quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O SERTÃO QUE NÃO É MAIS SERTÃO

 
Yuri Abyaza Costa (empresário e escritor)

 
Este artigo não é um artigo histórico e nem de cunho filosófico, primeiro porque eu não me julgo um historiador e segundo porque eu também não me julgo um filósofo. Este artigo é apenas uma observação de um paulista que veio para o nordeste a fim de pesquisar um assunto pelo qual é apaixonado. Essa paixão é fruto da sua infância vivida e que agora pende para atingir a maturidade. Na minha infância eu ouvia meu pai falar todos os dias e quase o dia todo a respeito da marcha da Primeira Divisão Revolucionária, marcha que é conhecida pelos brasileiros por Coluna Miguel Costa - Prestes.
É natural, posteriormente à nossa infância, repetirmos o que nela vivenciamos, por isso saí do sudeste e vim até o nordeste verificar a passagem de um dos quatro destacamentos da Coluna Miguel Costa – Prestes, por Crateús, o segundo destacamento, do coronel João Alberto.
Alguns dias antes de eu embarcar de São Paulo até Crateús, recebi uma carta do Padre Geraldinho sugerindo-me que fizesse uma comparação entre o interior do Estado de São Paulo – que eu conheço bem – e um dos interiores do Estado do Ceará, que liga a capital Fortaleza até Crateús. Enquanto o coletivo trafegava sobre a rodovia que liga a capital ao interior observei atentamente – através da janela do ônibus – a paisagem que margeia a rodovia. Vislumbrei uma magnífica paisagem, digna de um estudo mais aprofundado e de uma reavaliação literária. Essa conclusão a que cheguei se reforçou quando desembarquei em Crateús. Aqui eu bebi do meu próprio veneno, experimentei a minha ignorância em relação ao que os livros didáticos do sudeste, o cinema brasileiro e alguns clássicos da nossa literatura causam à mente de alguns sudestinos. É mais uma vez a história que grafa em suas páginas de pedra, estórias que se perpetuam de gerações a gerações em que nada de novo é grafado. Urge que nessas pedras seja grafada a continuidade da história, porque não é possível que em pleno século 21, no sudeste, ainda se pense que o atual nordeste brasileiro é o mesmo nordeste de Euclides da Cunha, Raquel de Queiroz, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Graciliano Ramos e de outros desses clássicos literários. Já é hora de um novo clássico adentrar às universidades do sudeste e nos apresentar a atualidade, essa atualidade é um novo nordeste que se desenvolve a passos rápidos e indica que não pretende parar até alcançar o mais elevado ponto desta cadeia de montanhas que o cerca. O sudestino precisa ter acesso a uma outra imagem a respeito do nordestino, a imagem atualizada e por meio dessa imagem configurarmos a realidade de um novo Brasil: livre, soberano, igualitário e acima de tudo, democrático.
A célebre frase de Euclides da Cunha, escrita no século passado é uma frase que em sua ambigüidade temporal se demonstra presente, o nordestino é sobre tudo um forte. Forte porque venceu, cresceu, progrediu e se solidificou. Mesmo ciente à referência de sua imagem no sudeste, emigrou, regressou e agora não volta mais, pois esse é o pensamento que impera por essa região interiorana do Ceará, que é Crateús, e diferente do que se pensa no sudeste, essa região do Brasil é abastecida pelo Rio Poti que hidrata essas terras impermeáveis e alimenta esse povo espirituoso, dono de uma cultura pluralista.
Aos artistas do nordeste, deixo aqui a minha sugestão: escrevam o novo e atualizem os novos, porque quem quer vender tem que anunciar, quem quer comprar, deseja o belo e é isso o que é a cidade de Crateús, bonita, bela e abastada.


