sábado, 21 de fevereiro de 2015

O Tamarinheiro

De tanto perambular pelos descampados da Ribeira do Poti, admirando os angicos, as aroeiras, os pereiros, as canafístulas, as imburanas, os umbuzeiros, os sabiás, os juazeiros, os mandacarus, estou ficando arbóreo, metamorfoseado num homem-árvore, arrebatado por esses seres que vivem na mais pura e auto-suficiente solidão, contribuindo harmonicamente para o belo, como um poema que a terra escreve aos céus. Sinto-me em assimilação clorofiliana, sorvendo ar, e os raios do Sol, para a fotossíntese de minha alma.
Quando a poesia deu-me a honra de conhecer a Ilha do Amor, Florianópolis, capital de Santa Catarina, o prazer maior que tive foi ver de perto a velha e frondosa Figueira da Praça XV de Novembro, uma centenária árvore cantada em versos pelos poetas florianopolitanos como a Dama Verde que esbanja glamour. Um dia, um insano com um machado na mão, quis degringolar a gigantesca planta e a Câmara dos Vereadores, rapidinho, criou uma lei para protegê-la, com guardas constantemente em vigília, que trocam de posto como os empavonados soldados da Rainha da Inglaterra. Os galhos, escorados por grossas hastes de ferro, cobrem toda praça por onde a cidade começou e os turistas, que dão voltas em torno de seu tronco, atraem para si, a riqueza, a sorte e o amor.
Não sei que vento trouxe aquela lembrança arbórea, sei que foi pelas sábias palavras do amigo Francisco Sales, o filho dileto de um paraíso chamado Olho d’Água dos Claudinos, que fica no município de Novo Oriente. O poeta Khalil Gibran, autor do livro “O Profeta”, preveniu sobre esse mensageiro aéreo: - Não diga nada ao vento, ele irá contar às árvores, como, também, relata os segredos dos vegetais, assoprando aos nossos ouvidos!
- Raimundo, você sabia que existe um tamarinheiro em Novo Oriente que tem uns trezentos anos de existência?
- Que história é essa, Seu Chico? O senhor tem certeza disso?
Humberto Paz, o poeta Cancão, que ouvia tudo de orelha em pé como a arguta ave do sertão, intrometeu-se: - Existe sim! É uma monstruosidade sem tamanho e nem sei se já o derribaram!
Tínhamos o determinado objetivo de ir à Novo Oriente em busca do exato local onde o cangaceiro Rosal tombara. E o dia da viagem se apressou, marcamos logo para o próximo fim de semana a aventura em busca da árvore mais antiga dos sertões de Cratheús.
Partimos. O Sr. Francisco Sales era cicerone da comitiva: Eu, o especialista em Cangaço Caçula Aguar e o poeta Cancão. Quem morou, quem reside, quem foi embora, as casas que tombaram, as que foram erguidas e a quem pertenciam agora, aulas de geografia Física e humana dadas pelo Seu Chico, tim-tim por tim-tim, mal passávamos pela Lagoa do Tigre. E a estradinha de terra batida foi se desenrolando na nossa frente.
Saímos do Olho d’Água dos Paturis, chegamos ao Olho d’Água dos Claudinos (dos Culotes) e, assim que uma grande curva se desfez, vimos um assombro aos nossos olhos: O gigantesco tamarinheiro com mais de três séculos de existência. Isso pela contagem dos mais antigos, pois desde a época do patriarca João Claudino que a árvore já era bem alta e copada. A admiração que tive pela Figueira de Florianópolis ficou do tamanho de uma formiguinha, frente ao pasmo de minha alma, ao esplendor de tanta beleza. Viramos crianças novamente, brincando à sombra do Tamarinheiro. Não resisti ao ímpeto infantil, subi no tronco imenso e percorri seus longos e largos galhos como se andasse por uma estradinha. Um casal de xexéus do sertão, nos galhos mais altos, reclamava da invasão aos seus domínios.
