sexta-feira, 10 de abril de 2015

Dona Helena – Uma Potiguara crateuense.

                                          

O poeta José Coriolano começa um dos seus versos assim: ”Há na minha província uma ribeira, / Um sertão, onde eu vi a vez primeira / Sorrir-me da existência a doce luz: / Tem o nome da tribo que o habitava, / Quando ao rude tapuia entregue estava, / Esse nome, sabei-o, - Cratheús.”
 Foi no grande Vale dos Sertões de Kara- thi-us que o brutal bandeirante português Domingo Jorge Velho, no começo do século XVIII, implantou a criação extensiva de bois, à solta, pelas imensidões sem cercas das margens do Rio Poti, motivo pelo qual começaram os sanguíneos conflitos entre os silvícolas e os colonos. Os coitadinhos dos índios não tinham a menor noção do direito à propriedade. Os Tapuias eram fortes, semblantes ameaçadores, corriam iguais a feras, indomesticáveis, irredutíveis, mas só possuíam uns simplórios arcos e flechas contra os bacamartes cuspidores de fogo dos “conquistadores”. Ou deixavam a condição de índio hostil, ou eram sumariamente exterminados! E muitos preferiam à morte a serem pacificados, pois ser índio é um estado de espírito, é um modo de ser, é algo rígido e que é invisível aos olhos.
Um dos últimos conflitos entre os pecuaristas e os índios no Vale do Poti ficou conhecido como o Massacre da Furna dos Caboclos e aconteceu na região do Distrito de Montenebo, no sopé da grande Serra Azul.  O fazendeiro José de Barros, dono da propriedade Bebida Nova, notou que os seus animais estavam sumindo e descobriu que os mesmos vinham sendo caçados pelos índios que dormiam numa furna na vertente da Serra. Então, tramou um ardil bem perverso. Mandou um caçador conquistar a confiança dos índios e, em determinada noite, este cortou as tiras de todos os arcos, dando sinal para que os homens de Zé de Barros atacassem, eles entraram na caverna exterminando homens, mulheres e crianças que ali se encontravam e ateando fogo em tudo. Milagrosamente uma criança escapou pela boca da furna, ganhou à Caatinga, passando a viver no meio do mato, como fera e um dia foi pego, com ajuda dos dentes dos cachorros de caça. A criança se tornaria a senhora Jovelina Barata, bisavó do índio potiguara Mariano Barata, que deixou muitos descendentes no bairro da Maratoan.
Na localidade de Lagoa dos Neres, na cidade de Novo Oriente, existe a Associação do Povo Potiguara. E é registrada na FUNAI como a Lagoinha dos Potiguaras. Numa época, de um passado não muito distante, o famoso Pe. da Varginha em brigas por terras com o tal de  Antônio Bento, numa feroz guerra de cangaceirismo, expulsara os potiguaras das redondezas. Antes, porém, quem tangeu os índios de lá foi a cruel seca de 32. Procuravam escapar da dura estiagem cearense nas terras amenas do Piauí. A Dona Nazaré, uma líder, curandeira, parteira e possuidora de poderes espirituais, acampa a turma de retirantes, debaixo de uns juazeiros, para alimentação e descanso. E, quando resolve prossegui, descobre que está faltando a sua filha Gonçala. A procura é incansável, muitas rezas fortes e, depois de três dias de desespero, acham um caçador e rastreador que os ajudam na busca. O pai da menina sobe nas árvores e grita a todo pulmões: - Gonçaliiiiiinha!!! Em determinado momento ouvem uma vozinha, já sem força, em resposta – Estou aqui meu pai! Ao se dirigirem para o local em que estava a criança notam as pegadas da onça que se cruzam com o rastro da menina, e o feroz animal, por algum motivo, não pôde encontrar a sua presa! Nestas viagens, de desespero, alguns morreriam de fome ou de sezão braba, com febres altas e coceiras pelo corpo.
Gonçala, sempre sob a proteção de Nazaré, teve de fugir outras vezes para o Piauí, tangida pelas secas. E, já mulher feita, casada, vem morar em Crateús, trazendo Helena, Nonato, Miguel e Raimunda, seus filhos. As duras lutas pela sobrevivência e os tempos ruins os perseguem impiedosamente. A sequência de anos: 1979 / 80 /81 / 82 e 83 mostra-se mais perversa do que quando fugiam para o Estado vizinho. No Grito da Seca, o ano de 1983, a Helena já com filhos para criar, alista-se no Bolsão da Santa Fé. Tem que levar latas d’água de 18 litros na cabeça para a construção da parede de um açude. Foi quando o Pe. Afredinho a convidou para ir à Igreja de São Francisco.