 


                                                      Vinténs do Mercado

            O tempo, no mesmo instante em que nos subjuga, oculta as nossas fiéis imagens. Este mesmo tempo que transforma o nosso hoje em vulto envelhecido, deforma as distâncias que tínhamos na impressão de uma breve profundidade ou de uma longuidão que não mais vigora, enquanto nos entorpecemos nesta passageira eternidade. Como se uma delgada nuvem ofuscasse tudo aquilo que um dia vivemos. E basta um simples sopro na memória para que as formas, os semblantes e os fatos importantes se conglomerem novamente em frágeis recordações, ressuscitadas de um longínquo passado. No presente imediato, as distâncias são bem mais breves que aquelas da infância, os prédios são bem mais singelos e sem aquela cronológica magnificência que ficou conservada em nossa ingênua impressão.
            (Transporto-me. Ouço ainda a dura e doce voz de minha mãe, às 3 da tarde, que me expedia uma firme ordem: — Vá depressa ao mercado compar carne para o almoço de amanhã. Àquela época, matavam-se os bois à tarde. E como bom e obediente pirralho, partia numa pesada bicicleta Gulliver, de meu irmão, que era um pouco alta para minha estatura juvenil e tinha que pedalar pelo aro central, pois não alcançava a cela. Uma lonjura imensurável de alguns quarteirões, que separava o Mercado Central de minha casa, era como se fosse uma longa viagem.)
            Hoje, quem passa pela Rua D. Pedro II, na calçada do mercado, ouve logo a voz de Seu Menor, que nos convida a entrar no seu comércio. Seja um freguês ou um velho conhecido, ele simpaticamente ordena: Botem aqui um tamborete, para nosso amigo se sentar!  E uma conversa se inicia, calorosamente: — Como vai sua mãe? Era a mesma pergunta de sempre, demonstrando seu grande respeito e admiração pelas  pessoas mais idosas. O trabalho, quando é realizado com prazer, tende a levar o seu autor para uma sábia longevidade, é o que notamos quando se tem uma alegre palestra com Seu Antonio Soares Martins, o Menor. O prédio do mercado ainda conserva um pouco de sua arquitetura gótica nas  poucas fachadas comerciais e ainda tem aquela gárgula de queda d’água nas arcadas dos portoes centrais, mas na maioria, já foi tudo mudado. — Meu filho, não temos leis que obrigue o povo a conservar as fachadas dos prédios publicos, diz ele. E continua sua explanação: Considero que mercado é o coração da nossa cidade. E me vem da memória um texto que li em algum canto por aí: “Toda cidade é como um caracol que principia e termina no seu animado mercado, como se fosse o indispensável coração, vibrando, ramificando-se por suas esparsas ruas, num tráfico de riquezas, batendo de porta em porta num desejo de labor e vida.”
´           Neste nosso mercado, que é também centenário, já aconteceu de tudo, gerações inteiras nasceram e morreram trabalhando por aqui. Continua discursando:  Lembro que na época da eleição de Franco Rabelo, havia um velho que bebia muito e era chamado Furtuoso José de Sá, ele dizia: “Esse povo de Crateús é tudo sem vergonha e ladrão. Os homens todos são Franco Rabelo e as mulheres, frangas do rabão.” E tentando desmoralizar o mercado, ele entrou à cavalo no portão de trás, mas quando saiu no da frente, a polícia já esperava por ele. Em 1955 eu botava água para as cafezeiras, trazia em carga  de jegue, despejava em seus potes e quase todas elas se chamavam Maria,
