quarta-feira, 18 de junho de 2014

Touradas de Raquel


As antigas ruas do centro de Fortaleza impregnam os pés dos transeuntes de uma doce amargura poética, fazendo com que voltemos, fatalmente, a lhes revisitar. Penso que é uma espécie de magia, feito imã, da Fortitudine que nos diz o seu velho brasão, desrespeitosamente, alterado pelos seguidos gestores que se empoleiram no poder.
Pela Rua Floriano Peixoto dobro à direita, na Rua São Paulo, e sigo para a Rua Gal Bezerril da velha praça do herói viçosense da Guerra do Paraguai, Gal Tibúrcio. Tenho fascínio pela Praça dos Leões, pelo Museu do Ceará, guardião do Bode Ioiô, pelo Palácio da Luz, sede da ACL, pela histórica Igreja de N. S. do Rosário com uma fila de moradores de rua, recebendo uma reles merendinha distribuída por padres para enganar a fome diária e conseguirem dormir, mais uma vez, ao relento na cidade de N. S. de Assunção. Meu coração se alegra, imensamente, quando avisto uma velha amiga sentada no mesmo banco da praça, a escritora Raquel de Queiroz.
Percebo que um cidadão lhe faz companhia, com orgulhosa “poses” para uma cessão de fotos. Ainda bem que ele se retira com a minha aproximação e aproveito para uma afirmativa fortuita, dando sinal da minha chegada.
— Vejo que esteve em boa companhia, amiga Raquel de Queiroz.
Serena estava e tranquila continuou com as pernas cruzadas, as mãos pousadas no colo, quando me respondeu:
— Bom dia, amigo Raimundo. Que bom lhe ver mais uma vez por aqui. Você bem sabe que eu gosto da vida, que simpatizo com as pessoas felizes. Sinto um enorme prazer em viver acompanhada, embora sabendo que a gente nasça e morra só!
Não esperou que eu me sentasse ao seu lado, para perguntar:
— E como está a cálida terra do nosso grande poeta José Coriolano?
Ela percebe, pelo brilho dos meus olhos, a surpresa que me causou aquela interrogação e responde-me, antes que possa reagir, numa óbvia pergunta:
— Sim amigo, é verdade. Li Impressões e Gemidos de José Coriolano, um dos bons livros da estante de meu velho pai. Vim de uma família de intelectuais, Raimundo! E Raquel continua, deleitando-se nas recordações que ela mesma ia tecendo.
— O Touro-fusco, cantado magistralmente em oitavas rimadas pelo poeta da Ribeira do Poti, me trás boas lembranças. Enquanto Coriolano verseja o urro retumbante, qual um trovão, do touro cachaçudo da Fazenda Boa Vista de Cratheús, fazendo estremecer a terra e tremer o mato, lembra-me os touros da minha infância, na terra dos Monólitos. Você está com tempo de me ouvir, Raimundo?
— Mas é claro, amiga Raquel, hoje eu tenho todo o tempo do mundo!
Ela ri e continua: — Recordo do Touro Carnaúba, da fazenda Junco. Era um boi muito bravo, de aspa aguda, olhos de fogo, venta chamejante e preto como o cão que brigava três dias e três noites seguidas, se assim lhe desse tempo de beber água. Já o touro Xuíte, onde no lugar do pescoço tinha um tronco, era de um gênio ruim. Um dia ele atacou o trem. O maquinista diminuía a marcha para entrar nas agulhas e ria, pensando que o touro velho ia se estrepar todo ao se chocar com a máquina. Soltou um jato de vapor quente para espantá-lo. Que nada! O Xuíte mais se enfezou, meteu os chifres naqueles canos de cobres que correm pela barriga da locomotiva, arrancou tudo como quem arranca serpentina num carro de carnaval. A máquina roncou um pouco e logo parou, em cima das agulhas. Então quem teve medo foi o maquinista vendo o touro bravo em redor, ciscando, furioso.
Tão atento estava a cada saborosa palavra pronunciada pela escritora, que meus olhos nem piscavam. Ela continuou:
- Tem a história de outro touro valente chamado Cabeça-Rosilha. Foi na Fazenda Califórnia, que pertenceu a minha avó. Cabeça-Rosilha era o soberano total do curral. Apareceu um tourinho novo, azeitão-escuro de lombo branco, chamado de Caçote. Caçote se botou para o velho touro como se fosse um veterano, igual aqueles garnizés que tiram uma coragem imensa que ninguém sabe de onde. Tenho certeza, Raimundo, que se o Cabeça-Rosilha fosse o mesmo, teria dado cabo do tourinho naquela noite mesmo. Amanheceu o dia e a briga ainda estava rendendo. De tarde, as vacas voltaram, e os dois brigando. O chão já estava todo riscado de regos fundos só deles cavarem a terra e havia tanto mato acamado por onde pisavam que era um balseiro só, como se ali houvesse passado uma grande enchente. Davam um tempo, como se ouvissem um gongo, e logo voltavam a entrelaçarem os chifres. Ouviu-se um estalo, como de pau quebrado. O cabeça-Rosilha recuou. Estava com um chifre arrancado, ficou só o sabugo no lugar.  