Havia uma intensa satisfação
nos rostos daqueles jovens que, desde cedo, esperavam na calçada da Rua Firmino
Rosa, pela abertura de um estreito portão de ferro. Notava-se, atrás de um
longo muro, o prédio alto e amarelado que para uma igreja só faltava as torres.
Os inúmeros batentes da entrada principal davam para uma robusta e desgasta
porta de madeira, aberta de par em par, onde se postava o Pe. Bonfim, rígido
sentinela dentro de uma moralizante batina preta, a inspecionar os mínimos
detalhes dos uniformes dos alunos do Colégio Pio XII. Um desleixozinho de nada
e um olhar enérgico os mandavam de volta, para casa.
Os alunos, disciplinadamente,
dirigiam-se às filas na quadra de futebol, ao lado. Ouviam as prédicas do dia,
cantavam-se hinos e, enfileirados, entravam nas respectivas salas de aula.
No Primeiro Ginasial, naquele
dia, haveria aula de canto Orfeônico. Um senhor, de tez morena, alto e robusto,
aparentando certo rigor, mas que na realidade não passava da personalização da
Serenidade, chegava à porta e, num gesto de respeito ao mestre, os alunos se
levantavam.
– Vocês podem se sentar, meus queridos!
Solicitava, mais que ordenava, o Professor Expedito Paiva com uma brandura como
se dirigisse aos próprios filhos. Tal o deus grego Orfeu, que tinha o poder de
cativar os animais e as aves por meio da canção lírica, o mestre também possuía
um talento extraordinário para a arte musical, para nos deleitar com suas
melodias.
Na aula de técnicas vocais,
começava mostrando a forma correta de respiração, depois vinha a impostação de
voz. Ele verificava, um a um, a aprendizagem dos seus orfeões. E,
carinhosamente, os corrigia. Achega-se ao irrequieto filho do Senhor Manoel
Ferrim, e aconselha: - Oh, Zé Arteiro, meu filho, música é alegria sim, mas se
concentre! Já para o menino do Senhor Zé
Claudino, um vizinho na Praça do Barrocão, afirmava: - José Almir, respire
profundamente, emita o som com calma e firmeza! O futuro grande orador,
sofregamente, absorvia as lições daquele professor multi-instrumentista autodidata,
para suas atividades futuras, tanto na profissão de advogado, quanto nas
astúcias da política.
Na sala vizinha, a Professora
Rosa Morais, que passara uma atividade sobre os prefixos gregos e latinos para
os alunos do Segundo Ginasial, ouve as explanações do Prof. Expedito e fica a
imaginar que só numa mente brilhante como aquela, onde a harmonia musical
lapida os hemisférios cerebrais em pura sensibilidade e alto intelecto, pode
surgir um anjo de bondade consolidado num admirável gênio, e que está ali, a
ministrar aula para os alunos privilegiados do Pio XII!
Um dia, nos bamburrais da
Serra de São Benedito, o menino Expedito procura, com muita atenção, um pedaço
de talo que já esteja maduro e seco, corta-o, remove os nós internos, serrilha
o bico, faz os orifícios de acordo com as notas musicais que sua intuitiva
audição determina e, constrói seu primeiro instrumento musical, passando no
teste de iniciação, indicando para àqueles que o ouvem tocar na Flauta de Pan,
que nascia um prodígio. Seu irmão mais velho, Raimundo de Paiva, companheiro de
longos duelos no repente e nas noitadas de reisado onde se improvisavam de
cantadores de Reis, alerta à jovem e futura esposa do determinado Expedito: -
Tenho certeza, Antônia dos Anjos, que meu irmão nasceu para a música!
O 4º BEC, quando soube da existência de um
músico completo naquela cidade serrana, o mandou buscar para resolver os
problemas na Banda Militar e enquanto o Batalhão ganhava um funcionário
especial, a cidade de Crateús obtinha um filho exemplar, que muito contribuiu
na sua formação artística.
O
Padre Bonfim, além de tê-lo como professor e bedel, convidava-o para auxiliar
nas missas dominicais onde tocava emotivas músicas religiosas no órgão da
igreja. Expedito de Paiva concebia músicas em partituras como sopros celestes,
como objeto de natureza divina que usava para o engrandecimento da alma,
surgindo daí sua extrema religiosidade.
Na
Escola Técnica de Comércio Pe. Juvêncio, foi aluno e Inspetor de Disciplina de
fazer inveja ao indiano Mahatma Gandhi, com sua bondade e imensa paciência ao
peitar os indisciplinados alunos “Meus Santos, não façam isso, não!” e a
indicar, como o líder pacifista, que não existe um caminho para a Paz. A Paz é
que é o caminho.
Inspiração
não lhe faltou para pôr em música os versos do Dr. Antônio Carlos Barreto, numa
mistura de cantos de natal, banda marcial temperado na flauta doce: ”Dentre as
águas do rio junto à serra / Pequenina cidade surge um dia / Entretanto, a
grandeza já se encerra / Em seu porte real de fidalguia...” Presenteou-nos ele,
com uma melodia belíssima, no Hino de Crateús!
