sábado, 17 de agosto de 2013

Academias e Associações

Há uma grande quantidade de academias literárias e associações culturais no Ceará. São grupos que comprovam que o intelectual cearense é gregário, gosta de um mutirão, quando o assunto é qualquer vertente das artes. Parece que o nosso artista não confia muito na capacidade individual. É através dessa união de pessoas que os projetos de divulgação de obras se tornam viáveis. Mesmo assim encontram-se alguns intelectuais renitentes em não se aproximarem de outros nessas entidades. São poucos, mas é bom lembrar que o escritor Alcides Pinto era um deles, sempre se negando a ser acadêmico.

Certa feita convidaram Alcides Pinto para pleitear uma cadeira na Academia Cearense de Letras. O poeta respondeu que instituíssem um concurso que ele talvez pudesse concorrer. Francisco Carvalho foi praticamente colocado na Academia. Não pediu voto a ninguém. Inscreveram-no. Foi à posse e não mais frequentou aquele sodalício. O poeta Roberto Pontes e o contista Pedro Salgueiro nunca se interessaram por academias. Há, no entanto, escritores de pequeno porte, que se dilaceram em campanhas para ocupar cadeiras de academias. Há deles que participam de oito a dez dessas entidades.

A Academia Cearense de Letras, a mais disputada, mais glamourosa e a mais antiga, pois foi fundada em 1894, ocupa, atualmente, o Palácio da Luz. Ali, além de ser sediada, ela ainda abre suas portas para as reuniões de outras 11 academias. Além dessas, há outras entidades que também se reúnem nas suas dependências. Entre elas estão a Associação das Jornalistas e Escritoras do Brasil, seção do Ceará; a Associação Brasileira de Bibliófilos e a Sociedade Cearense de Geografia e História. Quanto às academias que se reúnem no Palácio da Luz, além da ACL, podemos citar a de Retórica, a da Língua Portuguesa, a Metropolitana de Letras, a de Letras dos Municípios do Ceará, a Fortalezense de Letras e a Municipalista de Letras, entre as mais atuantes.

A Academia de Letras dos Municípios do Estado do Ceará (Almece) possui em seus quadros representantes dos municípios cearenses. Nem todos os municípios estão ali representados. Se isso acontecer um dia, nós teremos 184 sócios já que é esse o número de municípios de nosso Estado. Interessante é que os municípios, por sua vez, estão criando suas academias como é o caso da Academia Limoeirense de Letras, da lavrense, da cedrense, da varzealegrense, da ipuense, da comucinense e de outras. Assim, teremos em breve 184 academias, uma para cada município cearense. É evidente que muitos municípios ainda não criaram seus sodalícios mas o exemplo vale a pena ser seguido.

Curioso é que os colégios também estão criando suas academias. Tudo começou com o Colégio Maria Ester, criando sua Academia de Letras com componentes sendo alunos da entidade. Logo em seguida, outras escolas lhe seguiram o exemplo. Já há um bom número dessas entidades nas escolas cearenses. Acontece que, segundo dados do Conselho Estadual de Educação, há no Ceará 10 mil escolas de ensino fundamental e médio. Se todas essas escolas criarem suas academias, daqui a pouco teremos 10 mil academias a mais.

Diante desse grande número de academias há os que aprovam mas há os que reprovam. Há até escritores que falam mal de tanto academicismo, diante da rara qualidade de muitos dos componentes dessas instituições. Há escritores jovens que falam mal até da Academia Cearense de Letras e, quando chegam à maturidade, lutam para ingressar nos seus quadros. Essa luta para ingressar na ACL muitas vezes apresenta lances inusitados. É que às vezes, no próprio velório de um acadêmico, há quem já se insinue como pretendente à vaga aberta. Depois, sem o respeito pelos prazos regulamentares, há os que já telefonam em pedido de votos. Essa prática condenável também acontece às vezes até na ABL.

Outra prática prejudicial às academias fica por conta daquelas pessoas que lutam para ingressar na entidade, são eleitas, tomam posse e não mais a frequentam. Essas entidades reúnem-se mensalmente e apenas em torno de 30% dos membros frequentam as reuniões. Os dirigentes lutam para que haja frequência maior, mas não conseguem. Aliás, por falar em presidência, são poucos os acadêmicos que desejam dirigir suas academias. É um trabalho espinhoso por falta de apoio público e pela obrigação de manter viva e atuante a entidade. Por isso que há presidentes que são como que permanentes.

Dois presidentes que há bastante tempo vêm sendo reeleitos para suas respectivas academias são Lima Freitas, da Academia de Letras dos Municípios do Estado do Ceará, e Maurício Benevides, da Academia Cearense de Retórica. Há outros cidadãos que ocupam a presidência de mais de uma entidade. José Augusto Bezerra é o atual presidente da Academia Cearense de Letras, mas também é presidente da Associação Brasileira de Bibliófilos, isso sem contar que até há pouco tempo presidia o Instituto do Ceará, agora sob a presidência de Ednilo Soarez. O jornalista Vicente Alencar é o atual presidente da Academia Cearense da Língua Portuguesa e presidente da União Brasileira de Trovadores, além de dirigir a Terça-feira em Prosa e Verso.

