A história do sertão é feita
de retalhos de memórias. Retalhos desbotados no tempo, relatos despedaçados que
um bisavô narrou, repetidas vezes, ao avô e este, insistentemente, deu a
conhecer ao pai que, esperançoso, repassou imagens fragmentadas ao filho distraído,
que não tinha tempo de ouvir histórias. A
lembrança do sertão foi negligenciada pela última geração que só recorda da uma
pontinha do fio da meada de uma mal contada historia.
Quando o entardecer desce sobre
as terras exasperadas pelo sol, arrefece a paisagem rústica e ameniza a aridez do
clima. Mas naquele ano, de 1984, as chuvas vieram mesmo para compensar a sequência
de anos perversos que os céus enviaram ao Sertão de Cratheús. Ali, ao lado da imensa
Lagoa, no alto de um morrote, onde fica um casarão de fachada rósea, com uma calçada
alta, é lar do Senhor Manoel Costa e tudo estava um belíssimo Éden. As localidades
que circundam o grande lago: Bela Vista, Graciosa, Grota Verde, Bonito,
Arvoredo, Canto dos Pintos e, inclusive, o povoado de Éden, era uma verdejante
alegria e aquiescente esperança. E, enquanto a tarde se dispersava no
horizonte, o Senhor Manoel Costa mandara chamar o Antônio Adelino, um amigo e trabalhador
das suas terras, para um costumeiro dedo de prosa. As marrecas, os patos
selvagens revoavam pelo espelho da lagoa, de onde vinha uma suavizante brisa lacustre.
- Compadre Manoel, olhe quem
vai passando na estrada, braiando na burra faceira. É o seu compadre Baltazar
Elias e me parece que vai com muita pressa.
- Sim, amigo Adelino, neste
tempo chuvoso todo mundo se apressa. Mas saiba, compadre, que o Baltazar Elias é
o guardião de todas as histórias que aconteceram, e que ainda acontecem, ao
redor da nossa lagoa.
- Já que você tocou no
assunto, compadre, me diga se é verdade que ele arrancou mesmo uma botija lá do
Alto da Véia Luiza? O povo acha que sim, pois ele, além de muito sabido, é um fino
curador, um quase médico e nem raio, nem cobra, nem peste o derruba e até fala
com quem já morreu.
- O Povo, como sempre, espalha
histórias mal contadas, compadre. Nem o compadre Baltazar arrancou botija, nem
a Véia Luzia da Rocha, que viveu por aqui, é aquela baiana Luzia Coelho da
Rocha Passos que foi a dona de toda região de Cratheús. Foi tudo quase na mesma
época, de mil setecentos e tanto, mas eram duas pessoas totalmente diferentes.
O senhor Manoel notando a curiosa
perplexidade de Adelino, fez o favor de continuar a história: - O compadre
Baltazar me contou toda a história da lagoa. A velha Luiza da Rocha era uma
coronela muito rica. Tinha muitas terras, muito gado, muito ouro, muita prata e
até uma senzala ela tinha. Como não havia banco naquela época distante, as fortunas
eram enterradas em baús, ou em potes de barro, para se prevenirem contra os
ladrões. A Véia Luiza possuía um escravo de confiança, um negro forte e
destemido, que lhe obedecia na risca. Quando iam enterrar uma botija, levavam
outro negro para ajudar na empreitada. O coitado ficava lá, enterrado junto com
o tesouro, senão iria contar o local da botija. As assombrações da lagoa, que
você disse que viu, são as almas destes pobres coitados, que foram enganados
pela viúva velha. Ela era viúva de muitos maridos e matava os coitados por
qualquer desobediência. O cruel negro, sempre ao lado dela, executava-os sem
pena e sem dó! A Luiza da Lagoa era uma viúva negra das mais perversas. Um dia
chegou um cidadão querendo se casar com ela. Ela aceitou, mas avisou que ele
tinha que obedecer em tudo que ele mandasse, senão, senão. No inicio estava
tudo as mil maravilhas, mas o cabra, disfarçadamente, estudava o ambiente. No
dia em que Luzia se ausentou com o desalmado negro, o marido chamou um escravo
e mandou que esse pegasse o famoso animal de sela da sinhá. Colocaram as cangalhas
no burro de estimação e encheram de pedras, propositalmente, até o coitado
quebrar o espinhaço de tanto peso. Quando a Véia Luiza chegou e soube do
ocorrido, partiu com o capanga para matar mais um marido. O cabra já estava
prevenido, matou o negrão a paulada, pegou a viúva negra, deu-lhe uma grande pisa
de cipó e amarrou numa árvore em frente a fazenda, despida e só enrolada no
couro do burro que ela tanto estimava. Aguentou uns dias, sem comer e sem
beber, com o couro do animal secando no seu corpo. Algumas botijas já foram
desenterradas, como você sabe, mas deve de ter mais por aí, pois as
assombrações ainda perambulam pela Várzea da Lagoa, não é compadre Adelino?
