Quando o irascível Rio Poti escaramuça
pelo sertão, vira um potro indomável, transforma-se num touro de ímpeto buliçoso.
Não perdoa, logo retoma as margens
ribeirinhas que são suas e sem precisar dos princípios jurídicos do direito. Na
madrugada, quase sempre, vê-se a correria do povo fugindo da língua d’água que
entra por baixo das portas, sem pedir licença, e se avolumava dentro das casas que
ocuparam as terras baixas da cidade de Cratheús. As asas líquidas do Poti se
espraiam, com satisfação. É uma grande tristeza e a mais certa das tragédias anunciadas!
O volume aquoso vai engrossando à medida que
recebe as diversas grotas, os numerosos riachos nas duas margens e vai
serpenteando, rumo ao boqueirão da Serra Grande. Espetáculo bonito de se ver! Um dos afluentes
que mais injeta ímpeto, no já petulante Poti, é o Riacho Serrote, que vem
acelerado pelas profusas águas do Riacho do Mato, desde o Curral Velho dos Bomfim.
Ao chegar à foz, na Barra do Rio, forma-se o encontro do apocalipse com o caos.
As águas barrentas invadem as várzeas opostas de um local chamado Quirino, cujos
moradores mais antigos já perderam o significado deste nome na memória. Não
sabem quem trouxe a designação para um lugar tão abençoado. Ouviram, de um
padre, que um Imperador Romano mandou o Governador da Síria, chamado Quirino,
fazer um recenseamento na época da infância de Jesus Cristo, daí tiraram o nome.
Outro cidadão, metido a sabido, disse que o primeiro Quirino que chegou ao
local, fugia de uma guerra dos lados de Pernambuco, numa história que está bem contada
no romance “A Pedra do Reino” de um escritor engraçado chamado Ariano
Suassuna. Não faz diferença de como
surgiu a nomeação, o que importa é que, ali, onde mora o Chico Guda com sua
esposa, Dona Maria das Dores, e o seu filhinho Zé Guda, o gudinha, é o bendito Quirino.
— Ei, compadre Chico, a
irrigação na várzea para a plantação de arroz, este ano, vai ser muito boa!
Afirmava o amigo mais chegado de Guda. E ele, puxando a rédea da burra
estradeira, mas arredia, respondia já com um sorriso de satisfação no rosto: — Meu
compadre eu já estou preocupado é com o prejuízo que os pássaros vão me dar. Você
viu como a várzea já está apinhada de papa-arrozes e de sibites de toda
espécie? Mas preparei uma boa para eles. Vamos lá em casa, para você ver o
boneco que fiz, compadre!
Chico Guda (Apelido do tempo
de pirralho: —Vamos jogar bola de guda! Convidava os amiguinhos quando teve
tempo de brincar de bila) era um fino artífice, caprichara no espantalho feito
de tronco de imburana de cheiro, os olhos, o nariz e a boca estavam uma
perfeição e até os braços se erguiam aos céus para melhor espantar os pássaros.
Digna das obras dos santeiros que faziam imagens para as festas religiosas. O
compadre aprovou tanto, mas tanto, que, pasmo, enalteceu aquilo que viu: — Mas Chico
Guda... Tu devias trabalhar era nas festanças de Padim Padre Ciço de Juazeiro.
Tu ias era morrer de ficar rico, homem!
Uma plantação de arroz dá
trabalho. É uma planta delicada. Requer terreno bem preparado, com circulação
de água e tem que ser tudo muito bem planejado.
Tinha gente que dizia: — O
Chico Guda é um cabra muito afoito! Outro remendava: — Que nada, ele é teimoso,
quem já viu plantar arroz num sertão brabo deste!
A várzea alagada, depois da
inundação, ficou uma beleza com o arrozal crescendo, já mostrando as espiguetas
amareladas para alegria dos papa-arrozes. O espantalho de imburana já estava lá
no meio, tentando desempenhar sua missão de afugentar a passarada. Não dava
conta. Os bandos de pássaros já se acostumaram com a boniteza da obra de Chico
Guda.
A meninada passava o dia com a
baladeira esticada, afugentando as aves teimosas. O bando levanta voo e logo volta
para terminar de encher o papo. O Gudinha mirava o estilingue até no tronco do espantalho,
onde as aves, sem medo, sentavam. Colhem algumas sacas de grãos que deu para a
subsistência da família e apurar um dinheirinho na venda.
