sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Diários de um Rábula – Nonato Bonfim



              Desde o princípio das eras, quando Deus, imperativamente, ajustou o Fiat Lux que um fulgor se confirma no coração do mundo: - Sim, sempre haverá um crepúsculo ao término dos dias, para que o Homo Faber possa dispor cadeiras nas calçadas das casas, palco de poesias, sentar-se expondo aos vizinhos o que o atrai, e o que o opõe, nas pessoas e nas coisas, jogando conversa fora, no fulgente desvanecer das tardes.
O habito é antigo, mas desaparece na poeira do tempo com a chegada da isenta modernidade. Naquela época, por toda extensão da Rua Pe. Juvêncio, as calçadas ficavam apinhadas de cadeiras com as pessoas narrando particularidades, principalmente as dos outros, com curiosos ouvidos atentos aos picantes boatos alheios. Na casa de número 159, sentam-se o Advogado Nonato Bonfim e sua digníssima esposa, a Dona Noêmia, e, não demora, eles já estão cercados de vizinhos e amigos, que vêm de longe, só para ouvir conversa fiada.
O Dr. Nonato Bonfim, um eficiente rábula nos trâmites das leis, viu o Senhor Leôncio, o vizinho do quarteirão da frente, que nunca parava de raspar um cipozinho de marmeleiro com um canivete amolado, se dirigindo para a Rua Frei Vidal da Penha. Aproveita a oportunidade e pede licença à plateia: - Se vocês me dão permissão, meus amigos, vou acompanhar o Seu Leôncio, ele pode levar uma topada e cair. Todo cuidado na velhice é pouco, não acham? Na realidade a sua intensão era dirigir-se até uma das bodegas da Rua Frei Vidal e tomar uma cerveja gelada, mas no fundo sabia que nenhum de seus artifícios enganava mais a esperta Noêmia de Sena Bonfim, e até já registrara num de seus diários que, embora ela sendo o seu anjo da guarda, era também muito durona sempre que precisava ser autoritária.
Quantas vezes teve que entrar com livros escondidos no cós da calça, um na frente e outros atrás e, ao passar pela esposa, ouvia um duro sermão: - Comprou mais livros, Nonato! A sua biblioteca já está abarrotada, as estantes estão cedendo com o peso de tanto livro. Diga-me, quando vai parar com isso?
 Era a maior, e a melhor, biblioteca da cidade, tinha consciência disso. Já catalogara quase dez mil volumes e o zelo que tinha para com seus alfarrábios era maior do que o ciúme que tinha para com a Noêmia. Vastíssima coleção de dicionários, todas as enciclopédias que existiam, coleções de historias do Brasil e do mundo, livros de romances e poesias dos principais escritores nacionais e alfarrábios valiosíssimos pela antiguidade, todos classificados em cadernos de capa dura com número, título, edição, ano, autor e editora, trabalho de um bom bibliografo. 
Mas, cuidado mesmo ele tinha era com os diários, quatro dezenas de cadernos com anotações cotidianas, que ficavam muito bem trancados, a sete chaves, e nem mesmo a esposa sonhava em ler. Sigilos maliciosos, perigosos, reveladores e quem guarda segredos assim, cria mistérios, desperta interesses, e teme por isso, mas no momento, as anotações secretas, não podem ser divulgadas. Um dia, quem sabe, se ele mesmo não compilasse tudo num livro, alguém, da família, haveria de fazê-lo. Sabia que os registros dos acontecimentos importantes ao longo dos anos, desde a década de 60, as impressões amáveis ou hostis sobre as pessoas, a constante escassez de chuva: “É triste, mas seja feita a vontade de Deus. É mais uma das grandes secas de 25 cabrestilhos!”, as enchentes do Poti: “O rio amanheceu nas várzeas, suas águas estão batendo na porta de meu primo e comadre José Nelson”, dos gemidos das comadres nas alcovas aos rangeres de dentes dos compadres pelos corredores, os tramas dos vereadores e os ajustes por baixo dos panos com os digníssimos prefeitos, dariam um histórico e bombástico livro sobre a cidade de Cratheús. Nada deixou passar sem uma anotaçãozinha, mesmo que fosse um assuntos de igreja, como o do comunista Dom fragoso e o seu primo, o Pe. Bonfim, anota estimas para com os militares ou desenha, com palavras garbosas, as ânsias ardentes das moças da cidade, sua caneta rabiscava tudo, depois que sua língua muito discursava.
