quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

A Pedra do Negro




Vi-me, recentemente, cismando com as respostas para uma difícil pergunta: O que é um Milagre? O farfalhar das folhas no afago do vento, o brilho da luz descortinando a escuridão, a Terra girando no vazio do firmamento, uma flor brotando no asfalto, os avanços da ciência em prol da vida, o sorriso gratuito de uma criança...  Iluminei-me, ainda mais, quando me lembrei dos prodígios de Jesus de Nazaré, uma pessoa extraordinária e de pele negra com cabelo crespo, segundo a própria Bíblia e que deu luz aos cegos, voz aos mudos, o caminhar aos aleijados, saúde aos enfermos, vida aos mortos! Negro??? Há de me perguntar. Sim, Negro! Jesus nasceu na África e é descendente da linhagem de Caim, com uma sequência genealógica de pessoas de pele escura, como Tamar, Raabe, Rute, Betsabá e a própria Maria, sua mãe.
Os milagres, que me avivam os neurônios, são as inexplicáveis interferências dos escravos, que falecerem nos sertões de Cratheus e se mostram milagreiros pelo poder da fé do sertanejo, esperançoso nas forças misteriosas dos céus. Será que por serem da cor de Jesus e pelo sofrimento por que passaram, adquiriram esse poder de interceder por aqueles que lhes pedem auxilio? Eu creio que sim!
E foram muitos: Felícia, da localidade de Poti, escrava da perversa senhora Joana Mereré, que a castigava, diariamente, com chicotadas nas costas e com queimaduras que nunca saravam. Felícia morreu no local em que imaginava ser enterrada, transformando-se num santuário de pagamento de promessas. Uma negra santa, na voz do Povo, sim! A Maria dos Milagres é uma escrava milagrosa que intercede pelos devotos de Éden, Valente, Lagoa de Manoel Costa, Grota Verde, Bonito, Arvoredo e Canto dos Pintos. Muitos a veneram na fé, pois são atendidos em suas promessas. Uma negra santa, na voz do Povo, sim! A escrava Bernaldina, que se enforcou no Poço da Confusão em Sto Antonio dos Azevedos, era despertada com um pontiagudo esporão com que lhe cutucavam o fundo da rede para uma eterna luta de sofrimento e dor. Uma negra santa, na voz do Povo, sim! A negra Nazara que, ao fugir de um cativeiro, morreu de fome e sede nos limites de Novo Oriente e Independência. O túmulo de Nazara atende aos romeiros de Porcos, Belém de Campos, Timbaúba, Assentamento Cantinho e Lagoa dos Patos. Também uma negra santa, na voz do povo, sim!
Um mapa estatístico da Província do Piauí (1854) mostra a Vila Príncipe Imperial, Cratheús atual, com 9707 cidadãos livres e 1028 escravos. Mesmo com a “libertadora” Lei Áurea, de 1888, foram poucos os escravos que sobreviveram ao padecimento de um dolorido existir e nunca souberam que estavam libertos. No lombo da Serra da Ibiapaba, no final do século XIX, era uma riqueza só, em Jatobá, Uruçu, Cafundó e Palmeiras se produziam cachaça, rapadura, farinha, manzape e beijú com ajuda destes explorados trabalhadores negros. Tudo, dádiva do Riacho Oitis que corre pelo dorso da Serra Azul, de Palmeiras na Ipaporanga até desaguar no Poço Pesqueiro, do Rio Poti, no Distrito de Ibiapaba.
Na localidade de Palmeiras, bem acima da ladeira do Humaitá e num produtível sitio, a casa de farinha e o engenho funcionavam a todo vapor. Descascar a mandioca, ralar no caititu, levar ao cocho para pubar, depois ao tipiri para a retirada da venenosa manipueira e, por fim, torrar ao forno, era uma grande festa. Mas, o negro mostrava mesmo seu valor, era no engenho, no corte da cana, na moagem, na fervura do caldo nos tachos, na massadeira para bater, dá o ponto e colocar nas formas para fazer as gostosas rapaduras.
