quarta-feira, 18 de julho de 2012

“Ombora Pessoal! ‘Bora cuidar! ‘Bora se virar!”


(Tributo aos heróis crateuenses
que combateram na Guerra da Borracha)

O extenso e profundo Piau, o derradeiro poço do Poti antes de passar pelo desfiladeiro da Serra Grande e chegar ao vizinho estado do Piauí, nunca secara em toda sua milenar história de intermitente e valoroso rio. Só na Seca do Quinze foi que se falou em tanto abandono e solidão. Até as cacimbas d’águas mostravam uma dura resistência em desenraizar o precioso líquido para saciar a sede da povoação. O aglomerado de casinhas que formava a aldeia da Ibiapaba sofria com uma feroz seca, no distante ano de 1942, obrigando o digno sertanejo a se metamorfosear, mais uma vez, num grotesco retirante. Um vento quente que incomoda, até a sombra de um desbotado juazeiro, bafeja nos rostos fantasmagóricos de seres semi-vivos que, de enxada na mão, ciscam um duro chão e remoem a desmedida fome com o último pão de macambira que havia no sertão.
Há léguas e léguas dali, na Cidade Maravilhosa, Capital do País, em plena 2ª Guerra Mundial, um Getúlio Vargas que comandava ditatorialmente um sistema de governo bem próximo a um nazi-fascismo, mas com o rabo preso aos americanos por uma dívida estratosférica recebia, hesitante, as ordens do presidente americano Franklin Delano Roosevelt: — Vamos Precisar de borracha para vencer a guerra! Já que os japoneses tomaram a Floresta de Seringais, na Malásia, plantada pelos ingleses com as sementes que levam daqui. A Amazônia será a nossa salvação!
Com uma prontidão de perdigueiro, rapidamente duas frentes se formaram: um front militar de guerra, para onde o Brasil mandou suas tropas de juvenis soldados, reforçando os aliados, e a outra para uma invencível floresta, numa invisível guerra, composta de uma tropa de desengonçados sertanejos arregimentados militarmente pela força circunstancial e cruel de um ingrato tempo, a famigerada seca. Foram todos iludidos por uma enganosa propaganda governamental e formaram o EXÉRCITO DA BORRACHA, como determinava o acordo de Washington, de 22 de dezembro de 1942, data em que, dizem, marcou-se o inicio da entrega da Amazônia.
No ano em que a cidade se prepara para comemorar o Jubileu Sacerdotal Áureo do eminente Padre José Juvêncio de Andrade, por todo Sertão de Crateús a caatinga se revestia de um pesado manto cinzento. O cidadão da bucólica Ibiapaba vivia num cruel dilema: Morrer esperando viver ou viver esperando morrer!
Pelas esquinas do povoado a conversa era a mesma: — Compadre tome cuidado! O americano está pegando toda a nossa rapaziada. O Exército está alistando tudo. Vão para a Amazônia produzir borracha ou vão lutar nos campos de uma sangrenta guerra, lá para as bandas da Europa.
Seu Magalhães estende o plangente olhar rumo à linha do horizonte, era um homem acostumado às vicissitudes da vida, e diz: — Obrigado pelo aviso, meu amigo, mas não posso fazer nada. Entre sofrer as agruras desta cruel seca e ir à guerra, meu filho Francisco Pinto de Magalhães, escolheu essa honrosa briga, pelo menos é a da borracha e não a do fuzil e do canhão. Está iludido com o El dourado da propaganda, da terra da fartura, do dinheiro e da felicidade. É um Paraíso, eles dizem. Mas minha velha alma sabe que tudo isso é ilusão!
Todas as circunstâncias que aflora em nosso subsistir, fortuitas ou não, servem apenas para gerar pontos de partidas. E naquela bela tarde de domingo a Praça da Estação já estava abarrotada de saudades dos familiares que se despedem de seus corajosos soldados: os Franciscos Pinto, os Franciscos de Sousa, os Raimundos Nonato, os Waldomiros da Silva... Eram dezenas e dezenas de jovens audazes que embarcavam na espalhafatosa Maria Fumaça para engrossar as fileiras do Batalhão da Borracha, com sede no SEMTA em Fortaleza, de onde se mobilizava os trabalhadores para ir à Amazônia e que partiriam do Porto de Mucuripe.
Muitos viam o mar pela primeira vez e corajosamente o enfrentaram, mesmo sabendo-o cheio de procelas tempestuosas a sugar vidas e espumar uma líquida morte. Antes de zarpar, um rude poeta sertanejo que, talvez, inspirado pelos versos de Fernando Pessoa — Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu soltou seu canto num grito de despedida: “Adeus terra da minha infância querida / adeus terra onde eu me criei / adeus pai, adeus mãe, adeus tudo. / Eu não sei quando mais voltarei”.
