sábado, 27 de dezembro de 2014

A Cachoeira da Fumaça

                                        

Da cachoeira da Lembrada, na Floresta Pétrea do Cânion do Rio Poti, vertia um filete tão reduzido, mas tão minguado que me fez imaginar de como seria o espetáculo daquela queda d’água com o Rio dos Camarões em seus dias de grandes cheias. Não foi bem uma decepção, pois fiquei extasiado com a visão dos colossais paredões de 60 metros de altura, numa gigantesca garganta que há milhares de anos vem sendo esculpida em rochas graníticas. E, meio desapontado, fiz uma promessa ao meu eu aventureiro: “Iria conhecer a maior cachoeira do Brasil na Chapada Diamantina, a grandiosa Fumaça, tão logo tivesse uma oportunidade.” Seria uma espécie compensação pela desilusão sofrida.
Quando falei deste compromisso para minha companheira de aventuras e vida, os seus olhos brilharam numa conclusão decisiva: “- A nossa ventura é controlada pelas circunstâncias, e não vamos deixar passar essa oportunidade. Vamos à Bahia, sim!” Penso que ela já tinha tramado a promessa e bem antes de mim. Esperta, essa Isabelle Saraiva!
 Partimos! Mal chegávamos à rodoviária de Santo Antônio de Jesus, na Bahia, soube que tinha que ir primeiro para a cidade de Itaberaba, a 153 km de distância, e de lá percorrer mais 142 km até chegar à turística cidade de Lençóis, o portal de entrada para o Parque Nacional da Chapada Diamantina. Eu pensei que seria tudo mais fácil!  A vendedora de passagens foi logo me avisando: - O último ônibus da Viação Camurujipe, para Itaberaba, parte agora! Quis desistir, mas um impulso fez com que entrasse no ônibus. Na viagem, eu tive a impressão de ter embarcado no poeirão do Seu Zé Padre, rumo ao Distrito de Assis.  Isabelle ficou em Santo Antônio para resolver uns probleminhas familiares, como já era de meu conhecimento.
Em Lençóis um guia foi logo me esclarecendo acerca das pousadas com preços “módicos” e sobre a longa trilha para a Cachoeira da Fumaça. Eu tinha que entrar num grupo de aventureiros e percorrer, numa Van da Associação dos guias, uns 50 km até o pé do morro, numa depressão alongada chamada Vale do Capão. Marcamos a saída para o dia seguinte, bem cedo.
Aproveitei e fui conhecer a exuberante vida noturna de Lençóis, num desassossego sossegado de boêmia culta. Mesas espalhadas pelas estreitas ruas, turistas dos quatro cantos do mundo e de vez em quando passava um duende flautista soprando uma doce sonoridade para enternecer a lua, que tanto alumiou as trilhas para os garimpeiros na época da corrida do diamante. Lençóis foi considerada a Capital das Lavras e a terra do Coronel Horácio de Matos, o maior potentado das Lavras Diamantíferas, que comandava um enorme bando de jagunços, chagando a assustar o Governo Federal e a própria Coluna Prestes.
Acordei cedo e descobri que às 7 da manhã ainda é madrugada em Lençóis. A Van chegou às 8 horas, embarquei e fomos pegar o restante dos aventureiros: americanos, franceses e alemães. Da terrinha tupiniquim só tinha eu, os dois guias e a namorada tagarela de um alemão. Pelo caminho ouvi o alemão falar: “-Das Brasilien ist das sehr Mutter Natur.” A namorada, como um tradutor online, converteu: - Sim, o Brasil é própria mãe natureza!
Imediatamente lembrei-me dos 7 x 1 na Copa da Corrupção e completei a frase: - Sim, é a mãe natureza e, também, a mãe dos alemães! Mentalmente, claro. O alemão parecia a porta de um armário! Chegamos à cidade de Palmeiras, onde as valorosas pedras de diamantes passaram contrabandeadas pelos tropeiros, para apaziguar a ganância dos europeus. A exploração diamantífera deixou um prejuízo enorme ao meio ambiente e, hoje, só resta o ecoturismo para salvar a imensa Chapada. Vi um triste idoso, sentado numa cadeira na calçada, na certa ele participou do apogeu das jazidas, e da sua decadência também, quando se findou o último veio.
