(Tributo
aos heróis crateuenses
que
combateram na Guerra da Borracha)
O extenso e
profundo Piau, o derradeiro poço do Poti antes de passar pelo
desfiladeiro da Serra Grande e chegar ao vizinho estado do Piauí,
nunca secara em toda sua milenar história de intermitente e valoroso
rio. Só na Seca do Quinze foi que se falou em tanto abandono e
solidão. Até as cacimbas d’águas mostravam uma dura resistência
em desenraizar o precioso líquido para saciar a sede da povoação.
O aglomerado de casinhas que formava a aldeia da Ibiapaba sofria com
uma feroz seca, no distante ano de 1942, obrigando o digno sertanejo
a se metamorfosear, mais uma vez, num grotesco retirante. Um vento
quente que incomoda, até a sombra de um desbotado juazeiro, bafeja
nos rostos fantasmagóricos de seres semi-vivos que, de enxada na
mão, ciscam um duro chão e remoem a desmedida fome com o último
pão de macambira que havia no sertão.
Há léguas e
léguas dali, na Cidade Maravilhosa, Capital do País, em plena 2ª
Guerra Mundial, um Getúlio Vargas que comandava ditatorialmente um
sistema de governo bem próximo a um nazi-fascismo, mas com o rabo
preso aos americanos por uma dívida estratosférica recebia,
hesitante, as ordens do presidente americano Franklin Delano
Roosevelt: — Vamos Precisar de borracha para vencer a guerra! Já
que os japoneses tomaram a Floresta de Seringais, na Malásia,
plantada pelos ingleses com as sementes que levam daqui. A Amazônia
será a nossa salvação!
Com uma prontidão
de perdigueiro, rapidamente duas frentes se formaram: um front
militar de guerra, para onde o Brasil mandou suas tropas de juvenis
soldados, reforçando os aliados, e a outra para uma invencível
floresta, numa invisível guerra, composta de uma tropa de
desengonçados sertanejos arregimentados militarmente pela força
circunstancial e cruel de um ingrato tempo, a famigerada seca. Foram
todos iludidos por uma enganosa propaganda governamental e formaram o
EXÉRCITO DA BORRACHA, como determinava o acordo de Washington, de 22
de dezembro de 1942, data em que, dizem, marcou-se o inicio da
entrega da Amazônia.
No ano em que a
cidade se prepara para comemorar o Jubileu Sacerdotal Áureo do
eminente Padre José Juvêncio de Andrade, por todo Sertão de
Crateús a caatinga se revestia de um pesado manto cinzento. O
cidadão da bucólica Ibiapaba vivia num cruel dilema: Morrer
esperando viver ou viver esperando morrer!
Pelas esquinas do
povoado a conversa era a mesma: — Compadre tome cuidado! O
americano está pegando toda a nossa rapaziada. O Exército está
alistando tudo. Vão para a Amazônia produzir borracha ou vão lutar
nos campos de uma sangrenta guerra, lá para as bandas da Europa.
Seu Magalhães
estende o plangente olhar rumo à linha do horizonte, era um homem
acostumado às vicissitudes da vida, e diz: — Obrigado pelo aviso,
meu amigo, mas não posso fazer nada. Entre sofrer as agruras desta
cruel seca e ir à guerra, meu filho Francisco Pinto de Magalhães,
escolheu essa honrosa briga, pelo menos é a da borracha e não a do
fuzil e do canhão. Está iludido com o El dourado da propaganda, da
terra da fartura, do dinheiro e da felicidade. É um Paraíso, eles
dizem. Mas minha velha alma sabe que tudo isso é ilusão!
Todas as circunstâncias que aflora em
nosso subsistir, fortuitas ou não, servem apenas para gerar pontos
de partidas. E naquela bela tarde de domingo a Praça da Estação já
estava abarrotada de saudades dos familiares que se despedem de seus
corajosos soldados: os Franciscos Pinto, os Franciscos de Sousa, os
Raimundos Nonato, os Waldomiros da Silva... Eram dezenas e dezenas de
jovens audazes que embarcavam na espalhafatosa Maria Fumaça para
engrossar as fileiras do Batalhão da Borracha, com sede no SEMTA em
Fortaleza, de onde se mobilizava os trabalhadores para ir à Amazônia
e que partiriam do Porto de Mucuripe.
Muitos viam o mar
pela primeira vez e corajosamente o enfrentaram, mesmo sabendo-o
cheio de procelas tempestuosas a sugar vidas e espumar uma líquida
morte. Antes de zarpar, um rude poeta sertanejo que, talvez,
inspirado pelos versos de Fernando Pessoa — Deus
ao mar o perigo e o abismo deu, mas
nele é que espelhou o céu — soltou
seu canto num grito de despedida: “Adeus terra da minha
infância querida / adeus terra onde eu me criei / adeus pai, adeus
mãe, adeus tudo. / Eu não sei quando mais voltarei”.