 – Esta Senhora magrinha, de touca na cabeça, venha aqui para cima! O sacerdote a convoca para assistir à missa ao seu lado e no altar. O Pe. Alfred Kurtz dormia oito dias seguidos na casa de um pobre sofredor do bolsão, como pernoitara muitas vezes na casa de Dona Helena. Um dia teve que escolher um, entre os trabalhadores que lhe hospedara, para relatar o modo de vida e a resistência dos pobres de Cratheús num retiro em que estava nada menos que Dom Helder Câmara. Colocam os nomes de 15 pessoas numa sacola e pedem para retirar um, e deu o de Dona Helena.  Alguém, enciumado, protesta. Isso não é justo, essa senhora raramente vai à missa e quase nunca está ao lado dos padres, lhes fazendo mesuras. Outro sorteio e novamente o nome da tapuia-potiguara é escolhido. Quando não estava estudando – Alfabetizou-se pelo Mobral, concluiu o Normal no Colégio Regina Pacis e fez um curso especial de Licenciatura para o Magistério Indígena - estava ajudando a Dona Nazaré, na Rua Júlio Lima, em frente a um altar de madeira, realizando curas, preparando banhos ou entoando orações: “Meu cordão é de ouro / Minha medalha é de prata / Se eu não me engano / quem chegou foi João da Mata / Eu baiei na mata / Na mata eu baiei / E na mata ninguém me viu...”  Via muitas vezes, a qualquer hora do dia ou da noite, a avó cruzando os braços em frente do corpo, balbuciava a oração secreta de Santa Margarida, a mais popular entre as parteiras, e partia para pegar mais uma criança que nascia no mundo.
Dom Fragoso, bispo de Crateús, oferece como prêmio pelo esforço de Dona Helena uma viagem à cidade de Tefé, na Amazônia, para especializar-se na cultura indígena, ela preferiu conhecer os Tremembé de Almofala, em Itarema, e a bonita luta por suas terras.
Era missão de guerreira indígena, Dona Helena, como foi a da índia Joana em derrubar as cercas que o violento Major Pe. da Varginha levantava, reerguer a cultura do povo Kara-thi-us, reeducar as crianças índias crateuenses e brigar pelas terras que  eram suas, desde o descobrimento do Brasil.
Foi preciso convidar alguns dos grandes especialistas em línguas indígenas do Brasil, como Professor Pinheiro, Dr. Gilvan Muller e a Dra. Marinalva Vieira Barbosa. Requisitaram-se, de Portugal, as Cartas das Sesmarias e constatou-se, até linguisticamente, uma grande herança indígena na ribeira do Poti, identificando as etnias espalhadas por aqui, Tupinamba, Kariri, Tabajara, kalabaça e Potiguara. O caminho para o reconhecimento e recuperação da história indígena estava iniciado.
Existem, atualmente, duas comunidades indígenas no município de Cratheús, totalizando 5900 ha, que são as aldeias de Nazário, no topo da Serra da Ibiapaba e a de Mambira, no sopé da mesma serra, onde o cacique Renato Potiguara, filho de Dona Helena, é o chefe.
Na primeira escola indígena do Brasil a educação era pautada no princípio da catequização, orientada pelos missionários jesuítas. Hoje, na Escola Indígena Raízes de Crateús, com 380 alunos, o resgate da cultura vem sendo feito na mente das criancinhas para que o passado, que um dia tentaram destruir, volte a brotar novamente, vigoroso e florido.
Dona Maria Helena Gomes circula pelo pátio da sua Escola comprovando que as coisas andam por si e as mil maravilhas.  Os alunos que não estão na sala de aula fazem as atividades de reforço nas Potiocas, umas cabaninhas de palhas, outros recebem instruções na roça de milho e de feijão ou no canteiro de hortaliças que ficam ali, ao lado. É um colégio que além de ensinar para a vida, mostra, realmente, o significado de liberdade e felicidade!
                Uma reaprendizagem com o passado, numa rica experiência como a nos dizer: “Quando vieram, eles tinham as fantasias, a Bíblia e nós a terra. E nos disseram, peguem essas ilusões, fechem os olhos e rezem. Quando abrimos os olhos, nós éramos os sonhadores com a Bíblia nas mãos e eles os donos das terras.”
                A guerreira Maria Helena  muito tem feito pelo resgate dos valores culturais e da memoria indígena, coisas que comprovamos no pátio do Colégio em que é a diretora: os alunos alegremente dançam o Torem, eles pulam, eles cantam em louvor à vida, agradecendo a natureza, na antiga língua dos tapuias, como a dizer: Vocês cortaram nossos galhos, nossos trancos, mais se esqueceram de arrancar as nossas raízes, e elas brotaram. E aqui estamos, de pé!
                A todos os Karatis que tombaram defendendo as terras do Vale do Poti, sem se curvarem ao vil invasor e àqueles que trazem na alma e no sangue a intrepidez índia e o enorme valor silvícola, dedico minha admiração e meu louvor!    

