sexta-feira, 16 de março de 2012



                                                           A rosa
Doaram-lhe uma rosa. Seus olhos e mãos ameigavam o vermelho da rosa. Delicadamente ela cingiu o rosto com a rosa. Alinhou a máquina em direção a rosa deitada em seu rosto juvenil e clicou. Sorriu para si e a rosa, admirando a fotografia. Embalou a rosa entre os esguios braços tatuados. Nos caracóis dos cabelos castanhos, ela encravou a rosa sem espinhos. Enquanto observava a linda morena criando ininterruptos fluxos de ternuras com a rosa, me perguntei por que recentemente ela tentou mais um suicídio.
 

Silas Falcão
  Caça

Quando o desenhista Jean-Baptiste Debret, um pintor devotado em homenagear Napoleão (Naipolloné como o chamavam seus compatriotas), aceitou o convite da Coroa Portuguesa para vir lecionar pintura na Academia de Artes e Oficio do Rio de Janeiro, em 1816, na certa já imaginava a diversidade incomum e exótica da paisagem do novo mundo para os seus ávidos e destros pincéis. Foram tantos os quadros que revelaram o cotidiano de um Brasil Colônia, que sua obra “Viagem Pitoresca” converteu-se num importante livro histórico. Há um belíssimo painel em que um índio deitado de costa exibe uma extrema habilidade no manejo do arco e se faz acompanhar de dois outros nativos que espreitam um bando de patos voando em sua direção. É a figurinha predileta que ornamentava o famoso livro Exame de Admissão que muito estimulou o interesse dos estudantes pelos encantos da natureza.
          Desde a pré-história, a luta pela sobrevivência induzia à caça. Do indígena com arco e flecha ao humilde caboclo com uma rústica espingarda de ouvido, a velha soca-soca, que a atividade da caça virou uma refinada arte e uma impreterível necessidade. A intervenção de um mito que habitava o mato, o Caipora, se fez necessário para controlar a situação e foi com certeza o primeiro empregado do IBAMA. Indispensável também era depositar uns farelos de fumo de corda no tronco de uma árvore e ainda contar com ajuda da sorte, pois o travesso negrinho montado num dentuço porco-do-mato era traiçoeiro e afugentava as caças despistando o caçador com estalos de galhos e simulando o ruído dos animais em fuga.
         Um poeta e grande caçador, chamado Patativa cantou: ”Eu vou caçando/ a minha vida levando/ com meus cachorros fie,/ com eles nada me imbaraça,/ só não mato muita caça/ quando o caipora não quer.// É quem a caça defende/ e quando o caipora entende/ dos cachorros trapaiá/ o mato fica esquisito/ e o caçador fica aflito/ não mata nem um preá”.
            O Curupira, esse estranho ser que tem os calcanhares voltados para frente, acabou vencendo a todos os caçadores!
Hoje, ouço a Sariema soltar sua gostosa gargalhada, quase nas portas da cidade sem o temor das flechas com ponta de osso ou do atordoante estampido da pólvora, que a fazia disparar em desenfreada carreira.
            Outrora era comum o karati instalar-se num tosco jirau, entre os troncos das Aroeiras, feito cama de varas, só para espreitar a chegada dos animais no bebedouro. Do seu posto de observação arremessava flechas certeiras nas cutias, nas jaguatiricas, nos porcos-do-mato que se exibiam aos bandos, em marcha ligeira.
          Quem passa pelas proximidades do Bar do Chico Correia, já na saída para o Curral Velho dos Poetas, avista Seu Aluísio Cavalcante, tolhido, sentado numa cadeira posta na calçada, pelo resultado de uma inesperada trombose, e nem imagina o fino caçador que fora um dia. Dizem que era protegido de Oxossi, o Orixá da caça. Ao embrenhar-se na mata já fazia parte dela, só se ouvia os estampidos da espingarda e ninguém, nem homem nem bicho, via sequer um vulto de um caçador, pela astúcia,  sutileza e  jeito ardiloso de caçar. Numa caminhada, por uma região propícia, trazia rapidamente duas dúzias de saborosas codornizes, aí era só entregar nas casas que lhe solicitaram a incumbência.
          Outro que não ficava muito atrás era o Quidé, um morador do bairro dos Patriarcas, caçador de olhos, ouvidos e faro apuradíssimos nesta milenar arte de Ártemis. Conhecia todos os segredos para uma caçada eficiente, camuflando-se na mata que nem camaleão. A ardilosa Nambu, a elegante Asa Branca, as tumultuosas Avoantes ou as preferidas Codornizes, ele ia buscar era ao meio dia de um sol escaldante, quando estavam serenamente malhando debaixo de uma moita.
         Numa época, um pássaro malvado que come até cobra queimada, estava dizimando os recém nascidos borregos na Fazenda São Francisco. Os criadores diziam assim: Em céu de gavião, pinto não pia e cabrito não berra! Convocaram então o Quidé para caçar à vontade na região, contanto que eliminasse àqueles que possuem mais coragem que o homem, os famigerados Carcarás. Por um contrato verbal, cada predador eliminado era um saboroso queijo que o caçador levava para casa. Aproveitou então a ocasião e construiu uma forja na beira de um grande açude no qual as aves iam beber, ficou camuflado pela água, galhos e folhas sobre a cabeça. Foi só recolhendo, rapidamente, com as duas mãos, uma centena de sedentas avoantes.
         Um dos grandes espetáculos da natureza é um bando de marrecas viuvinhas fazendo uma barulhenta revoada sobre as chamas amarradas na beira da lagoa, é sem dúvida a mais clássica de todas as caçadas. Em baixo sobre as pedras, insistentemente, as duas chamas, a lavandeira e o rabo curto – todas as chamas tem um nome – esgoelavam-se num i-re rê, i-re-rê, i-re-rê contínuo. E lá de cima o bando todo grasna, respondendo ao chamado, sem perceber o perigo que lhes aguarda na descida. Desfazem aquele belíssimo V de vitoria que sempre nos emociona nos textos de auto-ajuda, e sucumbem ao engodo deslizando pelo ar, com suas asas tremeluzendo à luz da lua, para uma chuvarada de chumbo e o desesperado encontro com a morte.
          Neste momento tomei conhecimento que o Tatu-bola virou Herói Nacional. Pasmado ainda estou, pois o matutão, o bobão achou que um dia aquela couraça conversível iria lhe salvar. Ele está mais é para um mártir santo em acreditar que estaria livre de seus atrozes inimigos, pois se esqueceu do pior deles: o homem. Naquele dia, havia dois cachorros latindo e correndo desesperados pela solta de catingueira, numa noite sem lua e uns destemidos caçadores de primeira viagem levando nos ombros enxadas, picaretas, foices, e lanternas, pulando cercas de um campo aberto, em que os carrapichos disputavam espaço com as jitiranas e as moitas de pega-pinto que rasgavam as roupas e os braços dos incautos aventureiros. No local em que os cachorros acuavam havia um razoável buraco, cavou-se até o amanhecer e tenho a leve impressão de que os pebas que moravam ali ainda riem dos bisonhos caçadores, mas pensei cá com meus botões, se fosse o inocente do bola...
         O tolypeutes tricinctus está confirmado como o Mascote Oficial da Copa do Mundo de 2014, numa belíssima homenagem da Associação Caatinga da Serra das Almas, pois mesmo em fase de extinção, os que restaram e perambulam por esse imenso sertão de Crateús ainda pensam que o mundo é uma bolota e acho que por isso a Fifa o escolheu.
         Agora que todos os olhos do planeta Terra estão direcionados para a Mata Branca deste nosso imenso sertão, devemos pensar duas vezes se formos cortar uns gravetos para acender o fogão a lenha ou se desejarmos uma saborosa avoante assada, nem pense mais em ofertar uma tora de fumo no tronco de uma árvore, o caminho é outro, os buliçosos Curupiras atuais são eficazes funcionários do Instituto do Meio Ambiente... Todo cuidado é pouco!

