sexta-feira, 9 de março de 2012


Sonhos

Numa ocasião, já bem remota, um velho bardo começou um poema assim: “Há quem diga que todas as noites são de sonhos”, e de lá para cá se estabeleceu que realmente as noites seriam carregadas de ilusões, repletas de fantasias, tomadas por quimeras que nos intimidam por um negrume medonho, fato que não tem a menor importância, pois o que implica em real valor não são as langorosas inquietações noturnas, e sim os  sonhos que nos conectam a algo invisível e que, certamente, existe entre o céu e Terra.
Há muito nos indagamos sobre alguns sonhos e acabamos apurando outros sonhos bem distintos. Não me reporto àqueles que a gente conduz pela vida afora como uma tartaruga arrastando a carapaça. Esses são os sonhos de Ícaro, que se deixou levar imprudentemente pela sede de liberdade e poder, permitindo que a impiedade solar lhe derretesse as asas, mas isso é assunto para as Ciências Psíquicas. É só observar a parabólica trajetória de alguns conhecidos políticos.
                Refiro-me aos sonhos que até os bebês, ainda no útero, se deleitam ao demonstrar pelo movimento rápido dos olhos numa intuição misteriosa de felicidade e em deleitoso contato materno, fugindo totalmente aos parâmetros do genialíssimo Carl Jung a nos impor que é pela busca de equilíbrio que arrumamos uma compensação. Balelas!
Nem sempre é só recostar a cabeça no felpudo travesseiro para serenamente dormir, precisam-se antes de tudo decantar as vivas inquietações. E no apagar das luzes da loucura do mundo acende-se a luz do eu, permitindo que as aves no fim de tarde pousem, trazendo seus alados sonhos.
 Desde que os poetas estabeleceram as possibilidades das coisas impossíveis, uma aguçada ousadia imbuiu-se, às caladas, no talo dos sonhos aguando o potencial criativo que é de onde brotam as idéias. É como se tivéssemos com uma bola de cristal e nos interrogamos, obtendo como resposta uma leve descarga elétrica do nosso subconsciente.
                Um grande gênio da Química, August Kekulé, uma vez arrancou de um enigmático sonho em que uma cobra abocanhava a própria cauda, a idéia da fórmula estrutural do anel benzênico, liquido inflamável, incolor, de aroma doce e agradável, mas altamente tóxico usado na produção de diversas matérias-primas, provando que dos sonhos despertam-se a imaginação, a fantasia e a própria realidade. 
                Sinto-me, quando estou a sonhar, como um canoeiro a navegar num rio que faz a inter-relação entre o agora, o passado e o futuro inspecionando as profundezas ocultas da minha existência. Como o profeta no oráculo a receber Alexandre, o Grande, Rei da Macedônia antes da invasão de Tiro, o qual sonhara com um lúbrico sátiro dançando na sua frente e a única interpretação possível para adivinho foi “Ele está lhe dizendo: Invada meu Rei, Tiro é vossa!”. Como o jovem Tutmés IV sonhando com o deus Sol a lhe mandar que libertasse a sua imagem, a cruel Esfinge, de uma montanha de areia que há séculos se acumulava sobre ela.
Entretanto, os sonhos que mais me fascinam, por serem arcaicos e poéticos, saltam vivos das páginas da Bíblia, com feições sobrenaturais e proféticas, configurando-se como a verdadeira linguagem do Espírito.
É um esplendido sonho ver os anjos subindo e descendo os degraus uma longa escada unindo o céu e a Terra, incitando a fé do Patriarca Jacó. Sublime também foi o primeiro exame de DNA da história, quando duas mulheres se postaram diante do grande rei Salomão, ambas se dizendo mãe de uma criança e o sábio toma uma firme decisão “Como não conseguem chegar à um acordo, tragam uma espada e partam a criança ao meio, e dêem um pedaço à cada uma.” Numa sabedoria adquerida por sonho e só para governar Israel, Salomão distinguiu o amor a implorar vida, e soube da verdadeira mãe.
Um grande sonhador bíblico e renomado onirólogo chamava-se José, um dia sonhou que o Sol e a Lua e onze estrelas se inclinariam diante dele, este primeiro sonho foi o suficiente para instigar ódio nos irmãos, e começou uma epopéia digna de cinema. Exelente foi a interpretação para o Faraó que sonhara com sete vacas gordas, que foram devoradas por sete vacas magras, e com sete espigas cheias e bonitas que foram comidas por sete espigas secas e feias, num desfecho cirúrgico e comprindo-se o que  disse o profeta Joel: “Derramarei o meu Espírito sobre toda a carne, e vossos filhos e vossas filhas profetizarão, os vossos velhos terão sonhos, os vossos jovens terão visões.”
De um simples grão de areia podemos chegar à complexas constelações pelo simples capricho de um sonho. Das areias, em que os pés humanos traçam o seu destino, os sonhos nos fazem levantar vôo e ruflar a um horizonte distante, e eles mesmos nos trazem de volta, do grão ao Universo, do Universo ao grão.
Sonhei, um dia, sendo arrastado pelas águas turvas do Poti, numa correnteza forte e indiferente ao meu apelo, com suas mãos aquosas a me submergir sem me dar direito de uma despedida na luz do dia... 
Um dia, sonhei levantando a âncora de meu navio e zarpando pelo alto mar percebendo o ínfimo de minha vida conectado a um supremo infinito onde tudo se dilui na luz azulada do firmamento...
Agora mesmo despertei de outro sonho agradável, com uma certeza absoluta que não havia sonhado. Alguém que a pouco partira, voltara para me visitar, ampliando uma dor de saudade e novamente partia, deixando-me somente essa triste e diáfana luz que escorre pelos meus olhos...