Os agricultores, no cansaço do
solo e nas invernadas fracas, de ano pra ano, alternam as culturas, saindo do
arroz para milho, do milho para o feijão e as coisas vão ficando mais fáceis de
semear, colher e sobreviver. E o velho espantalho, esquecido, foi ao chão, arrastado
pelas enxurradas dos anos vindouros, sumiu da Várzea do Quirino.
O Zé Guda, meninote já mais
forte, cumprindo ordens do pai, tinha ido dar águas aos animais no Poço da
Barra, quando a arisca burra, em que estava montado, volta e chega sozinha em
disparada! Correm e encontram o Gudinha gemendo de dor, sobre uns pedregulhos
da beira do rio. Não fraturara nenhum osso, mas o joelho logo incha como um
balão. Nem sebo de bode capado, nem banha de tejo gordo ou da venenosa cascavel
resolve. O menino caminha como um Sacy Pererê, pulando numa perna só!
Alguém sugere ao Chico fazer
uma promessa: — Se os remédios da terra não resolvem, Seu Chico, o remédio do
céu é tiro e queda! Faça uma promessa que o menino fica bom na hora! Até diz
que existe um santo milagreiro num povoadozinho chamado Lapa, que fica antes de
chegar no Castelo do Piauí. Uma imagem de Santo Antônio do rio que os
pescadores acharam enganchada nas moitas. Você sabe né, Seu Chico, ele é o santo dos
amputados, dos pescadores, dos caçadores, dos agricultores, dos cavalos, dos
jegues, dos burros, dos pobres e dos oprimidos. Faça a promessa e vá pagar na
Lapa. Dito e feito. O menino ficou bom do joelho, que permitiu montar, pai e
filho, numa parelha de animais e foram em busca de expiar o compromisso com o milagreiro
achado nas moitas do rio.
Pelo caminho vão se inteirando
dos poderes do santo e dos prodígios alcançados pelos peregrinos, que já voltam
das promessas realizadas e pagas. Chegando na Lapa, um lugarejo de casinhas
esparsas, perguntam pelo Santo Antônio. Informam-lhes que agora ele não está mais no
paiol de milho de quando foi encontrado, construíram uma capelinha num elevado,
com uma escadaria de tijolos para pagarem as promessas, os penitentes subindo
cada um dos degraus e de joelhos.
Alguns rezam, a oração que
sabem, em cada degrau que sobem. Outros, no silêncio de cada joelho que transpõe
um batente, está a própria oração. Assim vão, pai e filho, ajoelhados,
concentrados, agradecidos. Quando, de repente, o Zé Guda levanta-se, espantado,
os olhos arregalados olhando a imagem do Santo Antônio do rio, como se visse
uma assombração. O pai o repreende: — Se
ajoelha Zé! Respeita o santo que te curou! E o menino, ainda espantado,
responde gritando: — Mas é o Quirimba, pai!!! É o espantalho da roça de arroz
que o senhor plantou!!! Chico Guda olha, com mais atenção, e reconhece os olhos
redondos, o nariz afilado, a boca larga e ainda tem os braços abertos, agora
rogando milagres aos céus! Levanta-se também, muito assustado!
A multidão de fiéis censura o
comportamento dos dois. Chico ouve alguém dizer: — Mas que falta de respeito
grande é essa? Chamar o nosso Santo Antônio da Beira do rio de espantalho! Quem
pensa que são, esses dois, para chegar aqui deste jeito?
Chico Guda pressente que pode
haver uma revolta e procura sair rápido do povoado antes que aquela gente se
indigne de vez. E na volta vai cismando, ruminando com seus irrequietos botões:
“Como foi possível um espantalho sair de suas humildes e calejadas mãos e se transformar
no santo milagreiro daqueles? A prova estava ali, ao seu lado, havia curado o
seu filho, o gudinha!” E até chegar à abençoada várzea do Quirino rezou...
Rezou com todo o puro e reverenciado silêncio que sabia.
Raimundo Cândido
As lendas estão ai
ResponderExcluirpara alimentar as crendices populares
que vão surgindo e se alastrando
para se transformarem
nessas verdades comprovadas.