            Prossegue, uma das secas mais cruéis, ocorridas no Ceará e em Crateús, foi a de 1958, o povão do interior, com sua família inteira, invadiu o mercado. Foi preciso a intervenção do Batalhão, mas todos os comerciantes ajudaram. Uns deram fardos de rapadura, outros de sacos de farinha, o Chico Gomes matou 14 boiotes que foram consumidos na rapidez de quem mata uma fome grande. Uma seca medonha, mas em dois dias o 4º Batalhão tinha acomodado a todos, aquietado tudo, mas não resolveu p problema das estiagens, de quem cultiva a terra e nela morre de fome, esclareceu seu Menor. Ele relembra de alguns comerciantes antigos, Seu João Melo da Casa Beija-Flor, Seu Manoel Ferrim, Seu Eugênio, Seu Chico Leitão, Seu Luiz Hora,  Seu Antonio Ricardo, muitos já se foram. Mas fala com especial ênfase  é mesmo de Seu Antonio Ricardo por ser o personagem principal das historias pitorescas, ao estilo de seu Lunga de Juazeiro. Ele nos conta: Um cidadão fez uma compra e sobraram umas moedinhas de vinténs no troco. O Freguês perguntou: Seu Antonio, o que vou fazer com essas moedas, não valem mais nada! Ele respondeu rápido: - Jogue no mato! O freguês obedeceu na risca, jogou as moedas na rua e foi embora. Depois Seu Antonio comentou: Este cabra ai é mais ignorante que eu!
            (Volto a sonhar. Estacionei a Gulliver na calçada, escorada pelo pedal no meio fio e fiquei admirando, assim meio espantado, meio maravilhado, com um ceguinho no portão, pedindo esmola, tocando numa viola de poucas notas com uma cantoria que pedia a Deus para pagar as esmolas recebidas e que nos livrasse do inferno e das pragas dos maus vizinhos. A pancadaria do machadinho, cortando os ossos, se misturava com a algazarra de propaganda de boi gordo e de barateza das mercadorias de cada magarefe, como num animado teatro, o que fez me lembrar o que tinha ido fazer. E lá estavam os boxes de Seu Chico Véio, de seu Clementino da carne de porco e de Seu Agileu Nunes  donde eramos fregueses.)
            Seu Menor continuava contando as histárias que já fazem parte de um folclore crateuense, e minha atenção retorna ao momento atual e volto a me divertir : - Um cidadão chegou para comprar fumo de corda, da marca Arapiraca que tem o cheiro forte. O Cabra cherou um rolo, cherou outro e soltou uma pufa. E lá estava Seu Antonio sentado no balção, pitando um cigarrinho e balançando a perna. O Cabra pergunta: - O Senhor num tem um mais forte não? O que seu Antonio respondeu: - Para cagar, não!
            Quando se ultrapassa os limites da simples existência humana, todas as histórias deixam de ser do homem e passam a pertencer ao mito, que leva na sua luz o real e o imaginário de uma existencia, e não se percebe mais se a fábula é uma realidade ou em que momeno o simples homem se tornou a lenda. E Seu Menor prossegue desfiando uma lista interminal de narrativas de Seu Antonio Ricardo: - Um cidadão chegou para comprar corda, daquelas grossas para tirar água de cacimbão, que era vendida no peso. Nosso lunga se levanta de seu tranquilo balcão e coloca a corda num dos braço da balança e o  respectivo peso, para equilibrar o pedido do fregues. Mas este logo volta reclamando, que tinha faltado umas poucas gramas de corda. Calmamente Seu Antonio Ricardo  corta um pedacinho da corda, coloca na balança e fecha  as 50 gramas que o freguês disse que estar faltando. Enrola num papel de embulho e  o entrega. Mas  novamente a reclamação: - Mas seu Antonio, que vou fazer com esse pedacinho de corda? A resposta você já sabe, né! Foi obvia para quem ganhou a fama folclorica que agora tem! Foi essa mesmo que estais pensando!
            Despeço-me do Seu Menor, um dos últimos moicanos do coração da cidade, dignificado pela idade e pelo Trabalho que mantém vivo em seu peito aquela pequena faísca de fogo celestial,  chamada consciência.
.                       ( Regresso novamente ao meu sonho e para aquele dia remoto, que nunca esqueci, de onde estou voltando pra casa semeando minhas futuras saudades e com um quilo de carne dependurado numa tirinha de palha, pedalando uma velha Gulliver.)

