terça-feira, 2 de maio de 2017

Umburaninha – A serra dos bodes.




O portal para a Serra da Umburaninha fica na altura do Riacho do Mato, depois de percorrer 20 km no asfalto, pela BR 404, entrei numa estradinha carroçável que penetra no miolo da maior mata de sabiá que eu já vi, até chegar à localidade Saco do Punga. O sabiazal do Purga vai se acabar, e rapidinho, pois observamos montes e montes de estacas, de um lado e do outro da estrada, como se a Caatinga fosse uma grande produtora de madeira.  Os rebanhos de bodes atrapalhavam a passagem e não foi só um não, foram diversos fatos, vistos ao longo do caminho. Grupos de 300 caprinos enchiam os olhos. E haja bode!
O guia, Clementino de botas, já me esperava na casa do pai dele, o Senhor João de Botas, no Punga. Mochila nas costas, com água, um punhado de sal, barrinhas de doces e a máquina fotográfica à mão, partimos rumo a mais um morro dos Sertões de Cratheús. E foram muitos: Picôte, Mambira, Furna 47, Buritizinho,Tiririca... Agora era a vez da Serra da Umburaninha ser escalada pelo Ribeira do Poti, um aventureiro de fim de semana.
Já começou difícil, a subida: a mata muito fechada pela invernada boa e o morro íngreme, todo revestido de pedras soltas, representando perigo de se rolar serra abaixo, junto com os blocos, além de não se ver onde pisava, pois o pega-pega, o quebra-faca entrelaçado, a urtiga, o carrapicho, o mato rasteiro encobria tudo e podíamos atropelar uma cobra, de uma hora para outra. Às vezes me agarrava no tronco de angico ou de mororó para não descer mesmo. Bem, eu confesso, a maior dificuldade não foi essa, foi ter que acompanhar o guia Clementino de Botas, acostumado a subir, quase todos os dias, o morro atrás de bodes. Ele escalava muito rápido para meu pulmão alquebrado e minha destreinada resistência, pelo sedentarismo de semanas inteiras sem fazer exercícios. O guia subia a áspera rampa com tal desempenho, que mais parecia um bode!
A visão que se tem do topo da Serra da Umburanhinha é deslumbrante. Dos mirantes pétreos apreciávamos o imenso tapete verde do sertão apatacado, aqui e acola, pelo brilho metálico de um açude. Umburarinha é cercado de outros montes, mas não impede a visão panorâmica de toda aquela região, de lá das alturas: Poço da Pedra, Várzea da Palha, Curral do Meio, Palmares, Simião, Curral Velho e chega-se a avistar, bem ao longe, no zoom da Nikon, a cidade de Cratheús .
A região é propicia para a criação de bodes. Nas pedras altas a gente vê as marcas redondinhas que eles vão deixando.  E sobem a serra como se caminhassem no plano, se fartam da verdura abundante, inclusive da rama do mororó e, à tardinha, descem sozinhos, para seus respectivos apriscos, na base da serra. Os bodes de outras regiões mais afastadas, às vezes, atraídos pela visão atrativa do Umburaninha, chegam até lá. Sobem e não descem mais. Ficam selvagens.  - Esses, contou-me o guia Clementino, a gente pega é a cachorro e no laço. Pronto. Quis saber logo da história de se pegar bode no laço e em cima da serra.
- Na semana passada, Seu Ribeira, notamos que tinha um bode selvagem aqui em cima. Era do Senhor Valmir Leitão, do Riacho do Mato, na beira da pista. Primeiro a gente descobriu a pedra onde ele ficava, para dormir e, no outro dia, subimos com os cachorros. Cachorro de bode é muito treinado, Seu Ribeira. Ele não morde a criação, só faz correr atrás e acuar em cima das pedras. Mas existem cachorros viciados em pegar bode, esses não prestam não. Eu já vi inimizade grande entre vizinhos, por causa de um cachorro assim. Quando os nossos cachorros pegaram a pista do bode, no faro, partiram feito uns doidos, só se ouvia o estalar dos galhos secos. Acompanhamos na mesma pisada, subindo rápido, senão o bode escapava e ficava mais selvagem ainda. Pelos latidos e pela berraria chegamos ao enorme bloco de pedra onde ele subiu para se proteger. Estava assustado, com os olhos arregalados no rumo dos cachorros, que não paravam de latir. É nesta hora que a gente tem que ser preciso, não pode errar no laço, que ele já está na indecisão do pula num pula, para fugir novamente. É até mais difícil do que laçar um boi no curral, pois não podemos fazer o giro para dá o rumo certo. Aqui, em cima da serra, com árvores e muitos galhos, é fazer pontaria e jogar o laço no pescoço do bicho.
À medida que contava a história da pega do bode, o guia Clementino não parava de caminhar e não quebrava um pau sequer a sua frente, abaixava-se, desviava-se dos galhos espinhentos, caminhava pisando na ponta das pedras e eu o seguindo atrás, ouvindo a saborosa narração e fazendo as mesmas estripulias para não ser rasgado pelos espinhos ou não deslizar das pedras. Perguntei: - E aí, Clementino, errou o laço e o bode fugiu, foi?  Ele parou, olhou para trás e afirmou, muito sério:
- Nunca errei a laçada de um bode, ou de uma cabra aqui em cima, Seu Ribeira! E o bode que fica selvagem uma vez não tem mais jeito não, tem que ir para o abate.
Tem um confrade da Academia de Letras que sempre me insulta: - Tu estás é virando bode, Oh Raimundo. Só vive atrepado nos morros e nas pedras, qualquer dia chega aqui na ALC é berrando!
Descíamos caminhado pela encosta abrupta, vendo o precipício como que a nos puxar lá para baixo, como fazem os caprinos, sem um pingo de medo de estar no topo da famosa Umburaninha, a serra dos bodes.
Seu João já nos esperava no Saco do Punga com um café bem quentinho. Despedi-me da família De Botas, peguei a estrada pelo que ainda resta do sabiazal do Punga e, inconscientemente, como aqueles refrãos de música que não saem de nossa cabeça, enquanto dirigia ia ouvindo um bordão característico: - Béeee.... - Béeee.... - Béeee....  Olhei em volta e não vi um bode sequer, ali por perto... Então, fiquei meio preocupado...  Será?         