Com uma lei chamada áurea pensou-se em abolir a escravidão, mas um cativeiro volta a atingir seu ponto culminante, sempre que o trabalho assalariado não efetiva uma dignidade humana. Os brabos, com eram conhecidos os sertanejos, os arigós, já em terras amazônicas logo sentiram a diferença do livre descampado de um sertão quando se viram presos dentro de um sufocante inferno verde. E recebem seus utensílios de trabalho, tigelas, facas para tirar o látex, machados e uma potente carabina Winchester com duzentas certeiras balas. Era um decreto de escravidão financeira, o começo de uma dívida que nunca iriam pagar.
Anoitece na floresta. Sobem para os seus Tapiris, uma maloca de palha encima das árvores. Derribam a escada, presa numa corda, para evitar que os felinos, as cobras e os espíritos da floresta que trazem paludismo, escorbuto e barriga d’água subam para a rústica choupana. Numa surrada tipoia sonham com a época das faturas invernosas no distante Ceará, ao som de terríveis esturros: Ruuummm! Ruuuuuuuummm! Os urros de esfomeadas feras de olhos encarnados que parecem rubis no escuro e cada vez mais perto.
Acordar cedo já é um saudável costume, só estranhavam era aquela dura e apressada ordem militar, dos capatazes: Ombora Pessoal! ‘Bora cuidar! ‘Bora se virar!
Mal o dia amanhece já caminham por uma esteita alameda, deixando tigelas coladas nos troncos das serringeuiras, bebendo o precioso suco leitoso. Iam descalços sobre estivas de grossos troncos e finos palmitos, se escorregassem na lama levavam uma alta descarga voltaica dos cilíndricos puraquês. No fim da trilha, ao meio dia, almoçavam o que tinham para comer, pois logo voltaviam recolhendo as vasilhas lotadas de latêx, se os perigosos e traquinas silvicolas não as tivessem derramado. A noite ficava reservada para a defumação, onde eram feitas as enormes bolas de borracha, as pélas. De segunda a segunda, nesta imutável rotina, induzia as boas lembranças ou a torturosas saudades, da vida de um sertanejo, cada vez mais distante do longínquo Ceará.
Quando o crateuense Francisco de Sousa ouviu, pela BBC de londres, a auspiciosa notícia de que a alemanha caíra, percebeu que tudo tinha chagado ao fim. Soube, também, que o Governo Federal os abandonara e para sua terra natal não mais podia voltar. Amargurado desabafa: — Quero voltar mais não! Tenho sofrido tanto que se eu morrer por essas bandas só minha alma não terá vergonha de voltar para o Ceará!
A Guerra da Borracha se impôs pela vontade férrea do rude sertanejo, “retirado” de seu torrão aonde já era acostumados as lutas inglórias. Mas esta foi pior. No fim de tudo, dos que escaparam, restou somente seres silenciosos e taciturnos, uns brabos que se tornam mansos e profundos como como os rios da região, e como o último pão de macambira do sertão degustam agora um flagelo, uma terrível injustiça, um genocídio. Pois, mais da metade dos 30 mil nordestinos, os mocorongos, morreram a míngua, na penúria do paraiso prometido pelo indiferente Governo Federal. Tudo isso recorda-me Euclides da Cunha, descrevendo os últimos instantes de Canudos quando um velho, uma criança e dois sertanejos ficaram, honrosamente, de pé na frente de 5 mil soldados que rugiam como as onças dos serringais. Tudo isso relembra-me um coronel Luís Alves de Lima e Silva, a receber o título de Duque por ter assasinado com requinte 12 mil pobres sertanejos e escravos na revolta da Balaiada, em Caxias no Maranhão. É o nosso Brasil, das ensanguentadas injustiças!
Mas resta um recompensado consolo, todo dia 15 de junho, a data mais importante do Estado do Acre, num patriótico pavilhão sobem três bandeiras auriverdes, a brasileira no mastro central, a direita a flâmula do Acre e a esquerda, lembrando a grande épopeia dos crateuenses, dos cearenses, o pendão dos bravos sertanejos, a bandeira do Ceará. E os acreanos, nossos diretos descendentes, orgulhosamente entoam: Ouviram do Ipiranga as margens plácidas...