Havia quem comparasse o advogado Nonato Bonfim, na defesa de uma causa do júri, com o criminalista, mas também rábula no inicio da carreira, Quintino Cunha: mordaz nas suas observações, satírico no senso de humor, mas sempre uma refinada presença de espírito.
Enquanto caminha, rumo à bodega do comerciante Assis Macaco, antecipando o gostinho amargo de cerveja, um pretérito filme passa na sua cabeça: momentos de quando a família teve que fugir do povoado de Quirino, tangido pela seca, e vão escapar na cidade de Campo Maior, no Piauí. O instinto de aventureiro o faz se alistar no Exército da Borracha, parte ao desconhecido Amazonas e perambula pelos perigosos igarapés do Acre. Depois de muito penar nas terras estranhas, retorna, sentindo no regresso do trem da vida uma imensa alegria.
Autodidata, pelo hábito da leitura, um vício constantemente saciado, o que lhe facilita ingressar como funcionário dos Correios. De palavra fácil, o que lhe capacita a uma boa oratória.  O ideal político que corre em suas veias faz vibrar as emoções e ferver os sentimentos, mesmo sabendo que a dissimulada arte nos negócios públicos não tem sua fonte no espírito humano, ela rebenta é mesmo do fedor das lamas, como os porcos nos chiqueiros. Foi eleito vereador, por quatro legislaturas, desde a época que o poder não estava tão associado ao vil dinheiro. Na quinta vez em que se candidatou, perdeu a eleição e culpa ao primo Pe. Bonfim, que na apuração dos votos lhe revelava: - Nonato, eu entrei neste barco em que nós estamos a viajar, mas infelizmente vamos rodar!  Ainda teve outra parenta que se candidatou, só para lhe atrapalhar, a Auristela, e não adiantou nada ele ter criado um depreciativo slogan para a prima gordinha: - Não vá na onda, não vote na redonda! Ficaram tontos, juntos, os três afamados Bonfins.
Recorda-se dos trabalhos como advogado e de como, uma vez, desarmou o promotor Anicéfalo Fernandes, quando este lhe interpelou para explicar o que era ressaca, por ter usado esta palavra com desculpa por um crime cometido por seu cliente, após uma homérica bebedeira: - Então, explique-me, Dr. Nonato, o que é mesmo uma ressaca? E usou um artificio incomum, para lhe responder: - Vossa Excelência pode até não saber, mas seu pai, o Raimundo Fernandes de Oliveira, é um profissional nisso! O promotor ficou calado.
Sente o gostinho da recompensa de seu trabalho como rábula ao lembrar-se de que no fórum Olavo Frota de Cratheús tem seu nome gravado numa parede, batizando uma das salas daquele digníssimo Tribunal de Justiça. Só uma mágoa o rói por dentro, pois depois de muito trabalhar na eleição e elogiar o atual prefeito da cidade, a paga que recebe é ser cortado da lista de funcionários, o dinheirinho era pouco, mas vai lhe fazer falta. E como o velho poeta comediante Quintino Cunha, maquina uma ardilosa vingança.
Ao chegar à Bodega do Assis Macaco, após tomar o primeiro gole da geladinha, diz para uma plateia atenta: - Meus amigos, hoje, eu vou provar para vocês que na Prefeitura de Cratheús só tem ladrão! Pega o telefone do orelhão, ali na calçada, e liga para a secretaria do prefeito. Triiiiim! Atendem. – Bom dia, minha amiga secretária, aqui é o Nonato Bonfim. Eu gostaria de falar com o Seu Ornesto, ele está ai? – Mas Seu Nonato Bonfim, aqui não trabalha nenhum Ornesto , não!
Ele nem desliga o telefone, para que a secretária também possa ouvir e se dirige para a ébria plateia, mas bem atenta:
- Eu não disse a vocês, meus amigos! Agora está confirmado, na prefeitura de Cratheús não trabalha nenhum honesto não!
(Os livros do Advogado Nonato Bonfim foram doados, pela família do mesmo, à Câmara Municipal de Crateús. Mais da metade desapareceu, evaporou, e os mais valorosos, muitos se deterioraram e o que sobrou, a digníssima Câmara cedeu para a biblioteca da Academia de Letras de Crateús. E achamos, por bem e por merecimento, batizar a nossa coleção pública de livros de BIBLIOTECA NONATO BONFIM.)


Raimundo Cândido