Raimundo Cândido.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

BELCHIOR


           Notícias há que nos abalam as colunas d’alma, fazem lacrimejar os olhos do coração, emudecem os lábios do espírito...
          A partida de Belchior foi uma delas. Melhor: Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes. Ou, como ele, sorridente, gostava de dizer: o maior nome da Música Popular Brasileira. Brincadeiras à parte, trata-se realmente do mais alado e elevado letrista germinado no Brasil dos últimos cinquenta anos.
          Como Robert Allen Zimmerman, o Bob Dylan, ele inseriu nas partituras da MPB um idioma diferenciado, com novos contornos de expressão poética.
          O seu amigo e contemporâneo Guilherme Arantes bem pontuou: “Belchior, que eu não canso de homenagear de todas as maneiras, foi e sempre será o melhor letrista de canções transformadoras que já existiu. Uma mente privilegiada em cultura e de talento cortante e visceral”.
          Porém, não era apenas a sua inventividade apocalíptica, a floração de versos com mensagens revolucionárias, que me impressionava. Era, sobretudo, sua capoeira de sensibilidade, sua profunda ternura para com a singeleza, sua paixão para revestir com charme e elegância as situações mais simples. Em seu primeiro grande sucesso, Mucuripe, ele já sinalizava essa capacidade extraordinária ao revelar que, mirando o paletó de linho branco, via, antes, a flor do algodão: “Calça nova de riscado, paletó de linho branco, que até o mês passado, lá no campo ainda era flor” ...
         O ex-seminarista, que também perambulou no campus da Faculdade de Medicina e, depois, divagou pelos pátios da Filosofia, carregava no mais íntimo de si mesmo aquela inquietude particular dos reitores do espírito, dos enamorados da sabedoria, dos garimpeiros de asas, dos mineradores de sonhos.
          Era temerário, assaz temerário imaginarmos que ele seguisse a saga dos iguais, o roteiro dos comuns, a trilha dos mortais. Eis o óbvio: um homem que imaginava serem seus os braços que se abrem no Corcovado jamais se quedaria conformado às injustiças mundanas, à engrenagem perversa desse mecanismo inexplicável do massacre de uma alma humana por outra humana alma. A barbárie das relações, o embrutecimento do cotidiano, o império da força feriram profundamente a camada mais sensível da sua pele poética. Com efeito, ‘mais angustiado que um goleiro na hora do gol’, ele constatou que ‘veio o tempo negro e, à força’, fez com ele ‘o mal que a força sempre faz’.
          Mesmo assim, resolveu ‘viver a Divina Comédia Humana, onde nada é eterno’. Para os que diziam que estava vendo estrelas, ou que perdera o senso, resolveu afirmar que ‘enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto’.
           E o menino – ‘alegre como um rio, um bicho, um bando de pardais’, que ‘adoçava o pranto no bagaço de cana do engenho’, criado entre ‘galos, noites e quintais’ - resolveu nos falar não das coisas que aprendeu nos discos, mas de como viveu e tudo o que lhe aconteceu. Desiludido com os ídolos, que ainda são os mesmos, desenganado com as aparências, que não enganam mais, proclamou que ‘viver é melhor que sonhar’ e confessou sua profunda dor: ‘saber que, apesar de termos feito tudo, tudo, tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais’.
          Certamente, por tudo isso é que Belchior escolheu os últimos outubros de sua caminhada terrestre para viver como havia iniciado seus passos da juventude: enclausurado. Na aurora da vida, pensava em se entregar à clausura teológica; no crepúsculo, à clausura filosófica. Em ambas pedras pensativas se destacava o mesmo diamante, a mesma fulgurância verdadeira: o mineral da complicação, a esmeralda labiríntica, o magnetismo do surreal!
        Como Franz Kafka, o maior escritor Tcheco, que só recebeu a coroa da glória após a morte, Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes foi batizado para viver a sina do sucesso póstumo.
          No nosso cancioneiro alguns reis magos da composição conseguiram a façanha de nos presentear com melodias bonitas, nas quais reluzem o ouro da filosofia, o incenso da profundidade e a mirra da reflexão. São profetas que nos apontam a estrela de um outro Reino. Suas músicas se incorporaram às partituras do nosso platô mais altruísta. Da clausura, a luz de Belchior ilumina todos eles.
Júnior Bonfim, poeta e advogado.