As travessuras sinuosas do Rio
Poti, pelos descampados dos Sertões de Crateús, aspergiram benesses e os aromas
dos currais nas margens do intermite curso fluvial, eram as centenárias
fazendas de gados que a colonização estampou nos vales inundados por correntes
impetuosas, desde o reinado dos índios kara-thi-us, por essas longínquas
plagas.
O Senhor Antônio Paulinho,
vaqueiro da Fazenda Barreiras que margina o rio um pouco acima da linha urbana
pelo lado esquerdo de seu fluir, há três dias soltava uma tropa de animais,
seis burros de cargas, duas mulas mansas e uns cavalos de selas nos pastos
verdejantes da croa do rio e isso após remoerem, pela manhã, um embornal de
milho para enfrentarem a íngreme ladeira dos Tucuns. Recolhera os animais na
lua clara e colocara as esteiras forrando o lombo dos brutos. Alguns, receberam cangalhas com jacás, outros
um par de caixotes enforquilhados, os mais mansos acolheram as selas
acolchoadas com a arreada de sola crua, para o comando de uma longa viagem. Uma
lucrativa fazenda, se não for nas margens de um rio, tem que ser no lombo da
Serra da Ibiapaba com as graças abençoadas de um clima amenizado. O crateuense
José Amâncio Correia Lima, dono das propriedades Barreiras no sertão e do Sítio
São Francisco, no íngreme topo da Serra dos Tucuns, sabia muito bem disso!
Ordenara para a primeira hora da madrugada, na sua residência à Rua Firmino
Rosa nº 32, em frente à Igreja da Matriz, a chegada dos animais. Sairiam, para
São Francisco, precisamente às duas da manhã!
Pontualmente, a tropa chega,
mas Zé Amâncio já sentira de longe o Topoc, topoc, pa ta ti pa ta tá das
pisadas descadenciadas que ocorrem na mistura de diversos animais, que agora
estavam emparelhados ao meio fio da calçada, prontos para receberem os nobres
passageiros e as impreteríveis cargas da viagem. A família Correia Lima, mais
uma vez, subiria à Serra aproveitando as férias escolares dos meninos e da
professora Amália de Souza Lima. Participariam da animadíssima farinhada na
serra, beberiam garapa nas moagens do Engenho de Cana e se deleitariam nas
noites enluaradas ao som da viola chorosa do Seu Canuba, embaixo dos imensos
cajueiros e manguezais.
Notando o patrão abrir um
portãozinho na frente da casa, com duas letras centrais, AA, coladas no centro
de um círculo de ferro, símbolo de um grande amor à Romeu e Julieta, o vaqueiro
das Barreiras se apresenta:
— Cheguei com toda tropa, Seu
Zezinho!
Amâncio responde, todo cortês:
— E bem na hora, Toinho! Apeie-se e venha tomar um cafezinho, com pão da
padaria do Senhor Norberto, que está cada vez mais fino e se continuar neste
pendor o padeiro poderá, em breve, entregá-lo nas nossas casas pelo buraco da
fechadura!
Enquanto o vaqueiro se
alimenta, Zé Amâncio continua a falar: — Vou pedir para Amália acordar os
meninos e os arrumar para viagem. Deitamo-nos bem cedo, mas a Banda de Música
do Coreto caprichou muito bem ontem, o pistão do Benedito duelou com a trompa
do Sebastião-do-Padre a noite inteira. Teve lá quem dormisse, Seu Toinho!
Enquanto os sonolentos
cavaleiros-mirins se acomodam nas celas, o cuidadoso vaqueiro coloca os
mantimentos nos caixotes dependurado nas cangalhas e, ao notar uma saco de
cimento, indaga, tentando adivinhar: — Desta vez colocaremos o cruzeiro no
morro de São Francisco? E Amâncio confirma: — Colocaremos sim, pois o Zé
Marcolino já cortou os mastros de aroeira. Ao chegarmos, será o primeiro
serviço que iremos fazer!