O tourinho quis continuar a briga e o velho touro recuou, e recuou mais e mais. Desceu a procura do riacho do sangradouro e sumiu no meio da mata fechada. Foi se esconder com a sua vergonha. O Caçote era o novo dono do curral. Passou-se o inverno, chegou o verão e todos tinham dado o Cabeça-Rosilha como morto. Um dia, ouve-se um urro bem conhecido. Ninguém acreditou, até pensou-se em assombração de touro velho. Depois de um ano, abandonado no meio da mata fechada, voltava o velho touro com as duas espadas reluzentes na cabeça. Inacreditável, não é amigo Raimundo! Pois bem, o bruto não esperou que ninguém abrisse a porteira, meteu os ombros e voou pau para tudo que era lado. A briga foi ali, no meio do curral e desta vez foi rápida. Ouviu-se um longo esturro de touro apanhado. O Cabeça-Rosilha tinha levantado o Caçote pelos chifres, como quem levanta um gato. Ergueu nos ares quarenta arroubas de touro vivo e arremessou por cima da cerca. Desta vez foi o Caçote quem sumiu de mata adentro, no breu da noite escura. 
Raquel de Queiroz estava mesmo com vontade de me encantar com um passado bovídeo e confesso que no meio de suas deliciosas histórias viajei, de volta ao meu querido sertão, em lapsos de memória, para as histórias de touros na Ribeira do Poti. Regressei à Fazenda Pereiros, de Seu Júlio Menezes, o meu avô. Lá, nas margens do Rio Poti, um touro pintadão chamado Capote, era tal qual elefante velho, mas não podia ouvir bramido que não fosse o dele, saía derrubando cercas até peitar o atrevido do vizinho, que ousou lhe afrontar.
Enquanto Raquel narrava as aventuras de Cabeça-Rosilha, eu senti as velhas emoções do Circo de Touros, onde uma surrada empanada guardava as arquibancadas de madeira que circundavam a arena protegida por uma forte cerca de ferro, ao lado do clube 7 de Setembro, na Praça da Cadeia. Ouvi os mesmos gritos (Olé! Olé!) da famosa Plaza de Toros de Madrid, vindos do poleiro de tábuas corridas, onde o Senhor Milton e  Edmilson Menezes avolumavam a multidão  sob o olhar indiferente de um avultado pé de mulungu. O indomável Touro Preto de Seu Chico Rodrigues mostrava-se como um Bos Taurus Ibericus, o verdadeiro touro selvagem. O toureiro Curió, vencido e humilhado, pedira socorro ao toureiro Bola Sete, um gaúcho negro, alto e experiente. Um carro de propaganda percorrera as ruas da cidade, chamando público para a Volta do Touro Preto que enfrentaria agora o invencível gaúcho Bola Sete.
Quando o músico Expedito Paiva soou o trombone (Como as cornetas que derrubaram os murros de Jericó!) o Touro Preto entrou furioso na arena, ciscava o chão com as pesadas patas dianteiras, soltando chispas de fogo pelos olhos,  mirando à plateia. Os dois destemidos toureiros já o esperavam com uma capa vermelha na mão e a refrega começa. Eles driblam as investidas do animal, só com movimentos de pernas, e os afiados chifres riscam o ar atrás do capote de pano. Súbito, todos prendem a respiração, só se ouvia o fole de ar quente das narinas do Touro Preto soprando no rosto de Bola Sete que se ajoelhara na frente de animal. ( - É um doido! Alguém gritou quebrando o silêncio.) Como uma cascavel o toureiro dá o bote e se atraca na cabeçorra do touro que o sacoleja como a um chicote. Estava tudo planejado. Curió também se abraça nas costas de Bola Sete e aos pouco contém a força do indomável Touro Preto.    De repente ouvi um chamado, distante:
 - Raimundo! Oh, Raimundo!!!
 - Desculpe, Raquel! Distraí-me um pouco! Pode continuar a sua história...
 - Já relatei tudo, meu amigo! Mas não tem nada não, sei que você estava na sua terra, nas suas lembranças... Somos assim, presos ao passado! E eu não sei se lhe parabenizo por isso ou dou os pêsames. Despeço-me, lembrando que menti para minha amiga Raquel. Não tinha todo tempo do mundo, pois estava na hora de voltar para Cratheús, mesmo já tendo regressado espiritualmente. E descubro mais uma vez que o tempo presente não faz parte do meu ser. Sou um vulto do passado, eu e Raquel. E para que melhor companhia!    


Raimundo Cândido