Raimundo Candido

quarta-feira, 3 de agosto de 2011



O Homem na minha cama

vou te dar um abraço nu
em pêlo e suor
e me encaixar
feito pecinha de quebra-cabeça
em teu corpo
vou te dar beijos vestidos
em língua e salivas
onde possa saciar
a sede que me consome
vou te dar minha pele
perfumada em gozo
quando deitares na minha cama

Karla Gomes

terça-feira, 2 de agosto de 2011

JOSÉ PEREIRA DE SOUSA


O que é esse caldeirão permanentemente fervilhante que chamamos mente humana? Como conceituar essa perseguida lâmpada que se convencionou avocar como razão? O que vem a ser esse paradoxal fenômeno que denominamos loucura?

Machado de Assis, no remoto ano de 1882, escreveu um livro - ou conto ou fábula ou novela, porém obra-prima – em que desenha, com o pincel da sua genial ironia, uma caricatura dos valores de sua época.

Subjacente à história de Simão Bacamarte, um médico formado em Portugal que se instala em uma pequena cidade do Rio de Janeiro (Itajaí), ele promove uma viagem fascinante pelos espaços mais íntimos do ser humano. Desliza pelos bueiros mais profundos do raciocínio, senta o cajado da reflexão no terreiro do pensamento e produz um binóculo especial para mirar a nossa argila mental. Discorda da visão majoritária da época, que considera as posturas divergentes da média predominante como desvirtuamento dos sentidos ou descontrole da imaginação.  Conclui que, não raro, rotulamos superficialmente de loucura aquilo que, em verdade, é a mais profunda expressão de lucidez.

Crateús sempre foi uma cidade prodigalizada com a presença, em suas largas e generosas ruas, de pessoas alheias ao figurino convencional de modelo comportamental. José Pereira de Sousa, o Pereirinha, é uma delas. Bonachão, corpulento, solitário e solidário, imune ao ódio, ansioso por um sorriso, avesso a maldades, discípulo da bondade.

Conheci-o, na década de 1970, no comércio do meu pai. Eu era um menino e ele, vendedor da Casa Beija-Flor. Depois nos reencontramos, ao final da década de 1980, quando ele retornou do Rio de Janeiro, onde passou uma temporada trabalhando no famoso hotel Glória. Voltara fascinado com a liderança carismática de Leonel Brizola, cuja mão havia apertado em uma praça carioca.


O final dos anos oitenta e início dos anos noventa sacudiram Crateús. Uma brisa de esperança bafejava a cidade, que exalava um charme mudancista. Um grupo de jovens políticos ascendia ao poder municipal. Pereira estava próximo dessa turma. Logo, abriu-se uma dissidência e, nas eleições de 1990, do grupo emergiram dois candidatos a deputado estadual: Manoel Veras e Sérgio Morais. Amigo dos dois, Pereira vivia a desconfortável situação de ter que se equilibrar entre ambos sem que isso causasse constrangimentos. Idealizou uma solução para o caso: no bolso direito andava com o retrato (“santinho”) de um e no esquerdo o do outro. Quando se aproximava de aliados de um ou do outro, sacava a foto que faria a festa dos militantes. É óbvio que todos sabiam da estratégia... Um belo dia, Pereira adentra na barbearia do senhor João Freire e lá encontra Sérgio Moraes. Este lhe indaga: - Pereirinha, você está comigo mesmo?  Assustado, Pereira responde: - Claro, meu chefe, estou com você. Tanto é que carrego sempre o seu santinho no meu bolso. E, nervoso, erra o bolso e exibe a foto de Manoel Veras...

Tempos depois, selecionado em concurso público, foi efetivado nos quadros da municipalidade. Lotado no Gabinete do Prefeito durante a gestão de Paulo Nazareno, andou o município inteiro e protagonizou vários episódios que enfeitam o folclore político local. Nazareno fez fama como Prefeito de atitudes inesperadas, amigo das minorias discriminadas. Quando da inauguração do CAPS (Centro de Apoio Psicossocial), Paulo fazia um discurso emocionado narrando que aquele espaço seria um lar para pessoas muito inteligentes, dotadas de grande sensibilidade e que, no entanto, a sociedade marginalizava, classificando-as como “loucos”... Pereirinha interrompe: - como eu, doutor Paulo?!!!  A gargalhada foi geral.

Pereirinha é um ser prestativo, com enorme disposição para servir. Mora sozinho em uma casa no bairro São José, o santo do seu nome. Tem uma legião de amigos. Esconde a idade. Parece usar isso como escudo para proteger a tenra infância que vive bailando diariamente em sua alma. É, de fato, um menino. Menino que leciona aos adultos que é possível se viver de bem com os outros, de modo desprendido, aberto às novidades, sem cultivar rancores de qualquer espécie, liberto dos preconceitos tolos da política, expondo na janela da convivência as samambaias da leveza e da alegria. Alguns podem até considerar louco quem assim se comporta. Olvidamos de reconhecer, na masmorra da ganância e na escuridão do nosso egoísmo, que essas pessoas são, como ensinou Machado de Assis, verdadeiros vaga-lumes da lucidez.   