Raimundo Candido

Elias de França disse...
Grande Raimundo!
Assim você salva o meio ambiente, protege os nossos animais silvestres, mas nos mata de saudades, de um tempo não tão distante em que acordávamos com o canto dos canários e ganhávamos o mato, quais neocaratis, à caça de uma "mistura" para o almoço.
Agora não passamos de neo-ecologistas, chorando a falta do canário, da onça pintada e outros bichos.
Mas salve o Tatu-Bola 2014! Crateús, com sua habilidade de forjar fenômenos nacionais, emplaca mais um, agora INTERNACIONAL. Parabens à Associação Caatinga!
José Alberto de Souza disse...
Ilustre cantador do Cariri:
Que fluência, quanta ilustração e sabedoria você nos transmite. Não é atoa que em suas veias corre o sangue nobre de Dona Delite que lhe deve ter estimulado nesses caminhos literários, que hoje transborda qual manancial de perene resgate da cultura nessa abençoada e gloriosa terra que já aprendemos a amar

terça-feira, 13 de março de 2012

                                                  BICHINHO DE FELTRO
                                                                                                   Edilson Macedo


A moça põe a mão sobre meu peito
Ela: às vezes penso que
Teu coração é do lado direito...
Eu: às vezes meu coração
É do lado direito, na contramão...
Ela sorrir, me olha
Encabulada e me abraça
Como se eu fosse
Um bichinho de feltro


                                               
                                               A ÚLTIMA IMAGEM

Nela a solidão é uma áspera peça de renda preta estendida em sua alma.  
Desde a adolescência, as suas mãos rendeiras criam imagens sem erros de pontos.
Projetando nos bilros a sua própria vida não vivida, ela rendilha, rendilha trocando os bilros com agilidade, frequência e destreza .
Dia seguinte rendado de sol, sobre a almofada com a imagem rendilhada do marido falecido nos distantes bilros da sua mocidade, ela foi encontrada morta.

Raimundo Candido disse... 
Amigo Silas, quem conjuga o verbo bilrar tecido com os raios do sol numa trama de vida e morte, o que é? Só pode ser um extremado poeta do rio Poti!