terça-feira, 23 de outubro de 2012

sem título


o que é esse papel em branco onde sangro meus dias, onde lanço todos os meus sonhos e frustrações? pobre papel tem que aguentar tudo, porque tudo lhe cabe e lhe cai bem, até quando pega mal. eu escrevo porque não aguento carregar tudo sozinha e o papel branco e em branco, tão diferente da minha pele de cor negra e cheia de veias e pelos, divide comigo esta sobrecarga que me deixa de quatro ou me levanta. ah, o que estou dizendo, se escrever é uma dor de barriga, é um pouso forçado, é um quarto escuro e desacompanhado. escrever é um parto aos sete meses, é um aborto aos três. escrever é uma cólica menstrual, é um amor dividido, é um tênis velho, é o cabelo que insiste em cair nos olhos, é um cheiro de perfume antigo, é uma foto feia escondida, é o lençol rasgado, é a calcinha desbotada. escrever é cangalha sem azeia, é cavalo sem arreio, é rio sem sol. escrever é uma lágrima entalada na garganta, é uma chuvarada em dia de festa, é sal na ferida. escrever é uma dor fina de transa sem gozo, de partida sem abraço. pra mim escrever é sair em busca de precipícios, é se jogar sob um carro, é cair nua no asfalto quente. e ainda tem mais, escrever é deitar com porcos, é passear com os vira-latas, é voar com as andorinhas. escrevo porque canso de mim mesma, porque preciso que o mundo me caiba, porque não suporto um dia inteiro de realidade. 

Karla Gomes

Elias de França disse...
É equilibrar-se no fio da navalha, escandalizar-se da propria solidão, desentulhar os prantos num papel branco e em branco... é tanta coisa e quase nada, talvez, somento o jeito de não suportar, ja suportando, uma vida inteira de realidade.
Emocionante!

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