(Por Júnior Bonfim, na Revista GENTE DE AÇÃO)














 
 

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Inocência

Ainda menina
Com os cabelos cacheados e bem alvinha
Descalça e de calçola,
Percorria rua abaixo e rua acima

Lá no meu interior, onde tudo
Parecia-me grandioso
E até Dom Fragoso,
Homem sério e bondoso
Fizera-me acreditar
Quando seu sermão ia escutar
Que o bom da vida é sempre perdoar

O tempo passou
E tudo por lá mudou
Há que saudade dessa época
E da menina sapeca
Que por Crateús se apaixonou

De regresso à minha cidade
Revivo a ingenuidade
De tudo o que na infância acreditei
E com maior encanto, sonhei

Oh, Crateús, tão bela
Aos olhos daquela infante
E pra essa época
Que parece distante
Já não és tão grandiosa
Mas, continuas a majestosa
"Princesa do Oeste".

Cheyla Mota

Raimundo Candido disse:
Ainda verei, com esses pobres e tristes olhos que a terra tão cedo não abocanhará, uma revolução! Alias, já se conflagrou vivamente aqui na ALC, com nosso quinteto valente formado por Vera, Nega, Silvia, Ísis e Adriana. E ainda chega um reforço para a tropa da mulherada, aumentando ainda mais seu poder de fogo, com as poetisas Cheyla, Karla e Ana! ( Confesso baixinho, para que ninguém nos ouça: Essa nova estratagema  literariamente ortogonal  será a nossa santa Salvação!)
Práxedes , o  Brega!
            Existem duas sentenças proferidas pelo jamaicano Bob Marley que são refutações a estas colisões de desigualdade que paira nos dias de hoje e que a todo custo se tenta abafar. Uma diz: “Vocês riem de mim por eu ser diferente, e eu rio de vocês por serem todos iguais”. A diferença era só a espiritualidade de um gênio que pairava acima de nossa medíocre normalidade. Mas há outra sentença que insisto em mencionar por ser uma grande preleção filosófica de vida, deste uirapuru da fauna musical, pois, quando cantava, nossas almas se afinavam na harmonia que efervescia o nosso sangue e nos dizia: "Não viva para que a sua presença seja notada, mas para que a sua falta seja sentida..." Grande Bob! Pressinto que Deus está se alumbrando com aquele seus batuques rítmicos...
            Já que falo em genialidade, lembro-me agora de Raul Seixas, que proferiu este verso do alto de sua despreocupada irreverência: Eu vou descascando a minha vida,/ Sujando a avenida/ Com meu sangue de limão. Raul repetiu mais de uma vez, como um grande normal fora da lei que sempre foi, que adorava literatura mas odiava os doutrinamentos das escolas. Diga-me se isso pode ser?
            Relembro mais um destes seres exótico, antes de chegarmos lá, onde teremos que ir. É um ícone que representa a praia de Iracema, em Fortaleza. O cantor brega e comediante Falcão, com seu finíssimo humor por trás dos óculos escuro num abafado terno floreado, com aquela patriótica gravata verde e amarela distribuindo seu sorriso autêntico e afirmando que toda besteira é a base das sabedorias! Anda pelo calçadão da beira-mar, dançando e cantando, simpaticamente com sua elegante cafonice. 
            Temos também por estas plagas um breguíssimo e eminente personagem que já faz parte do rol cultural dos nossos notáveis cidadões crateuenses.
            Desfila pelas nossas ruas em seu carro com um alarme especial que emite a sirene do corpo de bombeiros, da polícia ou o bramido de um raivoso touro. Quando passa por uma bela jovem, sua buzina soa num acústico veludoso como se alisasse todo o corpo da donzela que inconscientemente encara o motorista com seu poético bigode de Paulo Leminski.
