É um costume bem antigo,
atrelado ao mais remoto dos pecados capitais, o vício da gula que trago
embutido na algibeira de meu trivial semblante. Quando passo pelo Mercado Central
de Cratheús, e quase diariamente passo, saboreio uma merendinha de cuscuz com carne
de porco no Box da Dona Lurdes, uma sublime mestre-cuca, onde o tempero tem um
sabor equilibrado, o aroma dos velhos fogões à lenha na saliência de uma
refeição ligeira. Ao estacionar o carro,
ao lado da Prefeitura Quadrada, antiga cadeia publica da cidade, vejo um
cidadão que, ultimamente, deu para me aparecer nos locais em que mais frequento,
até parece perseguição. Caminho pela Praça dos Paus Moles – o povo ainda não se
acostumou com o nome de João Melo Cavalcante – e, ao olhar para a entrada da
Feira, vejo-o, novamente, postado com o pé escorado na parede, como se me aguardasse
atravessar o portão. Passo e faço de conta que não o vejo.
— Vai querer o de sempre,
Raimundinho? Pergunta-me, Dona Lurdes, ao me sentar numa das mesas do seu
restaurante.
Enquanto a gula louca alegra-se,
sem se preocupar com a minha saúde, proseio com a mais eficiente gastrônoma da
Feira, notando o cidadão, num jeitão tranquilo, a perambular pelos corredores
do mercado e, aqui e acolá, me olha de revés. Já estava preocupado com aquela
arrumação.
Ao sair do mercado, o cabra me
segue, então resolvo, de supetão, peitá-lo!
— Oh, amigo, tenho a impressão
de que o senhor quer me dizer alguma coisa. Pode falar!
— Desculpe a intromissão, meu
caro Prof. Raimundo, mas há algum tempo que estou querendo prosear umas
coisinhas com você. Houve uma época, nesta importante cidade, que eu possuía
alguns amigos professores, e poetas também. O Prof. Luiz Bezerra e o Prof. Lisboa
Rodrigues sempre conversavam comigo. Só não gostei quando colocaram numa
crônica que eu tinha os dentes pontiagudos, que saíam faíscas dos meus olhos e
que eu só fedia a enxofre, sei que foi só para assustar os ignorantes daquela
época, mas quero que saiba que sempre fui pessoa bem normal.
Neste exato momento meu sangue
parou de correr nas veias. Meus nervos gelaram, pois havia lido a crônica do
Prof. Luiz Bezerra e notei do que se tratava.
— Mas... Mas... Mas... Gaguejei o quiquiqui dos gagos
sem ter a língua tarda.
As palavras fugiram de minha
boca. Um medo apavorador estampou-se em meu olhar. O cidadão, ou sei lá o que
era, tentou me acalmar:
— Fique tranquilo, meu querido
professor! Não tenha receio, eu só quero conversar um pouco com você. Eu sou mesmo
o Capeta, mas não tenha medo! Estou em Cratheús bem antes do Pe. Juvêncio
colocar aqueles cruzeiros nos quantos cantos da cidade, só para que eu não
entrasse. Ledo engano do velho sacerdote, eu já aqui morava, há muito tempo.
— Na... Não estou com medo não! É que... que é
difícil acreditar que estou falando com o diabo em pessoa.
Ele sorriu. E eu que não
acreditava que, um dia, visse o maligno, o coxo sorrindo na minha frente. E
passei a dar crédito, em tudo àquilo que acontecia ali, na minha frente, quando
ele, sem que eu pronunciasse nada, me falou:
— Professor, se eu lhe disser
que, todo endiabrado dia, tem capeta sorrindo na sua frente, você me acredita?
Pois acredite! E é isso que eu quero lhe dizer: Estou com uma vontade louca de
ir embora desta terra quente, quente até demais para o meu gosto, pois passei
boa parte da minha vida ensinando maldades, maledicências, falsidades, mentiras
e as mais diversas falcatruas aos crateuenses e eles me superaram. Não dá mais,
passaram a perna em mim! Você já viu o caso em que o discípulo ultrapassa ao
mestre, é aqui! Não tenho nada mais a fazer nos Sertões de Cratheús!