Seu Chico Sales relata que ali já foi palco de tudo, área de lazer, espaço de trabalho e uma branca capelinha ao pé do corpulento tronco, com uma imagem de N. S. Aparecida, confirma que a gigantesca árvore é agora um templo da fé celebrada aos céus. O cicerone conta-nos: “O Dideus, meu irmão mais velho, rodou o mundo todo e chegou aqui com uma sapiência que atoleimava o povo. Ele resolveu fazer um Piquenique debaixo do Tamarinheiro que estava todo enfeitado para a noite de São João. Estava tudo preparado: os cordões coloridos esticados debaixo da árvore e os troncos de sabiás e juremas pretas amontoados ao lado, para a grande fogueira. Encarregou-me de distribuir os convites pela vizinhança: Santo André, Bom Jardim, Macaco, Cavaco, Emaús, Morro do Olho d’Água até os amigos da Lagoa Tigre e o bilhetinho do piquenique dizia que o Raimundo Claudino iria tocar violino. Houve gente que me escorraçou, zangado com aquilo, pensando que era cobrança: - Diga ao seu irmão que eu nunca fiquei devendo nada a ele não, muito menos esse negócio de penico!”
           O Chico Sales aponta para um serrote ao lado, o Morro do Olho d’Água, onde existia uma fonte que escorria para o Riacho Caldeirão e diz: - O cangaceiro paraibano Sucupira, do bando do Tenente Rosal, soube que o olho tinha sido entupido com algodão pelos índios Karatius, em épocas passadas, então resolveu dinamitar para dar maior vazão à fonte. Tiraram muitos chumaços de lã empedernida, mas a fonte sumiu, e acho que somente o gigante tamarindo é que bebe dela agora.
Da secular árvore fomos ao local onde Rosal tombou. Uma pedra ainda guarda as manchas de sangue como sinal do termo do malvado cangaceiro e aonde se ouve ainda o estampido do rifle do caboclo Cambirimba: - Paaaaa... E ao mesmo tempo escutamos um grito de alívio no sertão: - Mataram o Rosaaal! O expert Caçula Aguar ficou esperançoso de, um dia, ver uma cruz enfincada ali e ter o Bom Jardim como ponto de visita na rota do Cariri Cangaço.
Determinado o local da fatal tocaia de Rosal, voltamos para nos despedir do maravilhoso Cavalheiro Verde em Esplendor, já que a Figueira de Floripa é a Dama Verde em glamour. E fiquei sabendo que um cidadão do clã dos Claudinos cogitou transformar o imenso tamarinheiro em madeira pura. Abismado fiquei com aquela insana ganância.
Seguramente, posso afirmar: O Tamarinheiro do Olho d’Água dos Claudinos é patrimônio de todo Sertões de Cratheús e não pode ficar abandonado, por conta própria, sem uma firme proteção. Galhos de uns 40 cm de diâmetro e um incrível vão de 20 metros, pendendo ao vento, sem um ponto de arrimo, uma escora, é um risco e uma irresponsabilidade. O Tamarinheiro pertence a uma família e esta tem que protegê-lo. O Tamarinheiro pertence, como um tesouro inestimável, a todo povo de Novo Oriente e Secretária de Meio Ambiente daquele município deve amparar e colocar estacas para apoiar seus galhos que tentam abraçar o imenso sertão. Acredito, pelo bom senso do novorientense, que isso acontecerá, e voltarei para admirá-lo e constatar que estou mesmo ficando arbóreo, comprovar que sou Sertão, nasci sertão e vivo sertão, pois corre em minhas veias a mesma seiva vivifica que flui nos lenhos do velho tamarinheiro do Olho d’água dos Claudinos, ao pé da sua imensa solidão.

