sexta-feira, 29 de maio de 2015

E o fogo no ar...



Havia um rubro som
   crepitando na luz
      e essência das sombras
         de nenhuma valia...
              Havia!
Havia uma aguda luz
   cintilando ao som
      da penumbra pífia
          de pouca serventia...
               Havia!
Repulsa e compaixão.
       Havia!
Consolo e aflição.
       Havia!
Ausência e presença
       de um Deus singular
            no meu “eu” plural.
                    Havia!
Um sanguíneo violino
      incendiando a luz,
          que arrebata o som...
                 Havia!
                                            E o fogo no ar...
                                                  Havia!


Raimundo Cândido

quinta-feira, 28 de maio de 2015

O Capeta


                                                                 
É um costume bem antigo, atrelado ao mais remoto dos pecados capitais, o vício da gula que trago embutido na algibeira de meu trivial semblante. Quando passo pelo Mercado Central de Cratheús, e quase diariamente passo, saboreio uma merendinha de cuscuz com carne de porco no Box da Dona Lurdes, uma sublime mestre-cuca, onde o tempero tem um sabor equilibrado, o aroma dos velhos fogões à lenha na saliência de uma refeição ligeira.  Ao estacionar o carro, ao lado da Prefeitura Quadrada, antiga cadeia publica da cidade, vejo um cidadão que, ultimamente, deu para me aparecer nos locais em que mais frequento, até parece perseguição. Caminho pela Praça dos Paus Moles – o povo ainda não se acostumou com o nome de João Melo Cavalcante – e, ao olhar para a entrada da Feira, vejo-o, novamente, postado com o pé escorado na parede, como se me aguardasse atravessar o portão. Passo e faço de conta que não o vejo.
— Vai querer o de sempre, Raimundinho? Pergunta-me, Dona Lurdes, ao me sentar numa das mesas do seu restaurante.
Enquanto a gula louca alegra-se, sem se preocupar com a minha saúde, proseio com a mais eficiente gastrônoma da Feira, notando o cidadão, num jeitão tranquilo, a perambular pelos corredores do mercado e, aqui e acolá, me olha de revés. Já estava preocupado com aquela arrumação.
Ao sair do mercado, o cabra me segue, então resolvo, de supetão, peitá-lo!
— Oh, amigo, tenho a impressão de que o senhor quer me dizer alguma coisa. Pode falar!
— Desculpe a intromissão, meu caro Prof. Raimundo, mas há algum tempo que estou querendo prosear umas coisinhas com você. Houve uma época, nesta importante cidade, que eu possuía alguns amigos professores, e poetas também. O Prof. Luiz Bezerra e o Prof. Lisboa Rodrigues sempre conversavam comigo. Só não gostei quando colocaram numa crônica que eu tinha os dentes pontiagudos, que saíam faíscas dos meus olhos e que eu só fedia a enxofre, sei que foi só para assustar os ignorantes daquela época, mas quero que saiba que sempre fui pessoa bem normal.
Neste exato momento meu sangue parou de correr nas veias. Meus nervos gelaram, pois havia lido a crônica do Prof. Luiz Bezerra e notei do que se tratava.
— Mas...  Mas... Mas... Gaguejei o quiquiqui dos gagos sem ter a língua tarda.
As palavras fugiram de minha boca. Um medo apavorador estampou-se em meu olhar. O cidadão, ou sei lá o que era, tentou me acalmar:
— Fique tranquilo, meu querido professor! Não tenha receio, eu só quero conversar um pouco com você. Eu sou mesmo o Capeta, mas não tenha medo! Estou em Cratheús bem antes do Pe. Juvêncio colocar aqueles cruzeiros nos quantos cantos da cidade, só para que eu não entrasse. Ledo engano do velho sacerdote, eu já aqui morava, há muito tempo.
— Na...  Não estou com medo não! É que... que é difícil acreditar que estou falando com o diabo em pessoa.
Ele sorriu. E eu que não acreditava que, um dia, visse o maligno, o coxo sorrindo na minha frente. E passei a dar crédito, em tudo àquilo que acontecia ali, na minha frente, quando ele, sem que eu pronunciasse nada, me falou:
— Professor, se eu lhe disser que, todo endiabrado dia, tem capeta sorrindo na sua frente, você me acredita? Pois acredite! E é isso que eu quero lhe dizer: Estou com uma vontade louca de ir embora desta terra quente, quente até demais para o meu gosto, pois passei boa parte da minha vida ensinando maldades, maledicências, falsidades, mentiras e as mais diversas falcatruas aos crateuenses e eles me superaram. Não dá mais, passaram a perna em mim! Você já viu o caso em que o discípulo ultrapassa ao mestre, é aqui! Não tenho nada mais a fazer nos Sertões de Cratheús!
 — Como assim? Não entendi. Você quer me dizer que as pessoas daqui estão tão especialistas nas habilidades de enganar, nas diabólicas astúcias quanto você?
— É isso mesmo! Você entendeu muito bem. Olhe, quando eu chego nos gabinetes por aí, para ensinar como desviar as verbas públicas, fico sem ter o que fazer, pois as notas frias já estão todas prontinhas, carimbadas, assinadas e em andamento. Os sabidinhos ficam só esperando o tilintar das moedinhas caírem nos bolsos. Não tenho mais trabalho nem com os fiéis que saem dos cultos, nem com os fervorosos que saem das igrejas, mal dobram as esquinas já estão fofocando dos vizinhos, dos compadres e das comadres, e até aqueles que se dizem muito amigos do peito, na primeira oportunidade, começam a falar mal dos próprios amigos.  Nem os grandes comerciantes e nem os pequenos empresários fazem mais um “pacto com o diabo”, a ganância dele já enraizou, incorporou, encopou e frutifica sem um morno sopro meu, sem um quente empurrãozinho sequer! E as mulheres? Você ainda me pergunta? Bem, eu desisti delas também. Quase toda mulher tem o olhar de Capitu, doce, convidativo e hipnótico. A maioria disfarça muito bem, são anjos e demônios num só corpo! E aí é onde mora o perigo, louvam o sagrado e adoram o profano! Poucas, pouquíssimas ainda são virtuosas!
 — E saiba que já sou sertanejo crateuense, pois os vereadores me deram o título de cidadão, numa sessão especial, há muito tempo, mas agora eu vou embora, aqui já virou um inferninho e daqueles bem grandes.  
Não soube o que dizer daquela situação. Se até o diabo estava correndo daqui, fugindo, pois as traquinices dos capetas crateuenses já estavam incontroláveis e nem o Tinhoso tirava mais proveito...  Fiquei foi com vontade de acompanhá-lo para outra localidade, menos corrompida que a nossa. Imediatamente, arrependi-me daquele horrível pensamento. Lembrei-me da frase de um padre crateuense, se bem que se referindo aos comunistas, mas dizia;"Quando água benta é pouca, os diabos são muitos. Não há quem vença!" Benzi-me, mentalmente, com o sinal da cruz, mas tive pena do capeta e tentei aconselhá-lo:
— Oh, cidadão...  É... Não sabia que nome chamá-lo, pois não é todo dia que se tem o diabo em pessoa na nossa frente. Ele intercedeu e autorizou:
— Pode me chamar de Belzebu, amigo Raimundo! Eu sou o príncipe dos demônios!
— Bem, é que, se você já é crateuense, lavrado, documentado em cartório, não precisa ir embora! A cidade já está acostumada com você e você com a cidade, não é? Então, se você se for, vem outro capeta mais endiabrado ainda e desmancha o que você construiu, para fazer tudo de novo, como fazem os gestores que entram e que saem da prefeitura! Se as cidades são construídas com o bem e com o mal, uma parte de Cratheús é de sua responsabilidade. Você tem que ficar. Fique!
 — É, Raimundinho, até que você tem razão, vou permanecer mais umas eras por aqui. Pois então leve um abraço bem ardente para uns amigos meus que fazem parte da sua Academia de letras, o Lucas, o Flavio, o Aldo, o Cancão, o Elias, o Lourival, o Dideus, o Júnior, o César, o Mardonio, e...  São tantos! Diga que eles estão fazendo as coisas direitinho como eu lhes ensinei. Ah, diga também, para aquela turminha que gosta de um campeonato de mentiras, que a qualquer hora eu levo uns troféus confeccionados com os restos dos tridentes e umas medalhinhas, forjadas no fogo do inferno, para distribuir por lá!
— Darei seu recado. E valeu mesmo, Capeta, até a próxima!


Raimundo Cândido