Os “imortais” da Academia de
Letras de Cratheús, por não terem onde caírem mortos, se alojaram sobre os
trilhos do trem, literalmente. A sede da ALC acoplou-se aos barulhentos vagões
dos cargueiros, que passam roçando nos prédios da centenária Estação
Ferroviária e rumam ao sem fim das férreas linhas paralelas.
Talvez
pelo tom poético, talvez pela saudosa lembrança ferroviária contemplamos e
ouvimos as rodas do trem vibrarem, diariamente, em retilíneos versos, enquanto
passam pela nossa porta: - Vup vup vup tchuc tchc tchc piuiiiiiiiiii...
Um encantamento pelas
ferrovias enfeitiçou, fervorosamente, diversos poetas brasileiros: Como o bardo
Manoel Bandeira “Vou depressa, Vou correndo, Vou na toda, Que só levo, Pouca
gente, Pouca gente, Pouca gente...” ou o
Bituca Milton Nascimento “O trem que chega / É o mesmo trem da partida / A hora
do encontro é também despedida / A plataforma dessa estação / É a vida desse
meu lugar...” ou o poeta Raul Maluco Beleza Seixas com o trem das sete “Ói, ói
o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis, olha o trem. Ói, ói o trem,
vem trazendo de longe as cinzas do velho aeon Ói, já é vem, fumegando pitando,
chamando os que sabem do trem...” Ou,
então, Luiz Gonzaga, o Lua, na música De Teresina a São Luís “O trem danou-se
naquelas brenhas / Soltando brasa, comendo lenha / Comendo lenha e soltando
brasa / Tanto queima como atrasa / Tanto queima como atrasa” Mas, quem
verdadeiramente poetizou o trem foi o grandioso maestro Heitor Villa Lobos que
colocou, numa composição magistral, uma orquestra inteira imitando o barulho e
o rebolado do trem sobre os trilhos, repleta das alegrias e dos choros das
despedidas nas estaçõezinhas deste imenso Brasil. Trompas, tímpanos e uma formação de instrumentos
de cordas como violinos, violas, violoncelos e contrabaixos em harmonioso
transe poético a reproduzir o som das rodas nos trilhos. E, para completar a belíssima
obra, Ferreira Gullar colocou a letra de seu poema: “Lá vai o trem com o menino
/ Lá vai a vida a rodar / Lá vai ciranda e destino / Cidade e noite a girar /
Lá vai o trem sem destino...”
É muita saudade! É muita dor! É
muito fervor! E só entende quem é como o Padre Luizinho Ximenes, que no Livro
Paixão Ferroviária, escreveu um belíssimo soneto sobre o trem, Recuerdo: “
Recordo... e, na lembrança colorida / de
meus dez anos, a saudade tem / não sei por que, a forma parecida / com um trem
cargueiro na distância, além...”
Quando, em 1988, o ultimo trem
de passageiros circulou pela Estação de Cratheús, o calçadão da Estação, antes
repleto de alegrias, ficou transbordante de saudades. Hoje, os velhos
funcionários da antiga RFFSA, de vez em quando, passam pela porta da ALC como a
procura de algo que o tempo insiste em apagar. E o passado os desbota junto com
as suas lembranças doloridas de uma era gloriosa. Um dos que deixou de vir
beber estas lembranças que emanam dos trilhos da Estação foi o Senhor Antônio
Goró, hoje nonagenário, o último maquinista da velha Maria Fumaça. Seu Antônio
conduzia a locomotiva com 12 pranchas de passageiros até a cidade de Teresina,
no Piauí, e sem nunca acontecer um acidentezinho sequer. Parava o trem até para
tirar os animais que estavam repousando dentro dos perigosos cortes, mesmo atrasando
o comboio e correndo o risco de ser punido pelos incompreensíveis fiscais da
Rede Ferroviária Cearense.
Festa grande era quando Seu
Antonio Goró precisava fazer a manobra da locomotiva, no Viradouro, um
belíssimo monumento que se encontra preservado que dentro do Clube do Censório
de Cratheús. A multidão ficava observando a maquina entrar, lentamente, no grande
circulo e soltava uma réstia de nuvem branca para aliviar a pressão dos
pistões, fazendo um barulhinho característico. Os funcionários giravam,
manualmente, o gigante de ferro sob os olhar vidrado da criançada, espiando por
baixo das penas dos adultos curiosos.
Não faz muito tempo recebi, da
Professora Luzia Neide Coriolano, um convite para conhecer Minas dos pães de
queijo e das mineiras, Ôoo trem bão, sô! E a terra dos trens, também. Em BH nos
juntamos com um primo cordato e gente muito boa, como todo mineiro que nunca
perdeu o trem, o Eudes Albuquerque, que nos ciceroneou até a cidade histórica
de Tiradentes. Pagamos a velha Maria
Fumaça e fizemos um passeio mágico, uma volta no tempo, pelas paisagens
mineiras e dentro de um vagão todo de madeira, percorrendo 13 km num trilho de
bitola estreita, até São João Del Rey, a terra de Tancredo Neves. Voltei à
época em que o Trem Azul levava e trazia passageiros de Ipueiras, Ipu, Sobral,
Fortaleza para os Sertões de Cratheús. O trem foi um forte elemento que
impulsionou o progresso da nossa pacata cidade. Como os navios que trouxeram os
portugueses para o Brasil, a Maria Fumaça trouxe um tesouro humano para a
Princesa do Oeste e a cidade se encheu de gente empreendedora, mas aqui acolá
vinha um maluco também.
A Academia de Letras de
Cratheús tem o privilegio e a honra de estar assentada num riquíssimo monumento
histórico e com isso vem a obrigação de resgatar e resguardar a história de
nossos primeiros passos para o progresso. O erro dos governantes em abandonar
completamente o transporte ferroviário é como a ferrugem que vai corroendo os
ferros velhos, com o passar do tempo não tem mais jeito. Nevermore!!! Nunca
mais veremos o trem de passageiro circulando por essas bandas, infelizmente. Mas,
em compensação, a ALC é, hoje, um inspirado trem, o trem da memória, o trem da
saudade. Temos um grande quadro da Maria Fumaça na parede e umas réplicas das
locomotivas à óleo e a carvão, a nós doadas pelo generoso ferroviário
aposentado Luiz Quiba, peças que chamam atenção para aquela época áurea do
sertão.
Uma afamada poetisa da cidade Ipueiras
e integrante da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, a Dalinha Catunda,
que sempre vinha de trem para Cratheús, por aqui esteve, novamente, e desta vez
só para matar a saudade dos trens e nos deixou uma belíssima poesia, que é a
forma de um vate petrificar, na alma e no ar, as lembranças que se foram: “Como
não sentir saudades/ Da vida no interior / Do trem que ia e voltava / Levando e
trazendo amor / Do choro na despedida / Que havia em cada partida / Na face do
sonhador.”
E, se você sofre do mal
crônico da saudade dos trens de passageiros, venha para a sede da ALC, é com
andar novamente dentro dos velhos vagões de madeira, rumo ao destino que você
quiser ir, olhado a mata de mufumbo passar rapidamente pela janela de madeira onde
entra uma chispa de fuligemzinha da queima de lenha e se ouve um alegre apito
de despedida: Piuiiiiiiiii.... Venha!
Raimundo Cândido