Há quem diga que sempre é tempo de
travessias — solto a voz nas estradas, já não quero parar, meu caminho é de
pedras, como posso sonha — como diz a letra de uma música, e se não transpormos
as arriscadas correntezas ficaremos sempre às margens de nós mesmos. Não
importa como, ou porque, um vento norteador, continuamente, nos
impulsionará.
O Rio Poti, apressado em cumprir-se em largo apetite
oceânico, era como uma 5ª Sinfonia de Beethoven quando as margens se iam
estreitando. Às vezes, se expandia como uma clássica melodia ressoada a violino,
aparentando uma sutil calmaria e nesse ponto, na passagem do Bairro dos
Venâncios, os canoeiros aproveitavam para atravessar os viajantes, que vinham apressados
com seus indispensáveis afazeres ou regressavam resolutos de suas obrigações para
o sossego da Ilha, para o campestre Tourão ou o distante Pastos Bons.
O Zé Regino, excelente tocador
de violão, também entendia das artes de canoagem, juntamente com seu amigo, o
experiente remador Dão Aleixo, o único concorrente. Quando um ia firme e
determinado, o outro vinha com intensa coragem, cortando na proa a força bruta das
águas onde esta era menos intensa e sem o perigo de ir ao encontro das pedras
traiçoeiras.
A clientela que ia chegando logo
ajustava o preço da arriscada travessia que nunca passava de um reles cruzado. Um
jovem elegante que se aproxima, num gingado matreiro, já é bem conhecido da
dupla de canoeiro, e chama-se Antonio Xavier Mota do Nascimento, o Galo do
Tourão, possuidor de um ilustradíssimo discurso.
Com seriedade que lhe é própria,
pergunta:
—
Canoífero, quanto queres de remuneração pecuniária para me transportar deste pólo
ao outro hemisfério?
O
canoeiro também querendo se exibir, graceja espirituoso:
— Seu Antônio, o senhor está me
perguntando quanto cobro para lhe deixar lá no cemitério?
Indignado
com a réplica rimada do canoeiro, o Galo responde na bucha:
— Caboclo, se fores por
ignorância te perdoarei, mas se fores zombando de minha alta prosopopéia
caniancra, dar-te-ei um murro no alto da sinagoga que cairás chorando aos meus
pés como uma mulher perdida.
Toda lenda começa assim, de uma simples e maravilhosa
narração oral que cai no repertório popular como fato sucedido e que é repetido
pela imaginação poética, virando tradição.
Isso se deu, também, com Águia de Haia, o ilustradíssimo Rui
Barbosa. Um relato diz que, ao chegar em
casa, ouviu um barulho estranho vindo do quintal. Chegando lá, constatou haver
um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do
indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus amados patos,
disse-lhe:
— Oh, bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopéia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.
E o ladrão, confuso, diz:
— Dotô, eu levo ou deixo os pato?
— Oh, bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopéia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.
E o ladrão, confuso, diz:
— Dotô, eu levo ou deixo os pato?
Todo
homem rude, que chama atenção pelo feitio quixotesco, mas sendo dotado de uma rara
inteligência, aprimora-se pela escola da vida, pela lida na roça e sempre se
sobressairá no manejo das palavras ou no dom da arte, feito um Patativa ( Se um
doto me perguntá / Se o verso sem rima presta, / Calado eu não vou ficá / A
minha resposta é essa: / — Sem rima, a poesia / perde alguma simpatia / e uma
parte do primô / não merece munta Parma / é como corpo sem arma / E como
coração sem amô). No improviso das palavras, utilizadas pelo Galo do Tourão está
a mais pura prosa que brota da emoção, como ao chegar ao mercado para comprar
um cambo de peixes:
—
Moco, quanto queres por um cambo desses nadantes que vivem a explorar as águas
do Poti que nasce na Serra da Joaninha, atinge o Atlântico e vai até mesmo ao
Pacifico?
Ou mesmo quando viajava de saudosa
Maria Fumaça para a cidade de Ipu, e replica ao fiscal do vagão após a terceira
abordagem sobre uma passagem:
—
Bilheteiro, queres ter a equiessência de não incrementar a picotação desta
minha autorização de viagem a qual me conduzirá à terra de Iracema, a vigem dos
lábios de mel que a plebe apela para a ignorância e chama de a loira desposada
do sol.
Um
homem não é só um “ter” ou um “ser” de um instante presente, é também o que ele
profere e o que ele edifica sobre o torrão em que nasceu como um patrimônio
cultural e humano para que as ascendências se perpetuem nas gerações futuras e
fujam de um obscuro anonimato. Os discursos empolados e veementes do Sr.
Antonio Xavier é um dos nossos bens imateriais que devem ser tombados.
Trabalhador incansável, não media
esforços para sustentar uma prole numerosa, e sempre necessita da ajuda dos
filhos para a árdua terefa:
—
Marclô, oh filho meu, érguide deste leito e vai aquele aglomerado público que
os imbéceis chama de mercado e compra duas massas côncavas e convexas que
servirão de alimento vitais e que a peble apela para a ignorância e chamam de
cuscuz.
Por
motivos diversos corremos o risco de perder tudo que temos até mesmo a nossa preciosa
liberdade, pois um agir não é só determinado por um constrangimento exterior
mas também de acordo com nossas necessidades interiores. De uma feita, na
prisão, o Galo chama seu filho:
—
Marclô, oh filho meu, vai a tua casa e diz a tua mãe, que é a minha legitima
esposa, que eu não estou preso, estou apenas détido, que os imbécieis apelam
para a ignorância e chamam de detido.
Suas refutações espirituosas sempre
provocam um riso espontâneo nos lábios de quem o ler, como o que ocorre agora com
você, meu amigo leitor, e é de se esperar que, lá de onde esteja, com seu
agastamento peculiar, ele nos responda:
- Sujeito inculto, se ris de minha prosopopéia
por tua estúpida ignorância, eu te perdoo, mas se zombas com desdém por tua
alma tosca, dar-te-ei um cocorote no alto da tua sinagoga que ficarás a ver
estrelas.
Mas isso não acontece, e ele
permanece calado, na sua maneira elegante, no seu garbo de um fino dândi, a nos
mostrar que o silêncio, às vezes, é a melhor resposta...
Raimundo Candido
Ô, mundinho, e que me dizes da arte do mal falar de que era mestre o grande Adoniran Barbosa, pois saiba que tão difícil quanto dizer o português correto, mais ainda desafiador é dominar o dialeto lá do Brás!!!
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