Raimundo Candido
José Alberto de Souza disse...
Tudo isto é pesquisa, é resgate, é registro de uma grandiosa epopéia para que as gerações futuras não releguem ao esquecimento esses importantes fatos da História escrita "a ferro e fogo" (Josué Guimarães) pelos seus antepassados. Esplêndida e comovente a figura "num patriótico pavilhão sobem três bandeiras auriverdes"!

UM LIVRO PARA TODO CRATEUENSE TER NA CABECEIRA!


FATOS MARCANTES DE NOSSA CIDADE RESGATADOS PELA PERSPICÁCIA HISTÓRICA DE FLÁVIO MACHADO
Flávio Machado e Silva, escritor, historiador crateuense, membro da Academia de Letras de Crateús, lança CRATEUS, LEMBRANÇAS QUE MARCARAM A HISTÓRIA. Noite de autógrafos ocorrerá no CEJA Professor Luiz Bezerra de Crateús, no dia 21 de julho próximo. Sintam-se convidados todos que gostam de livros, apreciam uma boa leitura e amam a cultura. Sejam todos muito bem vindos.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

A ÚLTIMA ESTAÇÃO


A nossa Praça da Estação era o nosso mundo. A nossa Pátria. Lá fermentavam os nossos sonhos.  Os nossos projetos futuros. As nossas audácias pela vida.  Era uma tenda simples. Iluminada por estrelas miúdas e tímidas. Os pés se arrastavam no próprio solo sagrado. Era uma praça. Mas nem praça era.  Era um pais minúsculo, daqueles que são felizes, pois não constam no mapa. Se o calor vermelho do dia, fazia,  a praça arder, na boquinha da noite, uma brisa fina e macia, salpicava de ternura e amplexo a nossa pátria. Era o nosso Santuário de justeza e paz. Todos eram nobres. Ninguém vislumbrava o poente. Todos tinham o sagrado direito de beijar o sol. Ali não havia crepúsculo. Ali não se entardecia. Bebia o leite morno das melódicas manhãs.  Pois naquela teluricidade, mourejavam as nossas saudades. Semeávamos as nossas recordações. E em cada matinata um grão de recordações morria naquele chão de ventre fértil de felicidades. Éramos felizes, e nós sabíamos. E hoje o queimor das lagrimas vão nos lavando em conta gotas, revirando a poeira do tempo, e o tinto pó do passado.  Lá fizemos os nossos ninhos, como as felizes andorinhas. E como na canção do Padre Leo, nas pátrias por onde andei, eu não me acostumei, para a minha pátria eu retornei. E volvo meu olhar sombrio e fosco, e com os olhos pálidos em lagrimas mergulhados, vejo uma neblina espessa de saudade e de dor no coração da minha tão querida praça. Se foi a ultima das estações daquela nação. Se foi a querida amiga Magda Portela Machado. Um exemplo de superação. Um diploma de resiliência. Sem queixumes. Sem lamentos. Com um ponto de saudade no seu sorriso, conduzia um inútil balão de oxigênio. Uma alma oxigenada de  grandeza. Com as mãos abundantes de servir. Os seus caminhos luminosos de compromisso com o próximo, ela singrava a todo o momento. Melquiades, seu irmão, meu colega medico foi para São Paulo. Sua irmã Naide mora em Fortaleza. Seus pais se foram. E Magda era a jardineira que cuidava com docilidade do nosso jardim de felicidade. Se o tempo para nós era este contraste doloroso entre o construir e destruir, a incoerência entre o futuro e passado, para ela o tempo era mansidão. Era deitava um olhar religioso sobre o tempo. Para ela o tempo tinha ação própria. O tempo era o da graça. Era Kairós. E ainda Magda que é uma nação pequenina e bíblica, era kairocidade, como cita Fabio de Melo. E diria como Álvares de Azevedo, “ e então acordarei ao sol mais puro, cheirosa a fronte às auras da esperança.” Ao partir Magda deixa-nos este legado de enternecimento e de doce esperança. A última estação não morrerá. Viverá  de esperança e arrimada de saudade. 

Fortaleza, julho de 2012

Jose maria bonfim Moraes- medico cardiologista