Era um entardecer pesado de
ilusões naquele sábado, 13 de Setembro de 2014. O começo do fim da semana é o
mais generoso dos dias, pois desata liberalidades no ar. Pela Rua Cel Zezé,
entre as ruas Francisco Sá e do Instituto Santa Inês, caminhava pasmo,
incrédulo com o que não via. Nenhum bêbado,
com suas pernas trôpegas, trafegavam pelo velho Beco da Cachaça e exclamei,
como se os ébrios de outrora pudessem me ouvir: “Não é possível, meu Deus! O
mundo está mesmo mudado!”
13 de Setembro, o dia oficial da cachaça, e o
velho Beco que tanto acolheu os sequiosos ébrios da cidade era um longo e
dolorido silêncio estampado nas minhas retinas.
O clima taciturno da tarde
trouxe-me as velhas e frondosas algarobas que despejavam sombras de alívio pelo
canteiro central, onde vi caírem honrados cidadãos pelo peso da ebriedade, ofertado
no teor alcoólico da impiedosa Lagoa do Barro. Como a famosa Jeritiba, quente e
forte, que foi proibida pelos portugueses, no século XVI, para proteger a fraquíssima
bagaceira lusitana. Chegaram a destruir todos os alambiques da Colônia. A
Revolta da Cachaça foi tremenda, um luta feroz no Período Colonial até à
vitória da aguardente brasileira, que por fim estava liberada, no dia 13 de
Setembro de 1661. E ficou sendo o dia da cachaça. Dizem que Dom Pedro I
comemorou a Independência do Brasil com um porre homérico, saboreando a mais pura
pinga da terra.
Com a
chegada do Trem, em 1912, aquele frequentado quarteirão, como as famosas ruas
24 horas do mundo, passou a se chamar Beco da Estação, a porta de estrada da
cidade. E o beco da cachaça, como surgiu? Pergunto aos mais velhos. E eles respondem-me:
“– O Beco da Cachaça é do tempo que o cão era menino e o diabo era rapaz”. “ – Beco
da Cachaça é aqui, ó!!!” Um frequentador espirituoso explica-me, apontando com o
dedo para a garganta. Gracejam, mas sabem da importância do célebre quarteirão,
como uma sala de espera, para a chegada da Maria Fumaça e para afogar as mágoas
dos crateuenses que inventavam qualquer desculpa para “meter os burros n’água”.
Os nomes das ruas, dos locais típicos da cidade vêm mesmo é da inteligência
criativa do povo, que vive a se divertir: Rua da Pimenta, Rua do Xique-Xique,
Rua da Cruz, Rua do Beiju, Beco do Pecado, Beco do Crime, Beco da Galinha
Morta, Beco da Cachaça...
Aos domingos, à noite, quando
o trem retornava do povoado de Oiticica, da calçada da Estação até o Botequim,
“A fonte dos Passarinhos”, de Seu Jaime, ficava lotado de gente, a maioria
bebericando uma cachacinha, que ninguém é de ferro e se necessita afogar as doloridas
mágoas. Quando a sanfona de Antônio Pedro e o pandeiro do Manoel Picolé, que
animaram a viagem no trem da Ibiapaba, resolvem dá uma palhinha, o Beco virava
o verdadeiro paraíso. O trem, que saía para Fortaleza às 4 da manhã, foi o
grande propulsor da vida, e também da morte, no Beco da Cachaça.
O comerciante Belmiro,
rapidinho vendia cinco mil litros de pinga Lagoa do Barro, e em cada dose uma
história, e em cada gole uma tragédia.
Na realidade, o Beco começava no Bar do Tio Onésimo, que tinha uma clientela
bem selecionada de whiskys e cervejas. Bancários, médicos, professores, uma
classe mais abastada da cidade que não deixava de ter a fina sujeição de corpo
e alma com o copo. Um leque de botequins mais rústicos se abria nos dois lados
da rua para uma freguesia menos favorecida, e eram esses frequentadores que
movimentava o ânimo do Beco. A polícia cansou de levar bêbados, bonequeiros,
arruaceiros que perturbavam a embriaguez dos outros. Quantas vezes os gumes das
armas brancas brilharam no escuro em represália a um desafeto e ali mesmo
ficava um corpo estendido no chão poeirento do velho Beco: um carreteiro, um
sapateiro, um alcoólatra, um cidadão.
De longe, sentia-se o cheiro forte
de panelada requentada, no Botequim do Tio Nande ou fervendo numa enegrecida
lata de querosene sobre pedras no chão, no Quiosque de madeira do Chico
Soldado.
- Tio Nande traga uma panelada
com gosto de merda! O estalo do tabefe no pé do ouvido do bêbado desaforado
tinia, por um bom tempo, para ele aprender a respeitar um ambiente familiar.
O Juramar Bonfim tirava era
reisado por todos os bares, como um pagador de promessas. Já tinha passado no
Tio Onésimo, pela mercearia do Seu Raimundo Carlos para tomar uns “biotônicos” e
ouvir os disparates do desmedido comerciante que vendia de um a tudo: casca de
angico, de aroeira, mel de abelha, pavio para lamparina, tamanco, chinelo,
pião, bilas, guizo de cascavel e a bendita cachacinha para queimar os dentes.
Dirigiu-se para o hotel-bodega do Seu Geraldão e o achou meio triste.
– Que houve Geraldão, parece
um pouco abatido? Que tristeza é essa? Pergunta Juramar, um velho freguês da
casa.
– É que eu acho que os ratos
estão bebendo a minha cachaça!
– Mas não pode ser, Geraldo! Que
história é essa? Como que um rato pode beber cachaça de dentro do litro?
– Estes safados são espertos!
Eles derrubam o litro, tiram a rolha com os dentes e metem a cauda dentro,
depois só ficam lambendo o rabo. Hoje
pela manhã achei dois litros secos no chão e uma ruma de ratos bêbados! Você me
acredita, amigo Juramar?
O experiente Jura, já com a
mente enevoada e que nunca duvidara de nenhuma estória do Beco, achou que era
hora de ir para casa. O velho Beco da Cachaça iria continuar por muito tempo
ofertando ilusões e delírios aos fregueses crateueses. Juramar sabia, e sabe,
que a cachaça nos dá liberdade de pensar e sonhar. Mas ele sempre soube a hora
de parar, antes que “ In vino veritas”: antes que, no vinho esteja a nossa
única verdade!
Raimundo Cândido