segunda-feira, 26 de maio de 2014

O Menestrel Crateuense.


Só a benignidade divina explica-me a gratuidade dos dons. A distribuição aleatória de gotinhas de graças, uma aqui, outra ali, sem regras, sem probabilidades, sem previdências, no puro acaso.  Como uma pequenina semente que trás o sabor e o talento do fruto, como uma nuvem alta no céu de chumbo que carrega o estrondo das trovoadas, o clarão dos raios e o rebuliço das águas que alagam o mundo, um dia o dom brota na pele de um ser e arrebata multidões em admiração e espanto. Foi o que aconteceu na Várzea da Calambanha, um verdadeiro assombro! E eu vou contar para vocês.
Nas terras do Ingá, no Lameirão do Senhor Joaquim Miranda, pai do Sebastião Josias, um fino jogador de caipira que se entretinha cantarolando o romance do Pavão Misterioso “Eu vou contar uma história / De um pavão misterioso / Que levantou voo na Grécia / Com um rapaz corajoso... ”enquanto sacolejava os dados do destino numa latinha surrada, fazendo com que a Dona Maria Lucas Evangelista, lá de longe, gritasse desesperada:  — Oh Josias, saí daí, tu vai torrar todo nosso dinheiro!
Quando foi para casar, a arguta Dona Maria, fez um pedido para o patriarca e dono de todo Ingá: — E nós, Seu Miranda, vamos morar aonde?  Ele, sempre muito ocupado, mas com os beiços mesmo, apontou para uma terra chã, num lugar pertinho, disse: — Vocês vão morar na várzea ali, naquelas bandas! Mal entendido ou não, batizaram o lugar em que nasceria o mais afamado vate da Ribeira do Poti, um jogral moderno que assombraria o mundo, de Vázea da Calambanha!
A parteira, que recebeu nas mãos a criança, logo reconheceu pelo choro uma voz diferente, como a de um profeta. E o nome Evangelista tinha que se confirmar, fosse como fosse, ou pelo personagem do Pavão Misterioso recitado constantemente pelo Seu Josias, ou pelo profeta que a parteira vislumbrou nas feições do pirralho ingaense ou pela herança nômica do berço materno, portanto, o menino ficou sendo João Lucas Evangelista.
O infantil protótipo de poeta sempre pegava no sono ao ouvir a mãe entoar as cantigas dos repentistas de outrora “Lá vem a lua saindo / redonda como um botão...”  e quando ela pedia para alguém balançar a rede do menino, que chorava esgoelado, a pessoa logo voltava lhe dizendo assustada: - Ele não esta chorando não, Dona Maria! Ele está é cantando!
Da meninice alegre no Calambanha para a imensidão do mundo foi só esperar pelo amadurecimento do fruto, aguardar o empenar do rouxinol do sertão que criou asas e levantou voo, corrigindo as trilhas de norte a sul, leste a oeste do imenso Brasil. Transformou-se no mascate da poesia, no poeta giramundo a versejar pelos quatro cantos da nação.
Nas Feiras livres de todo Nordeste, o povo fazia roda para ouvir o poeta Lucas Evangelista. Chegava numa Kombi vermelha sempre vestido num conjunto de brim azul, chapéu na cabeça, uma vistosa barba, viola na mão, versos na mente e soltava a voz, cantando sua inspiração poética: “No sertão do Cariri / Certo tempo um fazendeiro / fez uma carta a meu padrinho / E mandou por um romeiro / Comprando um tostão de chuva / Ao padre do Juazeiro ...” Eram os versos do Tostão de Chuva que fez baseado nas cantigas que Dona Maria cantava para ele, enquanto criança. Ali mesmo, no chão da feira, vendia folhetos, discos e fitas k7, tornando-se um dos poucos artistas cearenses a tirar o sustento, seu e de sua família, pelos bafejos difíceis do oficio de poeta.
A vida de Lucas Evangelista daria um grandíssimo cordel, pelos admiráveis momentos de pura poesia no seu trajeto de jogral a declamar, levando cultura para os mais distantes recantos do Brasil. E o sertanejo criou uma admiração especialmente amorosa pelo poeta. No dia em que, como viajor nômade, já de partida para outra cidade, um senhor lhe pede que fique, que aguardasse mais um pouco: — Pelo amor de Deus, não vá sem que minha esposa lhe conheça pessoalmente! E por que isso meu amigo? Perguntou o poeta.  — Seu Lucas ela me disse que, se não conhecer o senhor, ela não iria para o céu! Foi o jeito o vate crateuense aguardar a chegada da grande fã.
O povo simples e humilde tem a sensibilidade aflorada por qualquer emoção, pela dor ou pelas tragédias dos versos rimados que lhes falam na alma. No descampado da Capital Federal, após cantar “As aventuras de João desmantelado” e  a “Carta de um Marginal:  — Recebi pelo correio carta de um hospital / Dizendo ser de um cliente que passava muito mal / O qual eu já tinha lido o seu nome em um jornal / Dizia: caro poeta só você que tem memória / Pode transformar em versos minha fracassada história...” ele tem a surpresa de ver um cidadão com seu cartaz na mão, a lhe elogiar: — Um filho de uma mãe desses, não nasce mais não! Uma mulher não pare mais nunca um desgraçado deste!
Em Conceição de Araguaia, no Maranhão, alguns jornalistas resolveram peitar Lucas Evangelista. Estavam todos na carroceria do caminhão aonde o mestre iria se apresentar. Lançaram-lhe um desafio: - Mestre Lucas, o senhor está vendo essa formiguinha no tablado, levando uma flor de laranjeira? Queremos que o senhor faça uns versos sobre isso. Ele não se fez de rogado, demorou um pouquinho, mas soltou os versos poeticamente líricos: “Formiga de roça não corte a minha laranjeira / Se é nela que eu refresco o meu calor / Tempo de flor quando ela está brotando / Passo o dia namorando nos braços do meu amor...”
Boa parte das trovas do poeta crateuense, musicados por ele mesmo, foram gravados por cantores e conjuntos famosos, como Calango Aceso, Mastruz com Leite, Frank AguIar e os crateuenses Edilson VieIra e Bento Raimundo. Mas nada como a emoção de ouvir os versos na voz do próprio poeta anunciando sua terra natal em todo canto que vá: “Nos verdumes de um rio muito extenso / Onde dantes Fazenda de Piranhas / Inspirado de origem muito estranha / Transformado em um braseiro imenso / É a terra ao qual hoje eu pertenço / Numa área de uma amplidão tamanha / Num açude que linda águas banha / Encantou-se uma musa num artista / Onde nasceu Lucas Evangelista / No reinado da Várzea da Calambanha /...”
Um dom, como uma pequenina semente germinada nas margens do Poti, incorporou-se no excepcional crateuense que chegou a receber o título máximo de Mestre da Cultura, pela sua grandiosa obra na Literatura de Cordel. Hoje, ao lado esquerdo do Arco N. S. Fátima, no centro da cidade, como os trovadores antigos de Portugal renascentista que colocavam seus folhetos dependurados em cordas, encontramos o menino/homem/poeta da Calambanha que venceu as impossibilidades da vida e se elevou, como os mistérios por ele cantado, acima da mediocridade humana pela mais bela arte popular, a poesia rimada do grandioso repentista, do violeiro crateuense, de um vate cearense, Mestre do Mundo, chamado Lucas Evangelista.


Raimundo Cândido