Raimundo Candido

     

quarta-feira, 8 de abril de 2015

OLIVIA BEZERRA DO BONFIM


(Crônica do escritor Flavio Machado da Academia de Letras de Crateús)
                  O magistério é uma das mais nobres e antigas carreiras da humanidade. É a prática do Amai-vos uns aos outros, pregado por cristo. As mais importantes personalidades do mundo, sem exceção, passaram pelo crivo de professores, que dedicados, souberam multiplicar os talentos concedidos por DEUS, através dos ensinamentos. Foi o magistério a missão recebida e desempenhada pela jovem Olivia Bezerra.
Nascida em 1912, logo nos seus primeiros anos de vida de vida conheceu o caminho do Instituto XV de novembro, escola do professor Lisboa Rodrigues. Em 1929 iniciou um trajeto de penúria, enfrentando longa viagem, a cavalo, de Crateús a Quixeramobim, a fim de tomar assento no trem e seguir para Fortaleza, onde no Colégio das Dorotéias, em regime de internato, se preparava para, o magistério. Depois fez especialização na língua Francesa, concluindo o curso da CADES.
                 Em 1936, na cidade do Ipu, iniciou sua vida profissional, assumindo o cargo de professora nas Escolas Reunidas. Voltou para o seu torrão natal e continuou sua missão, ensinando no Grupo Escolar Firmino Rosa, nome posteriormente mudado para Grupo Escolar Lourenço Filho. Neste estabelecimento educacional se firmou, chegando a assumir durante 10 anos o cargo de diretora.
                 Filha de tradicional família católica, contraiu núpcias matrimoniais com Manoel Bonfim Filho (Manelim), então viúvo, com quem teve a filha Ana Maria Bezerra Bonfim, Advogada e o Engenheiro José Maria Bonfim.
Dona Olívia nasceu no dia 08 de abril de 1912, pouco mais de quatro meses após Crateús ser elevada à categoria de cidade. Cresceu ao lado deste torrão e muito contribuiu para elevar o nome de Crateús. Não se pode falar sobre educação nesta terra sem incluir o nome de Olivia Bezerra do Bonfim, pois além de exercer a função de professora durante décadas, foi por 10 anos diretora do Grupo Escolar e contribuiu significativamente, para ajudar o Professor Luiz Bezerra na instalação da Escola Normal Rural e o seu cunhado Padre José Maria Moreira do Bonfim por ocasião da fundação do Ginásio Pio XII e do Patronato Senhor do Bonfim. Prestou significativa ajuda à nossa diocese, pois constantemente era requisitada para redigir e traduzir as inúmeras correspondências recebidas e enviadas por Dom Fragoso, em intercâmbio com a França.
                   Na vida de Crateús, testemunhou muitas ocorrências, retendo na memória o episódio da chegada dos revoltosos, da expectativa gerada na população, quando parte dela abandonou a cidade e temerosa escondeu jóias e pertences de valor, naquela época de medo e pavor. Testemunhou o profícuo vicariato do padre Juvêncio e do padre Bonfim. Assistiu a visita de Nossa Senhora de Fátima, ocasião em que a cidade ficou mal falada, pela falsa afirmativa de que o juiz da cidade prendeu a Santa. Dona Olivia testemunhou a chegada do 4º Batalhão Ferroviário, transformado em 4º BEC. Por certo acompanhou o desenrolar dos acontecimentos na cidade em função da ditadura militar, implantada em 31 de março de 1964. Testemunhou muitas e acirradas campanhas eleitorais.
                Com seus 102 anos vividos e dedicados ao beneficio da coletividade, também viu inúmeros sofrimentos de nosso povo em decorrência de secas nordestinas e se alegrou com a fartura de água em muitos bons invernos que produziram grandes safras.
               Olivia Bezerra do Bonfim por uma casualidade nasceu no dia 08 de abril de 1912 no município de Independência, quando seus pais, temporariamente, cuidavam de uma retirada de gado. Foi na fazenda Tourão, pertinho de Crateús, onde ela morou e cresceu ao lado de sua família. É Filha de João Rodrigues de Melo e Rita Ubelina de Melo. Está prestes a completar 103 anos de vida, mora em Fortaleza desde 1993, mantém-se lúcida, tem ainda boa visão e locomoção. Ler e demonstra desembaraço ao recordar as coisas do passado. Sua longa vida não se constitui em um simples existir, pois no decorrer da sua trajectória mostrou aos seus alunos e aos seus filhos a trilha dos princípios morais e éticos que norteiam a vida e precisam ser cultivados no seio da população.