— Como assim? Não entendi. Você quer me dizer
que as pessoas daqui estão tão especialistas nas habilidades de enganar, nas
diabólicas astúcias quanto você?
— É isso mesmo! Você entendeu
muito bem. Olhe, quando eu chego nos gabinetes por aí, para ensinar como
desviar as verbas públicas, fico sem ter o que fazer, pois as notas frias já
estão todas prontinhas, carimbadas, assinadas e em andamento. Os sabidinhos ficam
só esperando o tilintar das moedinhas caírem nos bolsos. Não tenho mais
trabalho nem com os fiéis que saem dos cultos, nem com os fervorosos que saem das
igrejas, mal dobram as esquinas já estão fofocando dos vizinhos, dos compadres
e das comadres, e até aqueles que se dizem muito amigos do peito, na primeira
oportunidade, começam a falar mal dos próprios amigos. Nem os grandes comerciantes e nem os pequenos empresários
fazem mais um “pacto com o diabo”, a ganância dele já enraizou, incorporou,
encopou e frutifica sem um morno sopro meu, sem um quente empurrãozinho sequer!
E as mulheres? Você ainda me pergunta? Bem, eu desisti delas também. Quase toda mulher tem o olhar de Capitu, doce, convidativo e hipnótico. A maioria disfarça
muito bem, são anjos e demônios num só corpo! E aí é onde mora o perigo, louvam
o sagrado e adoram o profano! Poucas, pouquíssimas ainda são virtuosas!
— E saiba que já sou sertanejo crateuense,
pois os vereadores me deram o título de cidadão, numa sessão especial, há muito
tempo, mas agora eu vou embora, aqui já virou um inferninho e daqueles bem
grandes.
Não soube o que dizer daquela
situação. Se até o diabo estava correndo daqui, fugindo, pois as traquinices
dos capetas crateuenses já estavam incontroláveis e nem o Tinhoso tirava mais
proveito... Fiquei foi com vontade de acompanhá-lo
para outra localidade, menos corrompida que a nossa. Imediatamente,
arrependi-me daquele horrível pensamento. Lembrei-me da frase de um padre crateuense, se bem que se referindo aos comunistas, mas dizia;"Quando água benta é pouca, os diabos são muitos. Não há quem vença!" Benzi-me, mentalmente, com o sinal da
cruz, mas tive pena do capeta e tentei aconselhá-lo:
— Oh, cidadão... É... Não sabia que nome chamá-lo, pois não é
todo dia que se tem o diabo em pessoa na nossa frente. Ele intercedeu e
autorizou:
— Pode me chamar de Belzebu,
amigo Raimundo! Eu sou o príncipe dos demônios!
— Bem, é que, se você já é crateuense,
lavrado, documentado em cartório, não precisa ir embora! A cidade já está
acostumada com você e você com a cidade, não é? Então, se você se for, vem
outro capeta mais endiabrado ainda e desmancha o que você construiu, para fazer
tudo de novo, como fazem os gestores que entram e que saem da prefeitura! Se as
cidades são construídas com o bem e com o mal, uma parte de Cratheús é de sua
responsabilidade. Você tem que ficar. Fique!
— É, Raimundinho, até que você tem razão, vou
permanecer mais umas eras por aqui. Pois então leve um abraço bem ardente para uns
amigos meus que fazem parte da sua Academia de letras, o Lucas, o Flavio, o Aldo, o Cancão, o Elias, o Lourival, o Dideus, o Júnior, o
César, o Mardonio, e... São tantos! Diga
que eles estão fazendo as coisas direitinho como eu lhes ensinei. Ah, diga também,
para aquela turminha que gosta de um campeonato de mentiras, que a qualquer
hora eu levo uns troféus confeccionados com os restos dos tridentes e umas
medalhinhas, forjadas no fogo do inferno, para distribuir por lá!
— Darei seu recado. E valeu
mesmo, Capeta, até a próxima!
Raimundo Cândido