Mal o velho
relógio de pêndulo, estampado na parede, soa as duas badaladas surdas da
madrugada, Amâncio dá ordem de partida, e pede silêncio: - Não façam barulho,
para não acordar nosso vizinho, o Dr. João Afonso de Almeida Vale, embora seja
do partido dos Marreta, merece dormir!
Rosílio, um
destro cavalo alazão montado pela Professora Amália numa sela especial, segue
na frente. Os meninos, o Chiquinho, já demonstrando um pendor sacerdotal, a
Ana, o José, o Totonho, com emprego garantido de caixeiro na farmácia do Dr.
Abdias Lopes Veras, o Monda, o irmão esperto e protetor, bem escanchados no
meio da tropa, olham para os morcegos que voltavam de suas farras pletóricas
para dormir nas enodoadas Torres da Igreja, de onde já se fala em colocar um
Cristo Redentor de braços abertos, na sua frente, e sentem saudades da
brincadeira do trisca, ao redor do coreto.
Amâncio,
pela retaguarda, tange o comboio que devora as léguas morosas entre a cidade e
o pé da Serra, fica a pensar na felicidade que é sua vida ao lado da digníssima
professora Amália, uma cristã de elevado espirito humanitário, benemérita dos
pobres, pois deixara alguém encarregado em distribuir alimentos aos
necessitados que diariamente chegavam à sua porta. Além de alfabetizar os
crateuenses, de geração em geração, é dona de uma caridade que não mede
sacrifícios. Ele presenciara, diversas vezes, levantar-se da mesa e oferecer aos
pobres o alimento do prato em que comia. O esposo dizia: — Amália, isso não
agrada a Deus! Ela, serena, respondia-lhe: — Não se preocupe comigo, José
Amâncio, tenho outros alimentos em casa, graças a Deus! Aos olhos de Amâncio,
Amália reluzia como poesia, como um diamante raro na sela do alazão, um cavalo
manso da cor de canela preparado só para ela.
José Amâncio
Correia Lima, um poeta induzido por DNA, pois descende diretamente do Vate José
Coriolano, um orador fino, humorista espirituoso, prosador, jornalista, adjunto
de promotor, comerciante e agropecuarista, recapitula sua vida enquanto o grupo
caminha margeado, lado a lado, pelas capoeiras do sertão. Relembra quando
representou Crateús nas comemorações de 7 de setembro na Cidade Maravilhosa,
Rio de Janeiro, e o jornal carioca União lhe estampara elogios numa página.
Vem-lhe à memória o dia em que o Dr. José Fernando Vieira Bastos, Juiz de
Direito da Comarca de Crateús, o indicara para a função de Adjunto de Promotor
e embora tendo aprendido somente a ler, a escrever e as quatro operações com o
velho Prof. Manoel Vieira Lima, exerceu até as funções da Promotoria e por
muitos anos. Era um autodidata com altíssimo nível intelectual.
Havia
recebido a patente de Capitão da Guarda Nacional, mas isso não lhe subia a cabeça.
Participara da 1ª Conferência Vicentina com o amigo Carlos Rolim, o primeiro
Agente da Estação Ferroviária. Sempre era convidado a discursar nas solenidades
oficiais, pela sua palavra bonita e fácil. Além de escrever as memórias da
família e da sua cidade (Espera que o filho Raul, o que chamam de Monda,
termine o trabalho), mas ainda encontra tempo para lecionar no turno da noite.
Recorda de
uma conversa com o Pe. João Batista, que tinha vindo da paróquia de Santa
Quitéria, ao lhe convidar para fundar um jornal em Crateús e que desse um nome
ao mesmo. “Disse-lhe: Ora Padre, quem sou para dar nome a um Jornal? O padre
insistiu. Aí, então, respondi-lhe assim: - Está bem, Sacerdote. Eu o batizo com
o nome de A Fé, serve? Pois do jornal A Vontade, que o senhor possuía, tiro o
nome do nosso... O que seria da Vontade sem a Fé?”