O
primeiro conjunto oficial, que o apresentou ao povão, foi Os Dragões, mas logo
mudou para Os Diamantes, uma banda do Batalhão, formada pelos companheiros
Bodinho, Garrincha, Caquinho (Joaquim Bonfim), Dede Garçom, Paulo Sovela,
Marcelo e Deoclécio na época áurea dos grandes clubes da cidade: Crateús Clube,
Caça e Pesca, Sargento Hermínio e AABB. Apresentaram-se até em cidades
distantes, como em Barreiras, na Bahia.
Os crateueses mais velhos ainda recordam dos carnavais memoráveis,
quando os foliões iam dormir com o som do Trombone de Vara de Expedito, ainda
retumbado nos aturdidos tímpanos. Um artista que domina a sua obra em detalhe e
em perfeição, a obra também o domina e por isso mesmo era requisitado a todo
instante. Todo seu tempo era para a
música, mesmo em casa não descansava, sempre tinha turmas de jovens que queriam
aprender a tocar violão.
Concordo,
quando dizem que aqueles eram tempos de facilidades, mesmo aparentando ar de
carências, coisas que a gente nem notava. Hoje se tem tudo e tudo é uma
proposital dificuldade. Desde 2008 que se publicou uma lei obrigando as escolas
brasileiras a reintroduzir a música nos currículos, os instrumentos estão ai,
jogados num canto, se despedaçando pelo abandono. Na época do genial Expedito
Pereira de Paiva havia erudição nos colégios, existia uma preocupação com a
educação integral do cidadão e até com o seu desenvolvimento artístico,
inclusive que fossem musicalmente alfabetizados.
Naquela
manhã do dia 25 de março de 1963, em frente a Guarda do 4º BEC, uma animada
turma de funcionários espera por uma condução para o centro da cidade. Eles
notam, no rumo da estrada da Independência, uma poeira subindo e rapidamente se
aproximando. O Jipe Azul do Senhor Zé Ziziu Martins atende ao sinal de mão, aos
que lhe pediam carona. O motorista conhece o músico Expedito Paiva e mal se
cumprimentam, já sobram na próxima curva em frente a um depósito, atualmente,
da Tropigás. O jipe vira, tombando
diversas vezes e perdem a vida o motorista Zé Ziziu e outros dois companheiros.
O Músico Expedito de Paiva leva uma enorme pancada na cabeça que deixa sequelas
gravíssimas, dores irremediáveis, inclusive uma cicatriz de lembrança.
Naquela
manhã, de um ensolarado domingo do ano 1970, com a Matriz repleta de fiéis, os
cantos iniciais estavam só começando, quando várias pessoas correm para
socorrer o Senhor Expedito, que parara de dedilhar o velho e surrado órgão, o
qual preenchia a nave da Igreja do Senhor do Bonfim com um som de esperança e
fé. Subitamente, a música se extingue,
pois o músico se desequilibrara e caíra, ficando estendido no chão, fora
acometido de um seríssimo AVC. Saíra de casa, no intuito de regressar e não
mais volta para um merecido repouso dominical, ao lado de sua esposa, a Senhora
Toínha de Paiva, que teve, então, de criar sete filhos pequenos, no zig-zag de
uma máquina de costurar.
O seu gênio musical ficou registrado na
história, como um impressionante ser humano que aprendeu, num esforço solitário,
a mostrar-se em bondade, como a um hino. E a comoção na cidade pelo falecimento
de Expedito de Paiva foi tanta que o povo, desolado e em peso, foi dar o último
adeus àquele que nos deixou sábias lições de vida e nos deu exemplos de
genialidade, ao tocar, praticamente todos os instrumentos musicais, com ardor
na alma, como se entoasse a luz divina.
Raimundo Cândido.
João
Silas Falcão Soares disse...
Excelente
relembranças,poeta Raimundinho. Lembro-me com clareza a alta e disciplinada
figura do seu Expedito Paiva. Muito religioso e rigoroso mas não sendo áspero,
inconveniente com seus alunos. Parabéns.
José
Alberto de Souza disse...
Comparo a música ao esporte (ou outra atividade
qualquer) - tanto um como outro requerem uma disciplina constante para que se
domine a sua arte, principalmente por parte daqueles que não dispõem de um dom
inato. Já me disseram que existem técnicas para desenvolver a divisão musical,
a grande dificuldade de quem não nasceu com o ouvido pronto para discernir
qualquer tipo de harmonia.
Crateús, pelo visto, tem sido aquinhoada com notáveis artistas que souberam
transmitir aos iniciados seu talento e habilidade. Invejo sua gente por tudo
que estes lhe proporcionaram.
Minhas aulas de canto orfeônico, onde apenas um aluno conseguia assimilar as
lições de um velho mestre, enquanto os demais se perdiam no entendimento de
semifusas e bemóis, dispersos numa algazarra que fazia Maestro Raffo bradar:
- "Afinal isto aqui é uma aula ou uma jaula?"