            Práxeres, com x e um acento no a, como faz questão de explicar, e diz que se não for assim é falso! Raimundo Práxedes de Azevedo já passou por tudo nesta vida. Ele brincava com seus alunos ( Está afastado das salas de aulas depois de 30 anos de lições cativantes e cheias de momentos excêntricos que prendiam a atenção de seus discípulos!) perguntando: Qual o professor que derrubou uma parede de dois tijolos, e só com a cabeça?  Ele mesmo! E numa moto com o filho na garupa, por Deus estão os dois, filho e pai vivos, para contar a historia.
            No seu programa radiofônico, um brega puro e cheio de paixões não correspondidas, aos domingos das 11 horas ao meio dia, a recepção é de Crateús até Brasília, devido a globalizante Internet. Tem muita audiência, diz. Às vezes é o Dr. Paulo Nazareno que mete a cabeça na porta : Ei, rapaz, está cidade é uma selva sem você! E já pede uma música. Com a convicção de seu sucesso , brinca ironicamente com a concorrência: Não me acompanhe que não sou novela! Tem dor de cotovelo em alta voltagem e abundante música chorosa para aliviar a aflição de todos os tipos de cornudos. De Alípio Martins a Lindomar Castilho, o homem que matou sua mulher por amor.  E continua explicando: brega hoje é qualidade, é romantismo. Dentro do seu programa há uma parte cultural em que lança frases proverbiais do tipo:
Sogra, milho e feijão, só debaixo do chão! Com isso sua digníssima esposa andou lhe puxando as grandes orelhas e a frase assim ficou: Sogra, milho e feijão, só debaixo do chão, mas adoro a sogra da minha mulher! Práxedes é assim, irreverente e espirituoso e pelo microfone, em pleno ar tremeluzente das ondas radiofônicas, se sai com essa : Mulher de amigo meu é igual a muro alto, é perigoso, mas eu trepo! Tudo fazendo parte de uma breguiçe de qualidade.
            Folclórico, um patrimônio cultural de nossa cidade, quando vai chegando o mês de dezembro coloca logo sua diária mensagem natalina, repetida nos altos falantes do cimo portes no centro da cidade. Já é habitual e o povo fica aguardando, na expectativa. Certa feita, ele desejou um Bom Natal e um Feliz Ano Novo pelas 38432 gotas de sangue que Jesus derramou na cruz por todos nós! Estava desencadeada uma grande polêmica. Mandaram chamar Práxedes, no programa de Irismar França, que disse: Tem um pastor aí criticando esse negócio das 38432 gotas de sangue. O que você me diz? E Práxedes retrucou: Irismar, eu num sou tartufo não, que usa um parágrafo da Bíblia para poder sair construindo por ai umas quatro paredes para fazer  comércio. Chame esse pastor para um debate, aqui! Eu só falo a verdade e tenho provas.  E assim fez Irismar, mas o Pastor respondeu: - Rapaz, sinceramente eu tenho minhas dúvidas, mas eu não quero conversar com esse homem não!
            Agora mesmo podemos encontrar o breguíssimo Práxedes numa mesa de bar, por qualquer esquina de nossa cidade, ouvindo suas melodiosas musicas bregas em alto e bom som. Entre elas, impõe sua veludosa voz de locutor com um dito picante, de dúbio sentido e que, mais a frente, uma ruborizada e pudorosa senhora se queixará: - Oh bicho imoral!
            Passa por minha mente outro Sui Generis poeta, o acelerado Paulo Leminski, que nos faz lembrar nosso amigo Práxedes, ambos livres das amarras do mundo, com suas almas leves ruflando com seus alados bigodes negros, e pronunciando seus emblemáticos lemas: O pauloleminski e o Práxedes / são dois cachorros loucos / que devem ser mortos / a pau e pedra / a fogo a pique / senão são bem capazes / os filhosdaputa / de fazer chover / em nosso piquenique.
Raimudo Candido


José Alberto de Souza disse...


Excelente crônica que resgata tipos populares ai de Crateus, universalizando um rico cotidiano cearense. Só mesmo poderia ser criada por esta pena brilhante do amigo "Bodegueiro".
Quinta-feira, 04 Agosto, 2011