segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Goela Pagã


             É pela incompletude de minhas crenças que fico hesitante e céptico, duvidando até de que a Terra gire em torno do Sol. Desconfio que Deus ao criar a fé, em contrapartida, fez o diabo criar a religião, com indispensáveis regras e cerimônias inevitáveis.
             E é por longo silêncio, um legado da infância, que se me revelam as realidades abstratas e as concretudes incorpóreas, quando regresso de remotas eras. Como um arauto solene, o instante silencioso anuvia minhas guerras e proclama uma paz para minhas insociáveis inquietações.
             Tenho-O, por certo, como um sussurro dos ventos quando me oculto em cavernas, também nas sinfonias das águas que me chegam como um renovante dilúvio e respeito-O, intensamente, como ao fogo, guardião dos mistérios invisíveis, que me ilumina e me consome.
             Da terra, elemento primordial de que sou feito, princípio, meio e fim, acredito piamente na eternidade das pedras, como as pedras largadas da goela, num delirante estrangulamento do Itaim-assu, o rio aonde os Karatis saciavam a sede de vida e suavizavam a fadiga do imprevisível subsistir ao bacamarte dos colonos invasores.
             Karati não foi só um nome, foi uma família. Só podemos acreditar na existência daquilo que carrega um nome, como designação de linhagem. Há famílias que necessitam ainda de um complemento, um apelido para reforçar a estirpe: os taiocas, os pitombas, os macacos, os mocós, os bem-te-vis e os rabos-de-couro. Quando uma família não tem um nome leva pelo menos o apelido com insígnia, honrando a existência para gerações futuras. Cito o Domínio dos Pagãos, herdeiros dos karatis, que dominavam um tabuleiro arenoso, de vegetação rala e rasteira, com singelas casinhas de taipa ao lado de um majestoso campinho de futebol, tendo com trono as pedras esmeradas da Goela.
               Os rebentos caboclos, da nativa família, já nasciam com asas e escamas, com faro apuradíssimo do oportunista carcará e do atento socó, para a caça e para a pesca.  Herdaram, dos antigos moradores daquelas brenhas, o instinto e a perspicácia para sobrevivência, mas sempre renascendo no ressentimento de suas antigas misérias.
                Os pagãos pescavam nas pedras da goela, pescavam não, iam colhendo com as mãos na abundancia de peixes: os caris bodó, o mandis, o corrós, as piabas e pegavam somente o necessário para a subsistência diária, nos esconderijos, nas locas de pedras que ficavam imersas sob correntezas arriscadas. Sobre a confiante proteção da Mãe d’água, eles desconheciam até o medo, o maior de todos os perigos.
               Quando se matava a fome com chá de velame e pão do Zé Marques, comprados na bodega de Sr. Raimundo Fernandes, era uma beleza. O Chico Pagão em sua esperteza de alegre caçador, sempre trazia rolinhas pegue em arapucas ou uma fieira repleta de roliços preás tirados das gangorras engatilhadas nas trilhas do mato rasteiro. Era um grande dia de festa quando iam caçar pebas e quem não sabia estranhava aquele tambor que levavam, transbordando água. Cavavam o buraco até certo ponto e o inundavam com o líquido. Os coitados dos pebas saiam para tomar fôlego e, neste instante, eram feitos prisioneiros.
              Naquele fatídico dia, o irrequieto caçador Chico não imaginava que seu filho, endemoniado e furioso com uma faca na mão, tentaria matar o avô. Intromete-se para apaziguar a situação, mas recebe no corpo o desfeche de uma tragédia, apagando o sorriso nos lábios de quem achava que a vida uma eterna comédia. Os infortúnios que não suscitam terror provocam piedade, como o do Nenen Pagão, um garantido back central, zagueiro de talento que atuara nos times de futebol do Comercial, do Botafogo e do Cruzeiro, e se esquivara da morte por arma branca nas mãos de um neto, mas mergulha num copo como um velho mandrião e se entrega ao mal do século.
              A alegre Dona Fita, viúva do Nenen, aos 65 anos era uma atleta grandiosa, corria descalça pelas ruas, como a filha Olivia, uma campeã nata que ganhava todas as competições, todas as corridas promovidas pelo Lions Clube ou pelo 4º Bec e até na cidade de fortaleza. As dezenas de troféus e medalhas que enfeitam as paredes de seu quanto, comprovam uma força cromossômica que poderia elevar o nome de Crateús aos gloriosos pódios das Olimpíadas. Contabilize-se aí, mais um descaso, outro desapego dos olhos dos administradores públicos. No centenário da cidade, Emilia recebeu uma comenda municipal reconhecendo seu denodo e fibra, mas quando necessitava de um tênis para correr melhor, faltou-lhe a mão daqueles que podiam ajudar e não ajudaram, demonstrando a cegueira estúpida dos iníquos.
               Numa das últimas casas do Bairro da Ponte Preta, campo dos vencedores dos calungas, encontramos o Sr. Manoel, a se balançar despreocupado numa arejada rede e do alto dos seus 85 anos, o mais velho Pagão, afirma: “ Sou mais conhecido que cassaco”. É ele quem me esclarece o nome de Pagão na família.
              - Nosso patriarca chamava-se Francisco Magalhães, trabalhou muito tempo construindo a estrada de ferro que ia da cidade até o Distrito de Oiticica. Era época dos bolsões e muita gente escapava nas frentes de serviço devido a seca. Seu Chico resolveu casar e aproveitou a ocasião para também se batizar.
               Após a cerimônia do batismo cristão, quando o Pe. Juvêncio o aspergiu, com água benta, disse: Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém. Ali morria um nome e ressuscitou um Pagão. 
               Atroz contradição: o nome, no lugar de nascer; morre e, para uma futura família, herdeira dos primeiros habitantes das margens do Poti, fica somente um apelido sonoro a confirmar a linhagem de guerreiros, que se entrona nas lisas pedras da esplendorosa Goela, formando uma mágica e melancólica vila, o Reino dos Pagãos.
Raimundo Candido
academiadeletrasdecrateus.blogspot.com.br/

Jose Alberto de Souza disse...
Li e reli esse texto pleno de conhecimento intuitivo recolhido através de narrativas da gente simples do interior cearense, fiel às suas origens. Emblemática e oportuna a história da corredora que recebe a honraria da comenda do poder público, mas que não encontra uma mão estendida para lhe ajudar na compra de um tênis, lembra muito a situação atual de nossos atletas nessas Olímpiadas...

Um comentário:

  1. Li e reli esse texto pleno de conhecimento intuitivo recolhido através de narrativas da gente simples do interior cearense, fiel às suas origens. Emblemática e oportuna a história da corredora que recebe a honraria da comenda do poder público, mas que não encontra uma mão estendida para lhe ajudar na compra de um tênis, lembra muito a situação atual de nossos atletas nessas Olímpiadas...

    ResponderExcluir