Se aqui fôssemos citar todas as academias do nosso Ceará e seus presidentes, seria um não acabar mais. Entretanto é bom lembrar que todas elas têm sua função social. Eles congregam pessoas de saberes, estreitam relações de amizades, promovem palestras, confraternizações, e dinamizam hábitos de leitura e aprendizagem. O que poderia ser feito por pesquisador, de uma dessas áreas contempladas, era um levantamento de todas essas entidades, com seus estatutos, seu histórico, seus dirigentes e a relação dos sócios ao longo dos anos. O pesquisador teria material suficiente para monografia, dissertação ou tese. Afinal, o importante seria também apontar as razões que contribuem para tantas entidades culturais entre nós. Não adianta conhecermos o mundo cultural lá de fora se não nos conhecemos, mesmo com nossas limitações.

Batista de Lima

terça-feira, 13 de agosto de 2013

O Pai-de-chiqueiro

                                                                   
             Sou sertão! Nasci sertão e vivo sertão! Corre, em minhas veias, a seiva vivífica das catingueiras, dos angicos e dos marmeleiros! Detenho, impregnado no faro, o cheiro consistente do mufumbo a perfumar a vasta e desamparada caatinga que se estampa no meu olhar.
Trago, embutido no cerne inflexível de mim, um desalento cassimiriano, quando diz: —   Não sei porque - mas a minh'alma é triste! Perdi os risos - a minh'alma é triste!
                Agora, pagando tributo a uma bucólica dor, caminho por uma tortuosa vereda da qual se vê, ao longe, uma velha casa alpendrada em aspecto decadente e as ruínas dos currais que o impiedoso tempo corrói. A vista cansada percorre o eito do abandono no solo esturricado e a mata seca que resiste a uma cruel estiagem, por três seguidos e demorados anos. O sol da manhã já é impiedoso com um calor refletido dos esbranquiçados ossos espalhados pelo chão, tudo que restou das carcaças, antes criação de robustos animais de criação. Prevejo o presságio das mandíbulas da calamidade! Sinto o que essa terra secular sempre sentiu, o ansioso desejo de um líquido precioso, da água salvadora, numa sede que vem lá das entranhas. Busco um copo de água, das mãos cordiais do sertanejo morador da descorada casa, um cidadão rude, mas hospitaleiro acima de tudo. 
                Caminho ao lado dos currais. A porteira escancarada espera a volta de fantasmas. No aprisco das cabras uma ampla latada oferta o alivio das sombras, mas só para o estrume de bolinhas roliças e ressequidas, nem sinal de um dócil cabritinho demonstrando o longo desuso do recinto e ainda sinto um cheiro forte de um ranço no ar, odor característico dos bodes.
                Dou alguns passos rumo ao alpendre da fazenda, em busca de matar minha sede e ouço um insistente balido, como um chamado:
                — Béeeeeeee! — Béeeeeeee!
                Paro, instantaneamente. No lugar da água redentora para consolar minha sequidão, circula nas veias é a impulsiva adrenalina, mandando-me correr.
                — De novo não, meu Deus do Céu! Mal me recuperei do susto de um jegue falante, já me aparece um bode, agora!
                Embora pouca, coragem foi o que nunca me faltou! Viro-me, lentamente, rumo ao portão do chiqueiro das cabras e um velho bode de longa barba decaída e enormes chifres retorcidos, apresenta-se numa voz puxada e decrépita:
                — Professor Raimundo, aguardava o senhor, por aqui!
                O pai-de-chiqueiro exala um inhaca insuportável e seus claros olhos baços me fitavam como se olhasse para um dos seus semelhantes, um igual. Não consegui dá nem um educado bom dia e, percebendo minha surpresa, o bode continua a falar:
                — Está vendo o abandono em que estamos, professor! Esta seca foi tão perversa quanto àquela que matou o bode do qual senhor usou a carcaça, para tirar um retrato lá em Campo Maior, a terra dos Heróis de Jenipapo e da carne de sol!
                — É verdade, amigo, foi uma seca braba! Consegui responder.
                — Braba é pouco, Seu Raimundo! Está foi mortal, destruiu praticamente todo sertão! Veja aí, como está o chão, apinhado de ossos do gado do patrão, nem o cavalo alazão escapou, e mesmo o jegue, a quem você endeusa, não resistiu. Agora, com seu olhar de poeta chorão, me procure por aí, a ossada de uma cabra ou de um bode... Encontra não, Professor! E quer saber por quê? Deixe eu lhe dizer: Há 7 mil anos, que a humanidade aprende com a gente a resistência e a capacidade de adaptação às condições extremas de vida e sempre somos nós que os salvamos, aos homens. Quando for beber água ali, na casa do patrão, pergunte porque a família dele ainda está viva, aí entenderá o que estou dizendo.