Após esses
devaneios mnemônicos, avista o azul da Serra da Ibiapaba encurtando os
instantes entre uma sístole e uma diástole retumbando no peito. A subida só não
é penosa para os animais porque estão acostumados a descer com cargas de 300
mangas, em cada jacá, ou com os surrões de couro cheio de farinha e voltam com
passageiros escanchados nos lombos. Passam pelo Buritizinho encantado e seguem
rumo à São Francisco.
Não demora e
os raios de sol já apontando na linha do horizonte, um espetáculo ímpar visto
do alto da serra, contemplam um belo chalé no estilo suíço, no cocuruto de um
morro, com dez batentes na calçada e uma varanda arejada no primeiro andar: o
Paraíso dos Correia Lima!
Um privilegiado
sovaco de serra, cercado de colinas como no encantado Monte Olímpio, repleto de
encopados manguezais e cajueiros que encobrem a Casa de Farinha e o belo
Engenho de Cana. O corrupião, o vem-vem
e o sabiá se desdobram no cantar sonoro e ao longe, nota-se um serrote com
blocos gigantescos de pedras dando a impressão de ser um São Francisco rezando.
José Amâncio chama o Toinho e o Zé Marcolino para assentarem um cruzeiro de
aroeira sobre as pedras. O que faz Dona Amália avisar, visivelmente preocupada:
— Amâncio, cuidado com as cobras! Ele aproveita e solta a sua veia poética: “Lá
em cima da serrania / São Francisco está de pé / Desfraldando em pleno dia / O
pendão da minha fé.”
O mês de
férias no Sítio São Francisco é de muito trabalho, o que não deixa de ser uma
grande festa, pois todo trabalho que se gosta sempre é feito com alegria. Na
Casa de Farinha ocorre o ritual de transmutação da mandioca, começa com as
raízes que vão chegando nos suados lombos dos burros, as mulheres raspavam bem
raspado, lavavam e colocavam na água para amolecer e pubar, em seguida ralavam
no Caititu. A massa é levada para o Tipiri, onde é espremida e retirado o
líquido venenoso chamado manipueira. Depois de peneirada e torrada no forno, aí
a farinha estava pronta para o consumo ou para ser vendida nos surrões de couro
de gado no velho mercado de Crateús.
Enquanto
isso, a poucos metros de distância funciona o Engenho de Cana com uma
bolandeira tracionada pela força de um musculoso boi de longos chifres e que
não parava de rodar. A cana-de-açúcar ia virando um caldo que era levado para
os tachos no forno a lenha. Com uma colher, feita de cabaça, vão passando o
líquido a medida que engrossa, de um tacho a outro. Depois despejam numa
bandeira de madeira, onde é mexido até coalhar, aí então, vai para as formas e
dentro de 15 minutos a doce rapadura está pronta. Os meninos que já enjoaram de
beber garapa de cana, agora exploram a região à sombra do olhar de Dona Amália.
Um dia, o
poeta, escritor e grande empreendedor Amâncio sonhou e idealizou o Museu
histórico de Crateús, e esperou a ajuda prometida chegar, para sua
construção...
No dia 19 de
fevereiro de 1950, o Jornal Folha do Norte Noticia: “Faleceu em idade avançada
José Amâncio de Souza Lima, é extinto um espírito devotado às causas do bem, um
alma incendiada por elevado sentimento de religiosidade, uma grande
inteligência amante do estudo e das coisas regionais. Um verdadeiro símbolo de
honradez e critério!”.
Um cidadão
crateuense se foi, mas deixou debaixo dos manguezais do Sítio São Francisco a
1ª peça do seu sonhado Museu Histórico de Crateús, um antigo engenho de moer à
bolandeira, fabricado pelo primeiro Auto Forno da América Latina, em 1910, e
que está lá, corroído pelo tempo a espera que outro digno e honrado cidadão vá
buscá-lo, para reconstruir um antigo desejo, pois os sonhos, os grandes sonhos
nunca morrem... Apenas adormecem na alma da gente!
Raimundo
Cândido
José Alberto de Souza disse...
As histórias de antigamente se transmitiam
de geração para geração através da oralidade,
hoje memória preservada em suas fluentes escritas.