Contam que, das valiosas pedras, nem com um leve brilho ilusório o Brasil ficou. Sugado, explorado desde os tempos Coloniais e continuamos na mesma atrapalhação, no mesmo desastre. Roubaram, roubam e ficamos como aquele senhor palmeirense, na calçada do tempo, a recordar um passado de glória. Oh, sina triste!
Chegamos ao ponto de apoio da Associação dos Condutores de Visitantes à Cachoeira da Fumaça. Normas e regras esclarecidas, partimos em fila indiana. Antes, avisaram: os dois primeiros quilômetros de rampa são pesados, os 4 km restantes são num platô quase plano. Não atinei para a palavra “pesado” do instrutor, mas via a imensidão mágica da Serra do Sincorá, ostentosamente íngreme na minha frente.
Escalados os primeiros 500 metros e o fôlego começou a falhar, o coração a disparar, as pernas a reclamar da falta de energia. Confesso: foi a minha via dolorosa ir ao topo da Chapada Diamantina. Na subida, eu sucumbi três vezes e três vezes revelações eu discerni. Na 1º queda: — Que estou fazendo aqui, meu Deus? Só um longo silêncio, de volta, eu ouvi.  No 2º tombo: — Não aguento mais, eu vou desistir! Inexplicavelmente resolvi resistir e segui avante. Na terceira vez que caí, o último guia perguntou-me: — A máquina está ruim, meu velho?  Lembrei-me do motor do Del Rey que possuía e que, quase na minha idade (57), não respeitava subida íngreme. Levantei-me e parti, lento como uma tartaruga, mas venci!
No platô, olhando o amplo Vale do Capão, estendido lá embaixo, entendi o porquê de as procissões, de calvários, bem vencidas, despertarem “algo sagrado” existente nas trilhas da gente.
Caminhamos o restante da sinuosa vereda folgados e contemplando a beleza da mistura de Caatinga com Serrado no clima agradável da montanha. O alemão apontou os dois dedos indicadores para o rosto e gritou: - Wind!!! – Wind!!! A babylon tradutora trabalhou: - Sim, é o vento fresco! Para mim, ficou meio ambíguo o que ela disse.
Alguém ouviu o barulho de água caindo. Apurei a audição e ouvi o belíssimo canto da cachoeira que foi se intensificando à medida que chegávamos mais perto.
Avistamos um sovaco de serra de uns 400 metros de profundidade com o Vale do Paty, lá embaixo. Tinha um bloco extenso de pedra se sobressaindo no precipício e arrastamo-nos sobre ele, para colocar a cabeça para fora e ver a Cachoeira da Fumaça, por cima. O imenso vazio abaixo do bloco pétreo e o espetáculo do rio despencando de uma abertura no paredão disparou a adrenalina no corpo e um medo, que nunca sentira, na minha alma.
A Cachoeira da Fumaça dançava ao desejo do vento que remoinha entre os paredões fazendo com que o volumoso rio sublimasse, em gotículas dispersas no ar, chegando a molhar nosso rosto. É uma maravilha indescritível para meras palavras, só estampada no olhar podemos sentir essa magnífica obra divina. Caminhamos para outro ponto de observação e contemplamos, quase de frente, os 340 metros da cachoeira e mesmo calados, extasiados e embevecidos, oramos na presença daquele templo sagrado.
Olhava para a maior queda d’água do Brasil e me recordava da Cachoeira da Lembrada, raquítica e desnutrida nos Sertões de Cratheús, e rogava para que, ao visita-la novamente, as circunstâncias sejam outras e aquele filete finíssimo de água tenha se avolumado o suficiente para fazer me recordar da maravilhosa Cachoeira da Fumaça.
Espiritualmente ainda estou lá, no topo do imenso paredão da Serra do Sincorá, comtemplando, embevecido, o resplendor da maravilhosa Cachoeira da Fumaça.

Raimundo Cândido