                O arquejado bode demonstrava uma sapiência secular e notei que ele fazia questão de me explicar tudo, tim-tim por tim-tim com a ânsia daquelas pessoas que nos pegam pelo braço e só nos soltam quando desabafa toda uma história que se engasga na alma. O velhusco pai-de-chiqueiro continua a sua lição particular de vida:
                — A seca é um horror secular e você sabe disso, amigo Raimundo, ela sempre existiu e voltará a existir. Desde que Dom Pedro II disse "Não restará uma única joia na minha Coroa, mas nenhum nordestino morrerá mais de fome" que os políticos vêm fazendo promessas e mais promessas, e quando “ela” chega, tudo é como antes, um Deus nos acuda e nem água de beber se tem! Mas para nossa conversa não ficar em vão, quero que leve uma sugestão para esses governantes metidos a sabichões, só há uma solução para essa situação: a criação extensiva de caprinos por todo o sertão! O Estado da Paraíba está conseguindo a sua redenção as nossas custas, os bodes! Lá, somos Reis, os Imperadores do sertão! A nossa festa e os nossos recursos incrementam a economia, valorizam a cultura, a história, o meio ambiente, a arquitetura e a gastronomia e resgatam a autoestima da população. Viu a nossa importância, professor!
                Com a pisada da impaciência e o nariz ardendo, tento me sair da presença do pai-de-chiqueiro, mas ele me retém com autoridade firme dos anciões:
                   — Calma amigo, deixe-lhe dizer mais uma coisinha importante e nem lhe peço desculpa, porque é uma grande verdade! Sei que você não dorme com as cabras, mas é um dos nossos, um libidinoso bode e se pudesse teria uma harém, como nós temos os fatos, repletos de odaliscas caprinas. Você é como o poeta paraibano Ariano Suassuna, criador de bode e que um dia disse:  "Uma das cenas mais bonitas, cavaleiras e fortes que já vi em minha vida foi a de um pai-de-chiqueiro enorme e preto cobrindo uma vermelha e nova novilha-de-cabra, num pedaço áspero e bruto da caatinga sertaneja".  E não deixe que muita gente leia o que anda escrevendo, meu amigo, senão esses assuntos chagam aos ouvidos de quem não pode ouvir... Cuidado com a cabrita Isabelle! Evite os dramas! Mas a vida humana é assim mesmo, uma tragédia e tragédia que dizer: tragos + otos ou literalmente, o Caminho do Bode, por isso calcule bem onde pisa, olhe direitinhos seus passos, faça como os velhos bodes, para não cair nos precipícios! Lembre-se, professor Raimundo, bode, nesta vida, somos todos!
                Esse último conselho foi a gota d’água para escapulir, não aguentava mais tanto atrevimento daquela sabedoria bodiana, ainda mais metido a filósofo, e até meus olhos começavam a arder com o aroma enjoativo que empestava o ar.
                — Obrigado pela bela aula e pelos bons conselhos, amigo pai-de-chiqueiro! Eu levarei sua sugestão ao prefeito da nossa cidade, mas não estou aguentando mais de tanta sede!
                Caminho até o alpendre da casa da fazenda, peço um copo de água ao respeitável senhor que se apresenta e que me pareceu tão velho quanto o bode do abrigo das cabras.
                Bebo sofregamente o líquido precioso e raro por aquela região e pergunto ao fazendeiro:
                — Amigo, me diga uma coisa: Aquele bode que está solitário, ali no chiqueiro, não tem o que comer e o que beber não?
                — Que bode, meu senhor? A última peça do rebanho de caprinos que a gente tinha nós comemos, um velho pai-de-chiqueiro de carne dura que nem pau ferro, há dias!
                Agradeço a hospitalidade do sertanejo, baixo a cabeça, sigo em frente e por outra vereda, para não passar em frente ao aprisco das cabras. Será que além de velho e caduco estou tresvariando assim, para ver um bode velho que já morreu, na porteira de um curral!
Evito olhar até para os troncos das árvores, pois tenho a impressão de que tudo berra!
— Béeeeeeee! — Béeeeeeee!


Raimundo Cândido

domingo, 11 de agosto de 2013

Goela



Aorta pletórica do sertão!
Touro indomável
escramuçando ao vento,
arrastando assombros, 
receios e medos
e mesmo assim 
mergulhávamos
na efervescência 
das águas revoltas
e o sedoso vento 
em nossos rostos
avivava a adrenalina 
na alma infantil
que subjugava 
um selvagem potro,
 sem crinas!
Ainda fluímos,
a pique, por entre
as pedras liquefeitas
de uma triste Goela 
cordialmente estagnada, 
nas locas do tempo!

Raimundo Cândido