Com uma lei
chamada áurea pensou-se em abolir a escravidão, mas um cativeiro
volta a atingir seu ponto culminante, sempre que o trabalho
assalariado não efetiva uma dignidade humana. Os brabos, com eram
conhecidos os sertanejos, os arigós, já em terras amazônicas logo
sentiram a diferença do livre descampado de um sertão quando se
viram presos dentro de um sufocante inferno verde. E recebem seus
utensílios de trabalho, tigelas, facas para tirar o látex, machados
e uma potente carabina Winchester com duzentas certeiras balas. Era
um decreto de escravidão financeira, o começo de uma dívida que
nunca iriam pagar.
Anoitece na
floresta. Sobem para os seus Tapiris, uma maloca de palha encima das
árvores. Derribam a escada, presa numa corda, para evitar que os
felinos, as cobras e os espíritos da floresta que trazem paludismo,
escorbuto e barriga d’água subam para a rústica choupana. Numa
surrada tipoia sonham com a época das faturas invernosas no distante
Ceará, ao som de terríveis esturros: Ruuummm! Ruuuuuuuummm! Os
urros de esfomeadas feras de olhos encarnados que parecem rubis no
escuro e cada vez mais perto.
Acordar cedo já é
um saudável costume, só estranhavam era aquela dura e apressada
ordem militar, dos capatazes: —
Ombora Pessoal! ‘Bora cuidar! ‘Bora se virar!
Mal
o dia amanhece já caminham por uma esteita alameda, deixando tigelas
coladas nos troncos das serringeuiras, bebendo o precioso suco
leitoso. Iam descalços sobre estivas de grossos troncos e finos
palmitos, se escorregassem na lama levavam uma alta descarga voltaica
dos cilíndricos puraquês. No fim da trilha, ao meio dia, almoçavam
o que tinham para comer, pois logo voltaviam recolhendo as vasilhas
lotadas de latêx, se os perigosos e traquinas silvicolas não as
tivessem derramado. A noite ficava reservada para a defumação, onde
eram feitas as enormes bolas de borracha, as pélas. De segunda a
segunda, nesta imutável rotina, induzia as boas lembranças ou a
torturosas saudades, da vida de um sertanejo, cada vez mais
distante do longínquo Ceará.
Quando
o crateuense Francisco de Sousa ouviu, pela BBC de londres, a
auspiciosa notícia de que a alemanha caíra, percebeu que tudo tinha
chagado ao fim. Soube, também, que o Governo Federal os abandonara e
para sua terra natal não mais podia voltar. Amargurado desabafa:
— Quero voltar mais não! Tenho sofrido tanto que se eu morrer por
essas bandas só minha alma não terá vergonha de voltar para o
Ceará!
A
Guerra da Borracha se impôs pela vontade férrea do rude sertanejo,
“retirado” de seu torrão aonde já era acostumados as lutas
inglórias. Mas esta foi pior. No fim de tudo, dos que escaparam,
restou somente seres silenciosos e taciturnos, uns brabos que se
tornam mansos e profundos como como os rios da região, e como o
último pão de macambira do sertão degustam agora um flagelo, uma
terrível injustiça, um genocídio. Pois, mais da metade dos 30 mil
nordestinos, os mocorongos, morreram a míngua, na penúria do
paraiso prometido pelo indiferente Governo Federal. Tudo isso
recorda-me Euclides da Cunha, descrevendo os últimos instantes de
Canudos quando um velho, uma criança e dois sertanejos ficaram,
honrosamente, de pé na frente de 5 mil soldados que rugiam como as
onças dos serringais. Tudo isso relembra-me um coronel Luís Alves
de Lima e Silva, a receber o título de Duque por ter assasinado com
requinte 12 mil pobres sertanejos e escravos na revolta da Balaiada,
em Caxias no Maranhão. É o nosso Brasil, das ensanguentadas
injustiças!
Mas resta um
recompensado consolo, todo dia 15 de junho, a data mais importante do
Estado do Acre, num patriótico pavilhão sobem três bandeiras
auriverdes, a brasileira no mastro central, a direita a flâmula do
Acre e a esquerda, lembrando a grande épopeia dos crateuenses, dos
cearenses, o pendão dos bravos sertanejos, a bandeira do Ceará.
E os acreanos, nossos diretos descendentes, orgulhosamente entoam:
Ouviram do Ipiranga as margens plácidas...
Raimundo Candido
José Alberto de Souza disse...
Tudo isto é pesquisa, é resgate, é registro de uma grandiosa epopéia para que as gerações futuras não releguem ao esquecimento esses importantes fatos da História escrita "a ferro e fogo" (Josué Guimarães) pelos seus antepassados. Esplêndida e comovente a figura "num patriótico pavilhão sobem três bandeiras auriverdes"!
José Alberto de Souza disse...
Tudo isto é pesquisa, é resgate, é registro de uma grandiosa epopéia para que as gerações futuras não releguem ao esquecimento esses importantes fatos da História escrita "a ferro e fogo" (Josué Guimarães) pelos seus antepassados. Esplêndida e comovente a figura "num patriótico pavilhão sobem três bandeiras auriverdes"!
Tudo isto é pesquisa, é resgate, é registro de uma grandiosa epopéia para que as gerações futuras não releguem ao esquecimento esses importantes fatos da História escrita "a ferro e fogo" (Josué Guimarães) pelos seus antepassados. Esplêndida e comovente a figura "num patriótico pavilhão sobem três bandeiras auriverdes"!
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