quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Espírito natalino


Na época em que os Galos das Torres (o Bonfim, um galiforme vivaz, e o atencioso Macedo) irradiavam a canção de natal – propositalmente antecipada para dar tempo aos preparativos de praxe – com enternecida emoção de repicados blim-blãos por ordem de um gorducho americanizado chamado Papai Noel conduzindo um trenó puxado por excêntricas renas, o meu olhar não andava tão corrompido ou doutrinado. 

O clima de festa logo se espalhava, como as manhãs tecidas pelos galos do poeta pernambucano João Cabral, e surpreendia a todos: – E já é natal? Alguns avoados, os desatentos da ação ímpia do tempo, perguntavam em perplexa alegria. 

Mesmo com as múltiplas preocupações de mãe, acumulando as funções de pai, nossa genitora já havia comprado uns metros de pano de brim para fazer a roupa nova dos filhos e caminhávamos contentes para a Rua São José, na extremidade oeste da cidade, aonde Dona Janoca já nos aguardava para tirar prova nas peças de panos cortadas e alinhavadas. 

Ficava boquiaberto com a velha máquina Singer trabalhando, quilômetros e quilômetros pedalados e sem sair do lugar, só a agulhinha caminhava num sobe-e-desce, ziguezagueando nas trilhas do pano sendo manipulado sabiamente pela velha costureira, com quem apreendi o dom gratuito da alegria. Por um corredor em tijolo vermelho, sem reboco, vinha o cheiro bom de fumo do cachimbo do Compadre Caboclo, um senhor trigueiro de idade avançada. Aos poucos não sabíamos mais que aroma apreciar com o aguçado olfato, se da pitada do tabaco do mestre Caboclo, se dos grãos de café que alguém torrava ou do estrume das vacas no curral ali ao lado. Um verdadeiro laboratório de aromas. 

Admirava a arte do corte em pano de Dona Janoca como me surpreendia com a precisão dos bodegueiros daquela região, cortando uma barra de sabão bem no meio ou medindo sobre um amarelado papel de embrulho uma porção exata de farinha ou de açúcar sobre os braços de uma balança. 

Enfim o desejado natal chegou! Um dia diferente, pois as pessoas estão mais acolhedoras e pacientes umas com as outras e é na cozinha em que mais se trabalha. 

Íamos à missa mais por obrigação que por devoção. Alguns poucos enfeites adornavam as ruas, como os do lado direito da praça onde haveria uma quermesse com leilão de prendas, e nesse ano todos afirmavam que o mesmo rico fazendeiro, em disputa com os férreos adversários políticos, iria arrematar um carneiro que novamente doara à Igreja, para alegria dos envolvidos na feira da paróquia. Chegava aos nossos ouvidos um som animado do parque fixado na Praça do Barroção. Isso já era motivo para tirar a atenção do longo sermão do Padre Bonfim, e como se não fosse ainda o sabor do bolo de milho com aluá insistentemente relembrado pelo nosso paladar, não víamos a hora do sacerdote dar às bênçãos finais para corremos às barraquinhas que se enfileiravam pelas ruas, para o nosso deleite. 

Não tínhamos real consciência do espírito de pão, vinho e sangue de Jesus, mas já sabíamos do motivo natalino de Papai Noel: era só para que ganhássemos presentes! 

Voltávamos para casa, esperançosos que sobre nossas chinelas repousasse um singelo pacote embrulhando o pedido que, ingenuamente, fora feito. Tudo isso bem antes que os madrugadores galos das torres tecessem àquela esperada manhã. 

Já se foi o tempo, em que a felicidade era mais fácil de alcançar, tempo em que o natal não passava de um sonoro rô rô rô de um alegre velhinho. 

Raimundo Candido

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Sem anunciação


De Ana e Manoel nasceu José, preto e raquítico como esperado. Entre os sovacos da serra grande, naquela noite do dia 24, nenhuma estrela riscou o céu anunciando sua chegada, também não vieram presentes, mas a morte espreitava acocorada na trempe. 

José cresceu, amou uma mulher e muitas outras, e dele nasceu filhos e netos. Fez fortuna rala, alimentou bocas e sonhos, dividiu com irmãos e amigos o pão de cada dia, abriu suas portas para os loucos, miseráveis e subversivos sem pedir nada em troca. 

Na luta cotidiana, engendrou folguedos e brigas – esperança grande nos homens. 

José não foi Jesus, mas nasceu quase no mesmo dia. Morreu não na cruz, mas deixou grande saudade. 

Karla Gomes