quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Beco da Cachaça

                                           

Era um entardecer pesado de ilusões naquele sábado, 13 de Setembro de 2014. O começo do fim da semana é o mais generoso dos dias, pois desata liberalidades no ar. Pela Rua Cel Zezé, entre as ruas Francisco Sá e do Instituto Santa Inês, caminhava pasmo, incrédulo com o que não via.  Nenhum bêbado, com suas pernas trôpegas, trafegavam pelo velho Beco da Cachaça e exclamei, como se os ébrios de outrora pudessem me ouvir: “Não é possível, meu Deus! O mundo está mesmo mudado!”
 13 de Setembro, o dia oficial da cachaça, e o velho Beco que tanto acolheu os sequiosos ébrios da cidade era um longo e dolorido silêncio estampado nas minhas retinas.
O clima taciturno da tarde trouxe-me as velhas e frondosas algarobas que despejavam sombras de alívio pelo canteiro central, onde vi caírem honrados cidadãos pelo peso da ebriedade, ofertado no teor alcoólico da impiedosa Lagoa do Barro. Como a famosa Jeritiba, quente e forte, que foi proibida pelos portugueses, no século XVI, para proteger a fraquíssima bagaceira lusitana. Chegaram a destruir todos os alambiques da Colônia. A Revolta da Cachaça foi tremenda, um luta feroz no Período Colonial até à vitória da aguardente brasileira, que por fim estava liberada, no dia 13 de Setembro de 1661. E ficou sendo o dia da cachaça. Dizem que Dom Pedro I comemorou a Independência do Brasil com um porre homérico, saboreando a mais pura pinga da terra.
  Com a chegada do Trem, em 1912, aquele frequentado quarteirão, como as famosas ruas 24 horas do mundo, passou a se chamar Beco da Estação, a porta de estrada da cidade. E o beco da cachaça, como surgiu? Pergunto aos mais velhos. E eles respondem-me: “– O Beco da Cachaça é do tempo que o cão era menino e o diabo era rapaz”. “ – Beco da Cachaça é aqui, ó!!!” Um frequentador espirituoso explica-me, apontando com o dedo para a garganta. Gracejam, mas sabem da importância do célebre quarteirão, como uma sala de espera, para a chegada da Maria Fumaça e para afogar as mágoas dos crateuenses que inventavam qualquer desculpa para “meter os burros n’água”. Os nomes das ruas, dos locais típicos da cidade vêm mesmo é da inteligência criativa do povo, que vive a se divertir: Rua da Pimenta, Rua do Xique-Xique, Rua da Cruz, Rua do Beiju, Beco do Pecado, Beco do Crime, Beco da Galinha Morta, Beco da Cachaça...
Aos domingos, à noite, quando o trem retornava do povoado de Oiticica, da calçada da Estação até o Botequim, “A fonte dos Passarinhos”, de Seu Jaime, ficava lotado de gente, a maioria bebericando uma cachacinha, que ninguém é de ferro e se necessita afogar as doloridas mágoas. Quando a sanfona de Antônio Pedro e o pandeiro do Manoel Picolé, que animaram a viagem no trem da Ibiapaba, resolvem dá uma palhinha, o Beco virava o verdadeiro paraíso. O trem, que saía para Fortaleza às 4 da manhã, foi o grande propulsor da vida, e também da morte, no Beco da Cachaça.
O comerciante Belmiro, rapidinho vendia cinco mil litros de pinga Lagoa do Barro, e em cada dose uma história, e em cada gole uma tragédia.  Na realidade, o Beco começava no Bar do Tio Onésimo, que tinha uma clientela bem selecionada de whiskys e cervejas. Bancários, médicos, professores, uma classe mais abastada da cidade que não deixava de ter a fina sujeição de corpo e alma com o copo. Um leque de botequins mais rústicos se abria nos dois lados da rua para uma freguesia menos favorecida, e eram esses frequentadores que movimentava o ânimo do Beco. A polícia cansou de levar bêbados, bonequeiros, arruaceiros que perturbavam a embriaguez dos outros. Quantas vezes os gumes das armas brancas brilharam no escuro em represália a um desafeto e ali mesmo ficava um corpo estendido no chão poeirento do velho Beco: um carreteiro, um sapateiro, um alcoólatra, um cidadão.
De longe, sentia-se o cheiro forte de panelada requentada, no Botequim do Tio Nande ou fervendo numa enegrecida lata de querosene sobre pedras no chão, no Quiosque de madeira do Chico Soldado.
- Tio Nande traga uma panelada com gosto de merda! O estalo do tabefe no pé do ouvido do bêbado desaforado tinia, por um bom tempo, para ele aprender a respeitar um ambiente familiar.
O Juramar Bonfim tirava era reisado por todos os bares, como um pagador de promessas. Já tinha passado no Tio Onésimo, pela mercearia do Seu Raimundo Carlos para tomar uns “biotônicos” e ouvir os disparates do desmedido comerciante que vendia de um a tudo: casca de angico, de aroeira, mel de abelha, pavio para lamparina, tamanco, chinelo, pião, bilas, guizo de cascavel e a bendita cachacinha para queimar os dentes. Dirigiu-se para o hotel-bodega do Seu Geraldão e o achou meio triste.
– Que houve Geraldão, parece um pouco abatido? Que tristeza é essa? Pergunta Juramar, um velho freguês da casa.
– É que eu acho que os ratos estão bebendo a minha cachaça!
– Mas não pode ser, Geraldo! Que história é essa? Como que um rato pode beber cachaça de dentro do litro?
– Estes safados são espertos! Eles derrubam o litro, tiram a rolha com os dentes e metem a cauda dentro, depois só ficam lambendo o rabo.  Hoje pela manhã achei dois litros secos no chão e uma ruma de ratos bêbados! Você me acredita, amigo Juramar?
O experiente Jura, já com a mente enevoada e que nunca duvidara de nenhuma estória do Beco, achou que era hora de ir para casa. O velho Beco da Cachaça iria continuar por muito tempo ofertando ilusões e delírios aos fregueses crateueses. Juramar sabia, e sabe, que a cachaça nos dá liberdade de pensar e sonhar. Mas ele sempre soube a hora de parar, antes que “ In vino veritas”: antes que, no vinho esteja a nossa única verdade!
 
Raimundo Cândido

    

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Cancão


                                                          Travesso a fuçar,
                                                          intrometido de enleio,
                                                          um arruaceiro na mata,
                                                          de galho em galho
                                                          bisbilhotando o alheio.
                                                          Tudo devora, onívoro!
                                                          Engole fogo, ignívoro,
                                                          e não se admire não,
                                                          do espinho de mandacaru
                                                          ao miolo de xique-xique
                                                          come, mastigando beiju!
                                                          Enxerido, mas prevenido,
                                                          anda aos magotes,
                                                          se agrupam nas estripulias,
                                                          acuando assombros e cobras
                                                          e não temem nem gavião.
                                                          Um aguçado sentinela,
                                                          e se lhe vê, galgando a caatinga,
                                                          alardeia: aguda sirene no sertão!
                                                          – Cancão! – Cancão!

                                                          Raimundo Cândido