quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Elias de França Disse:

Belíssima crônica, Poeta!
Como um dos que vingou no entremeio da palmatória à psicopedagogia atual, posto que, ao meu tempo, a primeira ainda existia, mas a legislação já a proibia... e para quem, ao menos de longe, como adorno do birou da mestra, conheceu a "Maria Bonita", as suas letras soam tão mais saudosas que traumáticas. A questão levantada por você tambem acerca do debate entre as tendências pedagógicas tradicional e conteporânea tambem é bastante oportuna: tambem sinto que nem a palmatória e as surras que levamos nos causaram tantos traumas como assim o atribuem hoje, como tambem é factível um melindre psícológico exagerado presente nas atitudes educativas dos dias presentes. Talvez isso se deva ao processo dialético: tese (a porrada), antítese (o melindre). Cabe nos construir a síntese. Parabens pela Crônica.

chico pascoal disse...
Meu caro Raimundo, que beleza de crônica! Parabéns!Lembrei do único ano em que estudei na antiga escola da Dona Delite e, travesso que era, inevitavelmente provei da "grande disciplinadora"; e, pasme, até senti saudades.um abraço
Chico Pascoal
Sexta-feira, 29 Outubro, 2010

Palmatória

O Livro era volumoso para o tamanho diminuto do menino magricelo e ingênuo, também para a minha época de coisas escassas. O tempo achava-se carente de tudo, havia mínguas no ar e não se via à farta facilidade que se apresenta nos dias de hoje.
Acabara de deixar a terceira série, por meu brio estudantil. Pulava-se para a quinta série como um prêmio pelo esforço de aprender a aprender e de ser um dos primeiros da turma. Nunca mais no resto de meus dias tive esse avanço tão justo e tão estimulador. Título de meu alfarrábio: Programa de Admissão e ainda vinha carimbado na capa com a palavra “NOVO” escrita na diagonal.
Naquele dia, a lição de português era “Uma Tarde no Campo” de Érico Veríssimo que dizia de um vento fresco com cheiro de campo e de distância. O primeiro exercício pedia para dar o sinônimo das palavras: rutilante e cintilação. Na folha anterior havia o Vocabulário, era só olhar e ler e nunca mais esquecer tão belas palavras. Acho que realmente brilhei enquanto pude, resplandeci com o texto de Veríssimo até não poder mais, porque depois me veio um apagão. Se tremeluzi foi pelas faíscas que chegavam a sair da barra da Maria Bonita!
Foi assim: nas Capitanias Hereditárias, eu dormi no ponto! Como de costume colocava uma cadeira voltada para a parede, para não ter desvio de atenção, mas a desatenção habitava em mim. Não sei por que se inventou a bola, redondinha como o planeta, mas que seduzia meus pés e os meus indolentes neurônios a ponto de não pensar noutra coisa a não ser sonhar. Imaginava que um dia iria ser jogador de futebol. Só eu não via a falta de habilidade e de talento para tal artimanha, mas sonhava. Fiz gols que nem Pelé ousaria, driblei zagueiros que ficaram mais zonzos que os “Joões” a quem Garrinha driblava. Cheguei a ler, sim, o sistema de capitanias, a de São Vicente, a de Pernambuco e as dificuldades do regime. Li e reli tentando fixar em minha mente esvoaçada aquela confusa lição.
Em volta da mesa as perguntas caminhavam. A minha vinha chegando e com ela uma angústia, uma agonia que acabei me acostumando no transcorrer de minha vida. A aflição é um dos motivos que trava a vontade da gente. Descobrir isso aos pouco e dolorosamente! Mas sempre se aprende, por dor ou alegria.
- Quais foram as principais causas que impediram o progresso das capitanias?
Silêncio no ar. Não havia resposta, pois as palavras não passavam por uma garganta onde estava dado um nó. Novamente a pergunta. Novamente o ar silencioso de um indivíduo taciturno e atônito por aquele momento de aperto.
_ A pergunta é sua, meu Doutor! Responda! Inquiria-me a mestra. Não ouve resposta, porque eu não sabia. Ali, provei mais uma vez, da dura reputação da Maria Bonita.
Recordo destes momentos com alegria, como algo de bom de meu passado escolar e não como um estorvo marcando a minha trajetória. Quem passou pela palmatória e foi pelo menos um estudante mediano, a recorda com carinho, e não como embaraço. Foi à disciplina que torceu o pepino desde menino e não deve ser esquecida.
Se você nunca levou um bolo, um castigo de palmatória, mesmo de leve, saiba que ela emite chispas metálicas fosforescentes sempre que entra em contato com a palma da mão, tentando arrancar os saberes pelos poros e eliminar as ilusões que afloram em nosso céu tornando a dar asas às palavras que ficaram presas num chão de chumbo.
Não vou entrar no mérito se a palmatória foi um erro ou um acerto ou sobre seu valor como instrumento pedagógico. Nem quero resgatar rigor do autoritarismo da educação tradicional.
Estou recordando, saudosamente, a pedagogia da palmatória que fez parte de uma época aqui, na Europa ou no Japão e tenho convicção que ela educou sim.
Vivemos numa época de crise de paradigmas, inclusive no campo da educação. Os pais, em sua maioria, não educam e esperam que os colégios e os professores assumam essa digna e difícil missão. E ambas as estruturas, quase sempre, caem em armadinhas que geram falhas educativas. Educar sem traumas, sem castigos e punições requer uma arte e uma nova ética que poucos ainda dominam com eficiência, lamentavelmente.
Pressinto que algo tem que mudar urgentemente, para acabar com tanto fingimento. Os estudantes não têm mais o que se preocupar: eles fingem que aprendem, os professores fingem que ensinam, a escola finge que vai reprová-los, as faculdades fingem que fazem um vestibular e novamente os alunos fingem que estudam, a sociedade finge que os aceita. E eu fico, aqui, recordando da Maria Bonita que fez parte de meu amadurecimento como ser humano e nem estou tão traumatizado assim.
Raimundo Candido.