- Sim. Sim compadre. Eu mesmo
vi, umas três vezes, elas andando pelo ar, vi até a noiva de branco, perdida no
meio do mato. Nunca me disseram onde tinha uma botija. Vi o buraco, onde
tiraram uma, e num é que eu passava por ali, todos santos os dias. Até com a
Maria dos Milagres, a escrava vaqueira da Véia Luzia que caiu de um cavalo e foi
arrastada até morrer, eu me peguei, para que ela me mostrar o local de um
tesouro enterrado no casco da lagoa.
- Pois é compadre, essa aí
também é outra história mal contada. Eu cheguei a ver a cruz desta escrava que
caiu do cavalo ao lado do poço do curtume, mas nunca foi milagrosa. A Maria dos
Milagres, que é milagrosa mesmo, foi outra escrava que chegou por aqui, talvez
fugindo do antigo dono, e estava muito doente. Amoitou-se, fez uma latada na
beira da estrada e ficou por lá muito tempo. A senhora Francisca Soares de
Moraes, sogra do compadre Baltazar, foi quem deu apoio a ela, levava alimento
todo dia. Quando morreu, lá mesmo foi enterrada, e virou uma alma milagrosa,
onde muitos se apegam e depois vêm acertar a paga dos milagres.
Os dois amigos, balançando-se
nas cadeiras da calçada da casa rósea, miravam o extenso lagamar, com o dia já escurecendo,
ouvindo o grasnar dos patos, vendo a revoada das marrecas e uma pálida luzinha que
brilhava no espelho d’água da lagoa os fazia matutar: “O que será aquilo, em
compadre?!”
Num entardecer, deste que descia
sobre a terra exasperada pelo sol, arrefecendo a paisagem rústica e amenizando
a aridez do clima, eu fui conhecer a famosa Lagoa do Manoel Costa. Estava
esturricada de tão seca e caminhei até o Alto da Véia Luzia. De longe se via,
no meio da Caatinga repleta de xique-xiques e mandacarus, um velho prédio abandonado
onde funcionou uma escolinha municipal e um estranho jegue que perambulava por
ali. Notei que ele não gostou muito da minha presença, ficou como que reclamando,
andando impaciente, pra lá e pra cá. Vi os troncos dos mourões de aroeira,
carcomidos pelo tempo, onde funcionou o antiquíssimo curral da velha fazenda da
viúva negra. E o Jegue ali, uma marmota impaciente, incomodado com a minha presença.
Algo me prevenia que aquele quadrúpede
estava era com lundu, e foi quando me lembrei do negro perverso da Viúva Negra.
Apressei o passo e sai rapidinho dali, pois para coisas assim, as misteriosas
assombrações da Lagoa, somente o mediúnico e corajoso Baltazar Elias é que
sabia, e muito bem, como se livrar.
Raimundo Cândido
Conto mais bonito de se contado,esse palavreado parece mais poesia que estoria, coisa de poeta mesmo! Parabéns poeta, valeu o tempo e o breakfast na frente do computer.
ResponderExcluirObrigado Elena Lucia. Um abraço.
ExcluirStaí, aos poucos vai voltando ao velho chão
ResponderExcluirque nunca deveria ter abandonado,
deixando as imagens
como mais apropriadas ao “faz-se buquê”...
sou ali depertinho da:Grota Verde,conhecie seu Manoel Costa e o finado Adelino.Linda prosa.
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