O poeta Pablo Neruda não
exagerou no lírico romantismo quando declamou para a amada: “Quando não posso
contemplar teu rosto contemplo teus pés... Amo teus pés só porque andam sobre a
terra, sobre o vento e sobre a água até me encontrarem” A queridinha do autor
de “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada” devia ter um bom par de
mocassins, e de couro de búfalo, para poder andar com destreza sobre esses elementos
naturais. Os inspirados poetas bem sabem que elas, as amadas exigentes, dão
mais valor a uma coleção de pares de sapatos do que uma boa composição de devaneio
amoroso. Para serem realmente eficientes, os versos de hoje, devem vir
acompanhados de uma vistosa caixa de sapatos!
Desde que o homem
pré-histórico aprendeu a arte de curtir o couro, raspando a carne, a gordura e
os pelos, para não apodrecer, que surgiram os primeiros sapatos. O Faraó Tutancâmon
andava, elegante, com uma sandália de couro toda ornada de ouro. Na Antiga Roma,
os Cônsules desfilavam com sapatos brancos, os Senadores com uns marrons com
tiras entrançadas até a batata da perna e Legionários usavam botas de cano
curto, com os dedos a descobertos. A manufatura industrial só surgiu na
Inglaterra, e por necessidade dos exércitos que iam às guerras.
A novidade do ramo calçadista,
na cidade de Cratheús, acontecia na Sapataria União do Senhor Edmundo Pinto. As
caixas brancas de sapatos, que vinham de Sobral pelo Trem “Maria Fumaça”, ficavam
nas prateleiras das duas paredes laterais e logo se esgotavam, mas um modelo
novo era reproduzido pelos sapateiros que ficavam no fundo da loja, para
atender aos inúmeros clientes: o Chico Rodão, o Luiz Potássio, um cabra bom de
bola, o Fenelon e o esperto Cerinha, que além de sapateiro era cobrador de
aluguel das casas do comerciante Norberto Ferreira. Além disso, Cerinha ganhou
o apelido de “O Meia-Noite” por rondar as escuras esquinas da cidade, sempre
nas horas tardias, curiando as atividades dos cálidos casais de namorados.
O município, com uma pecuária
razoável, se desenvolveu pelo Ciclo do Couro e deste material fabricava-se quase
tudo que era necessário para a sobrevivência do sertanejo. Os rapazes aprendiam
a arte de celeiro e, também, de sapateiro transformando a pele curtida do gado
em gibões, celas, cordas, canecos de sola e em chinelas de currulepe. Era uma tradição,
de pai para filho, que só era interrompida pela chegada das secas intensas, que
dizimavam os rebanhos. Era quando os jovens migravam, nas estradas já marcadas
pelos seus antepassados, rumo à ilusão de São Paulo ou nas trilhas dos soldados
da borracha, para um desconhecido Amazonas.
A Dona Marica, esposa do rico
Cel. Chico Leite, das Queimadas de Novo Oriente, tinha chegado da banda do
Norte e estava precisando de um chinelo novo, as alpargatas que tinha nos pés
estavam gastas e remendadas. Aproveitou a presença do Senhor João Claudino da
Silva, que estava a trabalhar no alpendre de sua casa, e perguntou:
- Seu João, o senhor sabe
fazer chinelo de couro?
- Sei sim, Dona Marica. Vou
fazer o seu chinelo, é só terminar o serviço desta empreita com o Dr. Chico
Leite, aqui no alpendre.
O artesão João Claudino tirou
as medidas do pé de Dona Marica, 34/35, riscou o couro curtido, desenhando o
molde do pé com uma “costa” de madeira, cortou com uma faquinha bem amolada,
fez o cabresto com uma tira de couro bem mais fina, bateu as pontas das
tachinhas e desenhou no rosto umas figuras que aprendera com seu velho pai, nos
tempos de outrora.
- Está pronto Dona Marica. Aqui
está seu par de chinelos.
A senhora põe os calçados nos
pés e fica admiranda com a obra de arte.
- Corre aqui, Chiquinho, vem
ver que coisa interessante é esse chinelo que Seu João fez para mim! Olhe como
esses desenhos são iguaizinhos àqueles que o Seu Vicente Manco fazia, lá em
Manaus!
- Pois num é, Marica. É o
mesmo tipo de chinelo, até parece do mesmo molde!
O Senhor João Claudino atento
àquelas observações, arregalou bem os olhos, demonstrando um evidente contentamento
no rosto.
- Meus amigos, me digam uma
coisa, como é mesmo a aparência deste tal Vicente Manco, de quem vocês falam?
- Ele até parece muito com
você, Seu João! Respondeu a esposa do Cel. Chico Leite.
- Pois esse sapateiro é meu
irmão, dona Marica. A voz alta demonstrava uma alegria incontida. - É o meu irmão Vicente Claudino, sim, que foi
embora para o Norte fugindo da seca e da fome que por aqui dizimou quase tudo.
Eu vi quando ele caiu de um burro e ficou mancando de uma perna. E nós
aprendemos a fazer chinelas e a trabalhar com couro com o nosso pai. Aprendemos
tudo direitinho como ele nós ensinou.
As lágrimas já escorriam pelo
rosto de João Claudino que não suportara tamanha satisfação, tão grande coincidência.
Achava que seu irmão, que há décadas não mandava notícias, desde a época que arribara
para os perigos de uma Amazônia desconhecida, estava morto. Imaginava que tinha
sido devorado pelos animais, que fora abatido pelas flechas dos índios
selvagens.
- Seu João, agora o senhor
pode se comunicar com ele. Nós temos o endereço de uma bodega, de onde
comprávamos mantimentos, e seu irmão também se abastecia por lá.
E o contato entre os irmãos
Claudinos foi refeito, como que pelo cabresto de um chinelo ligando Cratheús ao
distante coração da Amazônia, a histórica cidade de Manaus!
O conhecido alerta “Sapateiro
não vá além de tuas sandálias!” uma vez transposto pelo Vicente Manco, quando,
expulso pela fome, rumara em busca de sobrevivência no distante Amazonas, até lembra
a história dos irmãos sapateiros Crispim e Crispiniano, que, mesmo separados
pelo Império Romano sempre acabavam juntos, até depois de decapitados.
As coisas de Deus são
perfeitas. Com uma simples sandália nos pés, é suficiente uma longa marchinha
para nos perdermos, e isso após a dolorosa tristeza das despedidas e basta mais
uns poucos passos, adiante, para nos abraçarmos na alegria dos reencontros. E,
depois da coincidência dos irmãos sapateiros, encontrarem-se de novo, em pleno
sertão de Novo Oriente, através de um providente par de chinelas de currulepe, o
velho lema de alerta mudou, e é assim que se deve dizê-lo agora: “Sapateiro,
algumas vezes, é necessário que se vá muito além dos nossos sapatos!”
Raimundo Cândido
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