Raimundo Candido

Jeoge Portela disse...
Enche-me de alegria quando vejo textos como esse de meu recente mais sincero amigo Raimundo Candido, tenho a esperança que a literatura nunca irá submergir entre esses ilusórios caminhos da falta de leitura e alienação tecnológicas em que estão impregnados nossos jovens. Trocam a boa leitura por jogos mordazes de computadores e vídeo games sem o maior pudor ou excitação. Espero piamente que nossos jovens saiam da inércia que estão e abram um livro.
Francisco Pascoal Pinto disse...
A propósito, Raimundo, acabei de ler Sonhos de Sonhos, do Antonio Tabucci, que considero o mais lusitano dos escritores da Itália. Trata dos derradeiros sonhos de personagens que o autor admira, como Garcia Lorca, Pessoa, Caravaggio, Toulouse-Lautrec etc. Contos curtos bons de se ler. Enviei o livro pra você, ontem, pelo correio.
                                                     

                                                    HETERÔNIMOS

                                                            Deus.

             Silas Falcão

terça-feira, 6 de março de 2012


Sertaneja

Do barro de louça
da beira do rio,
imponderável
é a volúpia,
inquebrantável
é a lida em ardor
que a fé moldou!

Do barro de louça
da beira do rio
emprenhou-se,
cio de carne e pão,
a se tornear, fêmea
plena, expelindo
do útero um sertão!

    Raimundo Candido
 Lourival Veras disse...             
Arrebentou, Raimundo!

segunda-feira, 5 de março de 2012

Descomparações

Não me compares às flores,

por mais que seja bela e perfumada.

Não me chames de uva,

ao me achares madura, doce e saborosa,

ou, por vezes, acre, quando verde.

Tampouco sou abacaxi,

ainda que o tempo me tenha enrugado o corpo.

A valentia, ou a pele macia, não faz de mim tigresa.

Não pretendo ser-te pimenta de odor ou ardor,

por mais que cheire e te esquente.

Não sou tua comida,

mesmo quando me possuis vorazmente.

 Não me tomes por aguardente,

ainda que me aches “um porre”.

Nem coco verde, nem quenga,

nem coroa, nem caça-macacas,

Nem piranha, nem cotovia,

nem galinha, nem gata...  nem nada.

Basta!

Chega de metáforas e bajulações.

Quando me citares dentre os humanos,

não me trates de “homem”.

Eis, pois, que sou, simples e necessariamente,

MULHER.

Elias de França