terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Manelinho, o Caminhoneiro



Existe uma antiga versão de que os caminhoneiros eram pessoas desatinadas, que passavam dias perambulando pelos caminhos, num vai e vem sem rumo, num vem e vai sem norte acompanhando as velhas carroças que passavam. Esses caminhantes emprestaram o apelido aos primeiros motoristas de caminhão. Desde que surgiu, e se aperfeiçoou, após a 1ª Guerra Mundial, o caminhão tem encantado e atraído jovens para a dura profissão, atividade nada fácil que deu motivo à série de TV: Carga Pesada. O oficio é tão pesado que precisa de um Santo para protegê-lo. Um hercúleo, agigantado, que atravessava as pessoas num rio perigoso. Um dia, transpunha certo menino e sentia que, a cada passo que dava, o mesmo ficava mais pesado. Ao acabar a travessia, exclamou: - Parece que acabo de atravessar o peso do mundo! Ao que o menino confirmou: - Sim, você acaba de atravessar o Criador e Redentor do Mundo! Era São Cristóvão, “aquele que carrega Cristo”, que agora ajuda aos motoristas de caminhão em suas missões, contra o transitório tempo, com seus fretes pesados.
Em Cratheús, na primeira metade do século XX, os caminhões foram chegando, devagarzinho, com uma manivela como motor de arranque. Eram os carros da Empresa Flanklin (Ceará Transporte) que em cada para-choque se estampava um nome particular: Leão do Norte, Cidade Maravilhosa ou o Campeão do Nordeste.
O jovem Manoel de Sousa Melo foi seduzido pela profissão de caminhoneiro e bem cedo. Ao retornar, com o pai, de uma viagem ao Piauí, Manelinho tira a carteira de motorista e passa a trabalhar para os comerciantes crateuenses que tinham caminhões: O Sr. Raimundo Resende, Sr. Antônio Bezerra do Nascimento e na Empresa Moreira & Camerino de Zequinha Moreira e José de Oliveira Camerino, levando oiticica e mamona para os armazéns da Brasil Oiticica e da CIDAL, em Fortaleza.
Ganha tanta fama como bom motorista que foi escolhido, em 1953, para conduzir o carro andor que transportou a Imagem Peregrina de Nossa Senhora de Fátima, do velho campo de aviação até a Igreja da Matriz. Seguiam, ao jipe de Manelinho, uma multidão de carros, de motocicletas, bicicletas e de pedestres. Houve uma revoada de pássaros e um intenso foguetório até o momento em que avisaram que a imagem passaria pouquíssimo tempo na cidade, fato que revoltou o povo e as autoridades presentes exigiram um pernoite de N. Senhora. Foi uma festa apoteótica, essa que “prendeu” a Santa!
Manelinho já possuía o próprio caminhão quando Juscelino Kubistchek decidiu construir Brasília. O imenso canteiro de obras necessitava de trabalhadores, urgentemente. Nas várias viagens que realizou no caminhão adaptado, o Pau-de-Arara, Manelinho levava 60 futuros construtores da nova capital, com suas latas de farofa, algumas rapaduras como alimento nos fatigados dias do longo percurso, para chegar ao formigamento de máquinas e gente, com o Presidente Nonô caminhando entre os candangos.
O caminhãozinho trabalhou tanto, mas tanto, rumo à Brasília, que depois só serviu para transportar água do Açude do Governo, na malvada seca de 1958. Cratheús não tinha água encanada, e o agora carro-pipa de Manelinho enchia o tanque de refrigeração do Motor da Luz, no barrocão, aos cuidados do Sr. José Benoni e também completava a velha caixa do Posto Esso. Por toda a Rua Cel. Giló ele ia parando e quatro homens, com duas latas nas mãos, vendiam uma água “boa danada” nas casas para, por fim, no final da rua, encher o pipa de madeira do Irismar, com dois mil litros, onde o mesmo colocava uma lata de álcool puro e batizava com  umas bisnagas de Jofrina, para aumentar a acidez  e disfarçar um gosto aguado. Os biriteiros engoliam o venenoso, em sequiosos tragos, e diziam: - Oh, Lagoa do Barro boa!
A viagem, que o caminhoneiro recorda com certo carinho, foi de quando foi buscar o 1º Bispo que havia sido nomeado por Roma, para Cratheús, Dom Fragoso, na cidade de Senador Pompeu, onde o sacerdote já aguardava, com sua família.  Era um domingo bem claro, o 9 de agosto de 1964.
O Pe. Bonfim insistiu, o motorista tinha que ser o senhor Manelinho: - Eu só confio nele, que dirige com muito cuidado e bem devagarzinho!
Foram duas “Rurais” cedidas por José Cardoso Rosa e Manoel Sales Filho. Acompanhou, também, a comitiva o irmão do Pe. Bonfim, o Senhor Raimundo Moreira do Bonfim.
Uma comissão do 4º BEC foi recepcioná-lo na cidade de Independência. Nunca se viu festa maior na região, o piloto José Rosa Filho soltava flores de um avião sobre a Rural conduzida por Manelinho.  Foi um cortejo pomposo até a Praça da Matriz. E o povo só não imaginava que, o Bispo que chegava, era um cidadão mais ligado às causas sociais do que as pompas que lhes preparavam a sociedade crateuense e que iria enfrentar, de peito aberto, uma terrível e covarde fera chamada Ditadura Militar.
De todos os eventos históricos em que o motorista Manelinho participou, o que mais abateu a sua serenidade característica, foi a notícia do assassinato de seu sogro na cidade de Ipaporanga, em 1988.  Na madrugada, batem à porta do candidato a prefeito Gonçalinho de Paula, era alguém necessitando de ajuda para levar uma mulher, que estava em serviço de parto, para o hospital, coisas que ele não sabia negar. Um crime premeditado pela oposição desesperada por saber perdida a eleição. E o corpo de Seu Gonçalinho fica estendido no chão da calçada por uma bala traiçoeira. O trajeto entre Crateús e a antiga Águas Bela, que ele sempre fazia com muita alegria, na companhia da esposa Luzanira, foi feito com um pesar imenso, que nem São Cristovão, o seu protetor, poderia suportar.
Hoje, quando passamos à tardinha pela Rua Carlos Rolim 236, vemos Seu Manelinho, e a esposa, sentados nas cadeiras sobre a calçada, e temos a impressão que um caminhoneiro guia seu velho caminhão, rumo a um destino que ele sabe o caminho de cor, mas percebemos que, como Monsenhor Bonfim predizia, não há a mínima pressa de chegar.


Raimundo Cândido