Mal despertada a noite das
tempestades, na Revolução de 64, pelo medo dos rastros de fumaças subvertidos que
se alastravam por toda América Latina, e o militarismo brasileiro dissolve os
partidos políticos e impõe uma férrea censura prévia, fazendo com que as canções,
de magoa e dor, fossem as únicas flores a brotar no solo desta aridez imposta.
A crise impulsionou uma inventividade musical como nunca se viu antes: proferir
sem dizer, protestar pelo grito abafado na garganta que feriria os ouvidos infames,
como incisiva faca amolada. Do cantor-poeta Chico Buarque jorrou “Apesar de
você” afrontando os brios autoritários de um tirano chamado Médici e do poeta-cantor
Geraldo Vandré brotou “Pra não dizer que não falei das flores” o hino de
resistência do movimento civil e estudantil contra a ditadura militar.
Em Cratheús, um pouco antes de
se deflagrar “O último dia de lua cheia” como ficou conhecido o 30 de março de
1964, que deu inicio às trevas brasileiras, no ano de 1958, a poeira das ruas
subia pelos redemoinhos dos dias secos, de mais uma grande estiagem que
assolava o sertão. A cidade estava quente pelo clima e pela alma do sertanejo,
que nunca se entregou, nunca perdeu o ânimo. A administração municipal, do prefeito
Raimundo Resende, ficava a desejar, com um velho motor a óleo iluminando insuficientemente
as ruas, sem o auxilio necessário para os agricultores que sofriam os efeitos
da seca. E o partido da situação, UDN, se desgastava.
Das situações difíceis sempre surge a
criatividade dos bons artistas, dos poetas sensíveis aos momentos, como Chico
Buarque, como Geraldo Vandré ou como Dona Iracema Martins, uma poetisa
crateuense que, inspirada na corda do seu violão, criava repentes e grudentas vinhetas
sobre os personagens folclóricos e políticos da região, para suas campanhas
politicas. Sua casa era frequentada por pessoas que vinham encomendar jingles
sobre candidatos das cidades vizinhas. A fama de cancionista já se espalhara,
pela eficiência dos humorados versos, que causavam ímpetos rancorosos na oposição.
Um amigo, o Samuel Lins,
fundador da Escola Técnica, afirmava:
- Oh, Iracema cabeçuda! Porque
fazes essas cantigas, se só dão em confusão? Se tiver que fazer, faça, mas
cobre, pelo menos!
No dia em que o Dr. Antônio
Catunda retornou, jovem recém-formado, as moças casamenteiras da sociedade
ficaram em alvoroço e na expectativa. Um médico nos cafundós do sertão, solteiro,
metido a bonitão e todo pintoso... A
festa seria no Crateús Clube e as colegas avisaram para dançarina Iracema, que
já estava de vestido novo: - Oh, Iracema, não te metes no meio não! O diabo
atentou (São palavras de Dona Iracema!) e a primeira que ele tirou para dançar
foi a poetisa. As outras ficaram só roendo! Mas o escolhido de seu coração foi
o Antônio Coriolano, com quem teve 13 filhos.
Iracema sempre foi uma jovem
vivaz, de espirito aceso, que contagiava os ânimos daqueles que a rodeavam. E
aos 96 anos não perdeu esta nobre característica.
A campanha politica do ano de
1958 foi um fogo aceso, com sopros em brasas de lado a lado. A UDN, mesmo desgastada, mas com a máquina
administrativa a seu favor, apresentou o Dr. Gonçalo Claudino Sales como
candidato oficial. A coligação PSD, PTB, PSP candidatou, novamente, o Sr.
Raimundo Bezerra de Melo, o Patriota de respeito. O Prof. Luiz Bezerra assim
escreveu sobre essa disputa: “Foi uma campanha violenta de parte a parte e a
opinião pública se dividiu. O povo sentia a força da coligação galvanizada por
José Bezerra de Melo, que incontestavelmente foi a alma da vitória dos
coligados.”
Dona Iracema havia feito
algumas vinhetas, que eram cantadas pela irmã do Zé Bezerra, a Maroquinha Mano,
nos palanques e repetida pelo povão, que puxa cordão: “O Encarnado correu com
medo / Da grande festa que vai haver / Agora viva o Partido Azul / E o
Encarnado é que vai roer!”
