entardecer, lotada de felicidade no rosto dos turistas crateuenses.
O trem venceu a estúpida inflexibilidade
de Seu Franquim pela inabalável paciência do tempo, pois água mole em pedra
dura... Cinco anos depois, uma irrevogável curiosidade bateu-lhe na alma, e ele
foi visitar a Maria Fumaça. O trem estava em perigoso processo de manobras, de
acomodações dos elementos quando ele chega e se posta entre os engates de dois
vagões e, antes de ser esmagado, só deu tempo confirmar: — A boca deste
diabo parece a boca do cão! O férreo abraço da morte o enlaçou como beijo fatal,
o castigo da Maria Fumaça que, ao ceifa a vida de Seu Fransquim, estava a nos dizer:
“Por mais incrédulo que seja, haverá um dia em que, todo homem, tem que
acreditar. Condeno-te pelo crime de blasfêmias e de ofensas, mas liberto-te da
imbecilidade da alma e da estupidez do coração.”
Seu Chico Fogueteiro havia
comprado o bilhete na Maria Fumaça, rumo ao horizonte infindo, e nunca mais ninguém
duvidou da vinda do trem.
Raimundo Cândido
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