Raimundo Cândido

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Bodega do Valmir

                                           

Daqui a pouco, eu e os velhos objetos que me cercam, hão de cair no porão do esquecimento. Pouquíssimas coisas animadas, ou inanimadas da vida, resistem às ciladas do tempo. E, mesmo assim, caminho com uma cortina de vidro, a olhar o passado.
Trilhava, absorto, pela minha querida Rua Frei Vidal da Penha que a cada dia se renova, mais e mais. As fachadas de minha infância modernizam-se, adquiriram um colorido vivo como se um dia também não forem taxadas de desusadas, e abrissem espaços para as novas aparências.
No cruzamento com a Rua Delmiro Gouveia torna-se intensa a minha saudade: Vejo uma bodega em cada esquina, poesias que não existem mais. Seu Raimundo Fernandes com uma “gentileza” característica a receber os fregueses e a bodega de meu pai, Seu Raimundo Cândido, com o rústico balcão de velha tábua enegrecida num cheiro forte de couro curtido que irradiava no ar. O que se estampa, aos meus olhos saudosos, não são os prédios novos que enfincaram no lugar.
Já na altura da Cel. Tobias avisto um antigo pé de Castanhola e já era uma árvore copada quando, ainda menino, andava por lá. A refrescante sombra dava para as portas do Bar do Valmir. Este sim, como a heroica castanhola, resistiu. O mesmo aspecto de prédio antigo, por décadas e décadas, como a me convidar: Entre, amigo! Entrei.
- Bom dia, Valmir! Como está?
Ele, por trás do balcão e com surpresa no rosto, por me ver novamente ali, responde:
- Bom dia, Raimundo! Estou bem e você?
Como que autômato, dispõe um copo limpo para a primeira talagada. Muitas vezes saí de lá andando nas nuvens e sem saber que rumo tomar. Agradeço e lembro que perdi o direito de provar a forte Lagoa do Barro, por abuso do uso quando direito tinha de usar.
- Obrigado Valmir! Estou só relembrado as nossas vidas, a minha, a sua e que o tempo logo haverá de levar.
Ele sorri, um sorriso já consumido, a confirmar: - A minha vida é um romance, carregado de amarguras, Raimundo!
Empresto-lhe os ouvidos, o que ele aguardava (Acho!) e o que eu estava a procurar.
- Raimundo, eu comecei a trabalhar neste ramo aos 16 anos, estou com 82. Faça as contas! Passei por muitas coisas, meu amigo. Primeiro foi quando o Batalhão atrasou os pagamentos dos funcionários por quase um ano. Vi muita gente quebrar. O Tenente Messias, o Finado Menezes, e o que a gente podia fazer? Era fazer o que eu fiz, peguei o caderno de fiado e rasguei tudo. E sabe, foi o melhor negócio que fiz até hoje! Eu não ia ficar doido!
Percebi que escutaria uma longa história, uma vida inteira destrinchada e comecei a perguntar.
- Valmir, você que vendeu muita bebida ao povo, me diga uma coisa: você já bebeu?
- Bebi sim, e muito. A primeira bodega que tive, eu acabei foi com a bebida e as cutruvias da Zona. O seu irmão Júlio sabe, eu via ele sempre por lá!
- Raimundo, o sufoco grande foi na cheia de 74. Este prédio aqui ruiu todo, até as paredes o Rio Poti levou. Era um mar d’água, daqui até a Praça da Matriz. E soube que, lá pela rua, quando disseram que caiu o Bar do Valmir, teve gente que chorou: - E agora meu Deus, aonde eu vou me abastecer? Eu tinha uma família para criar, a sorte foi que Seu Agileu me cedeu um quartinho e nas festas do Louro da Cruz a gente vendia bastante pinga e muita caipirinha que minha mulher fazia e quando cuidávamos, os meus meninos, o Xixico, o Leléu, o Capote e o Peru estavam com a barriga já para estourar de tanto tomar caipirinha, escondidos, pensando que era refresco.
- Quando as águas baixaram, eu peguei o material fiado com uns amigos comerciantes e num único domingo os pedreiros, os serventes que bebiam no meu bar, o Manoel Jucá, o Dede Vicente, levantaram as paredes e fizeram o teto, em tempo recorde. Mas também, quando deu 6 horas da tarde estavam todos embriagados, mais melados que espinhaço de pão doce.
Mesmo adoentado, sem poder andar com uma perna quebrada, abre a bodega todos os dias, pontualmente às cinco da manhã. O freguês já está na calçada, impacientemente, aguardando. Do trabalhador ao desocupado, do doutor ao padre, não falta quem venha todo dia queimar os dentes com uma caninha forte para afogar as mágoas dos dias difíceis, para sonhar e suportar essa vida enjoada que Deus nos deu. Esse tal de Baco, que inventou a pinga, foi um gênio!
- Os meus filhos já pediram: “Papai, deixe esse negócio de vender cachaça! Eu lhes explico: “Vocês foram criados com o dinheiro das bebidas, vendidas de dose em dose, então me deixem trabalhar!”
- Muita gente boa, que se escorava no pé deste balcão, já se foi: O Babalu, o Tiú, o Cabo Marinho, o Zé Miolo, o Joaozinho... Foram tantos! O que ainda está vivo é o Mestre Ota, que sempre apoiava a perna no balcão e declamava a carta de despedida de Getúlio Vargas: “Deixo à sanha dos meus inimigos o legado da minha morte...”
¬- Um dia, o Manoel Jumentinho que gostava de cantar imitando a voz do Carlos Nobrega, azucrinou tanto o Véi Chico Alpragata que esse sentou o pau-de-jucá na moleira do Jumento enxerido. Ele ficou ciscando aí no chão, igual uma galinha do pescoço quebrado e foi bater no hospital.
- São coisas da bebida, né Raimundo. Você sabe, se exagerar, qualquer um sai da linha.
E o Valmir continua:
- E teve um dia que o Mané do Cego estava tomando umas, tinha uma curriola danada com ele, tirando o gosto com curimatã e ouvindo o rádio quando o carro da patrulha riscou aí, na porta. Desceu o Capitão Camilo, que era o delegado e foi logo perguntando: - Que rádio baile é esse? O Mané respondeu: - Num é radio baile não, Capitão! É muisica! O delegado segurou-o pelo braço e o coitado do Mané foi preso. Depois, eu soube que o Capitão só andava cheio de conhaque nas ideias e como aqui só tinha cachaça ele mandou fechar o bar e até o rádio. Abri, assim que o delegado foi embora!
- Valmir, com a sua idade, você tem é que se cuidar mais. Mesmo com ajuda dos seus filhos é necessário repouso, não acha?
- Qual nada, Raimundo! Quem nasceu pra morrer peba tem mais é que viver cavando!
Despedi-me do amigo Valmir e segui o meu caminho incerto. Inexplicavelmente senti uma tontura na mente, as pernas trôpegas... Será? Mas não tomei nem uma talagada de São João da Barra ou da quentíssima Lagoa d Barro! Ah, já sei! É que continuo o mesmo velho ébrio de sempre, na lucidez do coração!


Raimundo Cândido