O povo lotava a grande quadra
do Barrocão para ouvir o discurso do candidato a prefeito, mas principalmente a
oratória inflamada de Zé Bezerra que tinha o dom mágico da palavra fácil. Ali
perto, pela Rua Poti, o Dr. João Afonso já dera ordens para soltar um touro
bravo e que fosse tangido para o meio do povo. Enfezado, o animal correu e
abrindo caminho entre os eleitores, dispensando todos para suas casas. Só ficou
uns corajosos afoitos para descobrirem de quem era o Touro raivoso que acabara com
o comício.
Dona
Iracema não se deu por rogada. No outro dia uma vinheta já estava na boca dos eleitores,
sendo cantada em cada esquina da cidade: “Façam outra passeata, meu povo / Samuel
tornou a voltar/ Mas se soltarem o touro de novo / Sei que nós vamos matar!”
No novo comício, na mesma
Praça do Barrocão que estava mais lotada que antes, só se via o povo olhando
para os cantos, esperando o touro meter os chifres na esquina, para abatê-lo à
bala, como abateriam o candidato da velha e viciada UDN, mas no voto.
Os políticos e cabos
eleitorais da UDN, sentindo o braço da derrota, lhe aberturando o pescoço, tentaram
viciar as urnas depositadas na sede dos Correios e Telégrafos. O 4º Batalhão de
Engenharia garantiu a fiel e legal apuração. Mesmo se detectando uma das urnas
totalmente viciada, a comissão apuradora deu o resultado, estava eleito o Sr.
Raimundo Bezerra de Melo, o Patriota de Respeito.
No dia 25 de março de 1959
toma posse o novo gestor da administração municipal. O Prof. Luiz Bezerra, narra
novamente: “Foi uma coisa triste a entrega dos despojos da prefeitura. Era como
se ali houvesse passado um tufão sujando, quebrando e carregando tudo. Não
houve prestação de contas, não existiam arquivos, não apareceram os livros
contábeis. Os Udenistas haviam sumido.”
No dia seguinte o bancário Edson Martins, que era também um afamado locutor, iria
ler a crônica do escritor Luiz Bezerra, nos
potentes altos falantes da Rádio Educadora. O professor lhe dissera que a crônica
daquele dia seria assombrosa e o povo poderia entrar em alvoroço, pois falaria
sobre o satanás que esteve, recentemente, visitando a cidade de Cratheús! Edson
não se conteve, foi buscar pessoalmente a crônica na Tipografia Central, uma
das empresas do professor.
Vai logo
cumprimentando o tipógrafo e lhe pergunta: - Oh Nene Coriolano, o seu patrão,
Prego dourado, está?
- O Professor está sim. Entre aí no escritório dele!
- O Professor está sim. Entre aí no escritório dele!
O locutor entra cantarolando uma animada marchinha:
“Soluçando vou deixar minha prefeitura / Adeus amigos para nunca mais ver /
Adeus minha mamatinha / Sou obrigado a ti entregar ao PSD / Adeus, adeus minha
prefeitura / Isto é sina de um ordinário prefeito / Adeus, adeus minha
mamatinha / Adeus amigo para nunca mais eu ver / O amigo que encontrar minha
caveira / peço que leve e entregue a outro alguém / Diga a ele que eu morri foi
de desgosto / envergonhado porque nunca paguei a ninguém...”
Luiz Bezerra cai na gargalhada e pergunta de quem é
aquela preciosidade.
Edson responde: - Ora, professor, de quem poderia
ser? Só pode ser de Dona Iracema Martins, a mãe de seu funcionário Manoel Nene
Coriolano! Não é ela quem sempre faz as marchinhas politicas de nossa querida
Cratheús!
- A veia poética de Dona Iracema não deixa passar
nada! Conclui o professor.
Findou-se o ano de 1959 e as noites horrorosas das tempestades
se foram, para alívio nas nossas esperanças, mas sinto a falta de uma canção
que profira o meu grito, ainda abafado na garganta, e que faça com uma musical
faca amolada ferindo os ouvidos dos incautos de agora. Acho que eu vou à casa de Dona Iracema ver o
que ela tem a me dizer. Vambora?
Raimundo Cândido
De que lado estarei
ResponderExcluirquando os engajados chegarem?
Vai ser difícil explicar minha posição
e ainda mais ter de renunciar
a meus privilégios...