O Sertão de Cratheús, mesmo se
despindo do manto verde de esperanças nas raras quadras invernosas e se
revestindo de um desalento, quase sem vida, numa paisagem repleta de gravetos
secos e de brancos ossos espalhados pelo chão, ainda é um dos mais belos e
puros poemas que compõem as plagas nordestinas.
Desde a época áurea do Ciclo
do Couro que o Distrito de Curral Velho é uma terra bárbara, de estradinhas
tortuosas e tristes, esmaecida pelos raios escaldantes do sol, mas nunca cessou
de brotar poesias na alma esperançosa do rústico sertanejo. Povoados dispersos pelas
margens dos Riachos Serrote e do Meio, que desemborcam no leito Rio Poti,
sobrevivem à custa do esforço incomum do homem do campo, num heroísmo
inimaginável.
A Lagoa das Pedras dos Rodrigues,
um local cheio de pequenos lagos que ficam repletos de marrecos e patos nos
invernos abundantes, é a morada de homens e mulheres de uma estirpe sólida e obstinada.
É onde residem alguns laboriosos Bonfins, leitões e Rodrigues que plantam as sementes
de esperança em suas roças, ao som do mugido do gado, do balido dos carneiros, do
relincho dos jegues, do berro dos bodes e depois ficam aguardando as providências
divinas.
Da produtiva terra do barro, e
seus arredores, emergiram grandes poetas como Bastiãozinho, Datin Bonfim, Lucas
Boquady... E, aqui e acolá, assim de repente como quem não quer nada, outros vates
vão aparecendo: o Junior, o Luciano... Todos, gerados no seio da enorme família
Bonfim.
Habita na Lagoa das Pedras dos
Rodrigues, entre a Vaca Morta e a Ipueira Cercado, uma eficiente Palas Athena,
a deusa que rege a sabedoria, símbolo da inteligência, da educação e até da sublime
poesia! E no meio do inóspito sertão crateuense, reina a poetisa tintinha, sim
senhor! Uma pupila preparada pelas orientações da Mestra Dona Delite Menezes
para lecionar nos Sertões de Cratheús, desde a época do Mobral. Além de Professora,
é versada nas rimas e canta as coisas do chão e as lidas diárias de sobrevivência
do homem do campo. No grato poema: “ Dona Delite minha Mestra / Como posso
esquecer / Pois o pouco que sei / eu aprendi com você” percebemos a dignidade
de uma poetisa que reconhece quem lhe deu a mão. Uma prova de dignidade. E
celebra os acontecimentos de seu lugar com o lirismo simples da sua poesia de
rima popular, alegria, dor, esperança e o amor que é um tema constante de seus
versos: “Amar é coisa divina / veja que tenho razão / Se amar me faz sofrer /
Antes dá satisfação / amor para mim é tudo / Ele é a minha inspiração.” Este
“ele” é o Abdias, seu esposo há 35 anos, e fiel companheiro de vida. A poetisa
assistia aos jogos de futebol, nos campinhos do interior, só par gritar com
emoção o nome do atleta preferido: Abdias! Abdias! E aí surgiu o entusiasmado
namoro e logo marcara o grande casamento. Outro companheiro inseparável da
poetisa da margem do Riacho do Meio é um elegante e velho cachorro chamado
Leopardo. Protetor só até ali, ninguém toca em nada de Tintinha, ele diz logo o
porquê do nome, mostrando os caninos finos e as garras afiadas. Os cães aliviam
a nossa solidão e são elos com o esperado paraíso, dizem os poetas.
Francisca Leitão Rodrigues
Pereira, a doce Tintinha, ex-professora, inspirada poetisa, passa o dia sentada
numa cadeira vendo televisão, ouvindo o rádio, captando o som da natureza que o
vento joga para dentro de casa. Um velho galo que canta, as galinhas que
cacarejam, o balido das cabras, o trinado do galo campina que chega misturado
com o farfalhar das folhas nas árvores do terreiro. Tintinha está doente. A
poetisa perde aos pouco os movimentos das pernas, a visão vai diminuindo à
medida que uma ataxia degenerativa toma de conta de seu sistema nervoso. Uma
doença hereditária embutida no DNA de uma ramificação da família Bonfim que aos
pouco vai deformando seu cerebelo e a sua retina, tornando-a quase cega. Mas ela
não se entrega: “Eu queria está sadia / Para mais tempo durar / Pois viver é
muito bom / temos que aproveitar / até quando Deus quiser / Só nos resta
esperar...” A Palas Athenas crateuense tem consciência de sua situação e se
esforça para não deixar perecer o que tem de mais belo dentro de si, o dom da vida
e a vocação para a poesia: “Minha vida é um romance / Dos que todo mundo cria /
Não sou triste nem alegre / Nem vivo de fantasia...”
Sentado ao lado de Francisca
Leitão, a poetisa da Lagoa das Pedras dos Rodrigues, sob os olhares vigilantes do
cachorro Leopardo, o seu anjo leal e guardião, lia os versos de Tintinha, em
dezenas de cadernos, rabiscados com as mãos trêmulas, as palavras já
escapulindo das linhas e sobre os mais variados motes: A festa do Barro em
Curral Velho com suas olarias fabricando tijolos e telhas, o embuste da construção
do Lago de Fronteiras, os políticos descarados e sem palavras, os elogios à
Rádio Camponesa, no Assentamento Palmares, onde de vez em quando o locutor declama
um dos seus versos para os ouvintes do sertão, o desequilíbrio ecológico trazendo
seríssimas consequências para o nordeste, como a falta de água, a chegada do
terceiro bispo à Cratheús e os constantes louvores a Nossa Senhora, a quem pede
proteção para sua família, pois já tem uma das filhas molestada pela irrevogável
e perversa barreira que o destino impõe no caminho da gente e então me lembrei
do poeta Manoel Bandeira, com sua doença estigmatizante, forçado a viver na
solidão, mas nunca deixou que isso fosse o fim de seus sonhos, descobriu, como
a poetisa Tintinha, que a sua salvação era assumir o compromisso com a maravilhosa
e divina poesia.
Ganhei, de Tintinha, um verso
pela visita que lhe fiz, intitulado Surpresa: “...O Raimundinho da Dona Delite...
/ Comigo muito conversou / E mais poderia ser / pois minha voz atrapalhou /
dava pouco para entender / Mas é assim que estou / E nada se pode fazer...”
Despeço-me da poetisa da Ribeira
do Poti, prometendo outras visitas para terminar de ler o restante da montanha
de versos em seus cadernos, e volto para casa pensando que, se não podemos
mudar o nosso destino, podemos mudar nossa atitude para com a vida, para com a
outra vida que poderiam ter sido e que não foi.
O canto poético, na pouca voz
da poetisa, me arrebatou. O sorriso sincero que mostra uma fortaleza de espírito,
é como uma flor que o belíssimo Sertão de Cratheús tem a nos presentear. E
pensando na Paz, estampada no rosto tranquilo, afirmando que poesia é vida, é epifania
e salvação, silenciosamente rezei: "Concedei-me, Senhor, a serenidade
necessária para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para
modificar aquelas que posso e sabedoria para distinguir umas das outras".
Obrigado, doce poetisa
Tintinha, tu és uma esplendorosa flor poética que o Sertão de Cratheús me
mostrou!
Raimundo Cândido
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