sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Vaqueiros e Currais


             O vento da madrugada traz um princípio de luminosa plenitude que será preenchida com afazeres imprescindíveis do dia, a começar pelo canto do galo, o chilrear dos pássaros, o coachar dos sapos e o latido dos cães que acompanham os denotados vaqueiros em reflexos imutáveis de uma eterna marcha rumo ao currais.                           
             A vida sertaneja sempre traspôs as tramelas das velhas porteiras langorosas, tangida pelo ecoar dos aboios e pelo mugido do gado difundido no ar. O forte aroma de estrume é o perfume que assinala as fazendas de gado, onde um denotado homem foi se arraigando no rude solo de um arrebatado agreste, desfrutando as horas generosamente paternas ou instantes impiedosamente insensíveis de um tempo padrasto.
            Sempre que vejo a peleja diária destes “Antigos Guerreiros Exaustos da Refrega” como os intitulava Euclides da Cunha, no livro Os Sertões, declamo no pensamento um trecho do verso decassílabo do repentista pernambucano Dimas Batista, ao cantar um belo galope à beira-mar, obsequiando os vaqueiros “... é no braço, é na mão, é na carne, é no osso, / é no osso, é na carne, é na mão, é no braço. / É o vaqueiro, é o boi, é a corda, é o laço, / quando ele persegue e sabe laçar...”.  
             Tenho uma autentica e sanguínea admiração pela lida de gado. Não à inquietação monetária dos ricos fazendeiros, impassíveis às agruras diárias dos animais e do homem, mas ao heróico condutor de um processo histórico chamado Civilização do Couro, relatado por um historiador cearense, o mordaz Capistrano de Abreu.
              Numa das mais antigas propriedades rural dos Sertões de Crateús, a fazenda Boa Vista (época da Vila Príncipe Imperial), quando a criação de gado era feita na forma mais primitiva, com os animais livres, rodeando sem cercas, soltos na imensidão de uma caatinga, o vaqueiro e vate maior crateuense cantou um valente boi num belíssimo épico bucólico, um poemeto romanceado ao cachaçudo Touro Fusco, preso num curral de pau-a-pique feito a troncos de aroeiras: “Em tanto, o touro-fusco, escavacando, / A lama para os lados espargia, / Tão intensa que, a tudo enlameando, / De lama tudo em roda ele cobria; / E, gemendo e a cabeça maneando, / Contra os fortes mourões, arremetia, /  E os robustos mourões, estremecendo, / Às cornadas do touro iam cedendo.”
                O intrépido vaqueiro, além de incansável trabalhador, é um homem que crê. Crê, ao seu jeito, na vida simples que leva, isolando-se, desconfiando de uma nova vida, pois vaqueiro nunca muda de hábito. Crê nos duendes, crê nas rezadeiras que combatem o mal olhado, debelam a coisa feita e até curam as bicheiras dos animais, infestadas de repulsivas moscas.
               Na fazenda Pereiros, há um vaqueiro que, pelas feições sempre serena, não demonstra o titã aguerrido no trabalho incansável dentro de um coração valente e enrijecido na labuta diária com o gado. O senhor Manoel Joaninha chama todas as vacas leiteiras pelo nome – já ordenhara quase todas – a última é a valente mimosinha, com os chifres laçados no cambão, as patas traseiras peadas e o forte bezerro colado na pata dianteira se contorcendo na laçada, louco para mamar.
              A pressa em terminar a ordenha bem cedo se justifica: levará o gado solteiro para escapar do pesado verão no clima agradável da Serra. Uma caminhada longa e difícil de subir, passando pelas veredas íngremes do Buritizinho até chegar ao aprazível São Luis, onde já começaram as agitações alegres das farinhadas, que faz seu Manoel se lembrar do baião de Luiz Gonzaga: ”Tava na peneira eu tava peneirando / Eu tava num namoro eu tava namorando. / Na farinhada lá da Serra do Teixeira / Namorei uma cabôca nunca vi tão feiticeira”.
             Admiração maior é ver na dura labuta, a tanger os animais brutos, uma sensível e  feminina mulher.  A preta Ernestina já nasceu respirando os currais e tornou-se a vaqueira destemida e preferida do Senhor Euclides Maravilha. Tangia dezenas de gado, a pé, só com um cacetete na mão, desde as margens norte do Rio Poti até os aprazíveis climas dos Tucuns. Como Diadorim, filho(a) de Zeca Ramiro, no agreste de Guimarães, a Preta Ernestina foi a heroína de nossos sertões.
             O Senhor Manoel Pereira Alves , o Joaninha é só por insistência de família materna, estava sempre  com um par esporas nos pés e chibata de couro nas mãos como a dizer, se não estou montado em minha burra baia agora, a qualquer momento posso estar, deixou a arte de guiar uma boiada com o canto monótono e triste de um aboio para todos os seus filhos que conferiram as honras de vaqueiro, como uma grande herança.
               E a todos os intrépidos vaqueiros, desde o pernambucano Raimundo Jacó, assassinado por um companheiro, até à heróica Família dos Joaninhas,  trajando gibão, peitoral, perneiras, luvas, esporas, chapéu e chibata na mão, que para arrebanhar uma rês desgarrada, enfrentam os maiores perigos, um poeta menor cantou assim uma pega de boi na caatinga:  Flecham-se! / Estica-se na sela / feito um guerreiro medieval. / Uma trincheira de juremas pretas / é um estorvo traiçoeiro e cruel! / Sombras e réstias de luz mesclam-se / na inextricável mata de espinhos acesos. / Arrematam-se pelo sem fim da caatinga / insensível, a tanto heroísmo, a tanta destreza!

 Raimundo Candido

José Alberto de Souza disse...
Observador arguto das lides sertanejas,
            Nada escapa ao cronista atento
            Desde a dureza da vida do vaqueano
            Até o conformismo dessa alimária.

Um comentário:

  1. Observador arguto das lides sertanejas,
    Nada escapa ao cronista atento
    Desde a dureza da vida do vaqueano
    Até o conformismo dessa alimária.

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