 E havia Benedito, entre os “libertos”, um jovem, atlético e simpático negro que crescera unido aos filhos de Sinhozinho.  Desde crianças que brincavam juntos e, entre eles, sinhazinha, a filha única do dono do sítio. Já haviam notado certas intimidades entre o negro e a moça, mas tomavam como mesura de um servo a sua dona.
 Às vezes o amor, perigosamente, se apresenta cego e com asas. Cego para não ver os obstáculos e com asas para transpô-los. E assim se fez. O coração de sinhazinha pulsava ao ritmo do olhar de Benedito que, louco de paixão, se arriscava, mostrava intimidade demais.
Sabiam da impossibilidade daquele amor, tinham consciência do risco da união de um escravo e uma sinhazinha e isso era como pedir uma cruel punição.  O amor total é a sabedoria dos tolos. Benedito e Sinhazinha consumam uma tolice louca, resolvem fugir.
Madrugada sem lua, mal se via a trilha da descida da serra, rumo ao Humaitá, lá embaixo, no sertão.  Benedito já descera muitas vezes os sem fins de ladeira para entregar as cargas de rapadura e os sacos de farinha nos povoado de Assis e Águas Belas. Mas agora, com sinhazinha ao lado, a rampa ficava mais pesada e mais penosa, mesmo tangidos pela pressa e pelo medo. Não demora, em Palmeiras, a notarem a ausência de sinhá e logo descobrem a fuga dos enamorados. O raivoso senhor, cercado de capatazes, se prepara como se fosse a uma guerra, armas brancas e paus de fogo de prontidão, e cavalgam rápido para interceder a fuga.
 O folego de sinhazinha pedia um descanso e, ao se afastarem do sopé da serra, se abrigam debaixo de uma árvore, sobre uma convidativa pedra.  Um bom rastreador usa uma visão apurada, um faro aguçado e o espírito em total alerta para os rastros no ar e no chão. Chegam de surpresa e cercam o local. Sinhazinha dormia com a cabeça pousada no colo de Benedito. Foi quando opai ordenou que a moça voltasse para casa e deixou que seus capangas “tomassem de conta” de Benedito. Depois de muito rogos pelo amado, Sinhá,  sem alternativa, volta para casa na garupa da montaria do pai.
 Os assassinos esperam que se afastem para dar inicio à barbárie. Somente a mata ouviu os gritos do negro, esfaqueado, impiedosamente, até a morte.  E ali, ao lado da pedra, hoje a Lagoa dos Limas, enterraram Benedito.   Alguém, que por ali passava, ouviu a consciência gritar: - Tu que passas, descobre-te! Aqui dorme um forte que morreu! E colocou uma cruz, em honra a um nobre escravo e ao imortal amor! Outro rezou uma oração em louvor. Houve quem fizesse uma promessa por paz e saúde e foi prontamente atendido.  Um dia, o Raimundo Louro, comerciante do Mercado Central, ia para um forró por ali e, ao passar pela Cruz do Negro, um vulto tomou-lhe a frente e ele logo entendeu, voltou para casa. No outro dia soube que ouve uma grande confusão na festa e alguém procurava um Mereré para matar.
Hoje, na lagoa dos Limas, perto da trilha do Humaitá, entre Cratheús e Ipaporanga, há um negro santo atendendo aos rogos do povoado de Assis, Flores, Chora, Coroa, Rosário e Cajá dos Jeorges, pois sabem que na sepultura da Pedra do Negro, como na Cruz de Cristo, o Cristo Negro, um escravo santo sempre atenderá as súplicas de quem o implora! E do meu cismar inicial, chego à conclusão: O fruto da fé é que é o verdadeiro milagre, então!
 P.S. Soube-se que a sinhazinha fora dada em casamento a um rico viúvo, um fazendeiro para o lado de Oeiras, no Piauí, e que nascera um simpático negrinho por lá!
Raimundo Cândido