quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Pinguins de Geladeira



Um dia, Florbela d'Alma da Conceição Espanca, uma inquieta portuguesa sonhou: “Sonho que sou a Poetisa eleita,/ Aquela que diz tudo e tudo sabe, /Que tem a inspiração pura e perfeita...” e, daí, outras sábias literatas devanearam... As Coras, as Adélia, as Cecílias e as Clarices se poetizaram no ar! Também por aqui, no sertão crateuense, aconteceu esse mágico arrebatamento na alma feminina resplandecendo em arroubos poéticos e as nossas pretensas poetisas foram surgindo como borboletas nas flores. Um dia, a mais esplendida delas me apareceu, como do nada, voando com suas asas ritmadas compondo odes sonoras dentro das minhas noites insones e recitando hinos reluzentes nos meus cansados dias, de tal forma que pairei, sem saber voar. Atoleimado, de tanta admiração com seu esvoaçar poético, confundi-a com uma plumosa Primavera, gerando, assim, seu oportuno codinome.
 Ao ler um floreio lírico da minha poetisa eleita: “Hoje não nasceu / flor alguma / de minha inverossímil / metafísica. / A poesia está toda / fora de mim. / Nos Pássaros” entusiasmei-me e, levado por uma forte admiração, sugeri que ela poderia fazer parte do quadro da Academia de Letras de Cratheús. A resposta, imediata, chegou-me e em versos: “Efetivamente este poema não serve aos fins do mercado, realizar dividendos. Nem mesmo trocá-lo por um decassílabo no escambo poético. Fruto natural da inútil árvore da poesia, não vale um pão com água e palito, - Que dirá um chá na ALC! Com muita sorte não se juntará à família dos pinguins de geladeira, mas ao móbile de pássaros da prosa de uma criança. Com muita sorte esse poema não morre!”  
Demorei a perceber a aguda sutileza, mas entendi! O Pinguim era eu e mais alguns companheiros que fazem parte daquela agremiação literária! Fiquei a matutar na minha atual família dos Pinguins de Geladeira.
Os pinguins, com plumagens lisas e gordurosas, não voam, andam desajeitadamente pelo chão num misterioso balanço que mais parecem bêbados. Dão-se muito bem na água, nadando com os peixes ou se postam em cima das geladeiras, em pieguice brega e cafona, exibidos em risível inutilidade. São atrofiados em asas, no canto e no fazer poético!
A ALC é meu bloco de gelo, mas deixo toda petulância de querer ser o que não sou, de querer ser poeta ou escritor e desço da minha torre de marfim. Concordo com a poetisa Primavera, não passo de um pinguim vulgar no topo de uma geladeira e não chego nem a poetastro!
Então, caro leitor/testemunha desta assumida aceitação pinguinácea, deixe lhe apresentar os meus companheiros e companheiras pinguins que compõem a já carcomida Academia de Letras de Cratheús. Podem até pensar que estou jogando titica num ventilador literário, mas é uma forma de assumir mea culpa, mea maxima culpa por conhecer, e muito bem, o grupo de “inoxidáveis” acadêmicos pinguins, os imortais da ALC.
Aquele Templo Ecumênico, em quase nove anos de existência, está longe de cumprir os verbos promover, incentivar, propagar, estimular e realizar por onde começa o seu belo estatuto. A ALC está mais para exibir-se como um pavão, como uma geladeira repleta de pinguins. Em seu quadro efetivo há pinguins para todos os gostos e pouquíssimos para as atividades literárias.
Há os pinguins dinossauros, pinguins reais que se acham a última cocada preta e que vivem na terra do nunca pensando que escrevem, com pena de ouro, toda a prepotência e orgulho de uma raça. Às vezes se mostram gananciosos e matreiros, mas não passam de velhos pinguins de geladeira!
Há os pinguins escrevinhadores e, por nunca lerem um livro sequer, redigem muito mal, a preguiça de escrever os consumiu, mas se exibem, também, no topo da geladeira da ALC.
Há os pinguins que mergulharam nas águas gelada do submundo literário e sumiram, ficaram invisíveis e também pavoneia por aí, como aves marinhas sem cantar e sem voar.
Há pinguins que só vivem para as atividades político-partidárias, alguns de irresponsabilíssima extrema direita gladiando-se ferozmente com outros que adormeceram nas fronteiras de um socialismo utópico, nada útil para uma literatura de iniciantes. Pinguins que caxingam por territórios quiméricos, capengam como os guerreiros glaciais! 
Existem os pinguins que nem pinguins parecem! São pseudopinguins que estão lá como estranhos enfeites, penduricalhos na porta do congelador. Não voam, não nadam, não andam, não grulham em voz rouca e são incapazes de escrever uma vírgula sequer, embora possuam belos textos e livros publicados. Esses letristas sem letras são uns mágicos pinguins! Acho que sempre pedem ajuda aos pinguins universitários!
O refrigerador da ALC é um ancoradouro de pinguins católicos, protestantes, agnósticos, ateus, alegres, tristes, ditos poetas, declarados cordelistas, proferidos escribas, mas todos em altíssimos débitos com os verbos promover, incentivar, propagar, estimular e realizar por meio da ALC a singeleza do verbo, o fascínio da cultura ou a liberdade da palavra.
E, antes que a nova Era Glacial congele meu coração de pinguim, aceito o convite da poetisa Primavera. Vou tentar aprender a voejar, versejar, grafar, redigir mesmo com minhas asas atrofiadas e o andar capenga de bêbado. Conduzido pela Primavera, a mais intrépida poetisa do sertão, ainda deixarei de ser um simples Pinguim de Geladeira. Hasta la vista, ALC!

Raimundo Cândido

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Oton - O Afiador de facas




Na altura do Nº 1737 da animadíssima Rua Frei Vidal da Penha, cidade de Cratheús, mora uma lenda e se chama Oton de Melo Nunes, o afiador de facas.  Lenda é a encarnação de uma história fora do comum.  Oton, como uma árvore pertinaz, nunca se encurvou ao aço, ao fogo, às explosões fortuitas ou a dura luta pela sobrevivência e, hoje, apesar dos estorvos que aparecem no caminho, não se entrega ao tempo inclemente, mesmo se envergando pela idade.  Quem por ali passa, presencia um cidadão de 85 anos, alto, magro, sofrido, mas não abatido, persistir no trabalho duro sentado numa cadeira, com as facas por amolar em cima de uma mesinha baixa, na calçada de sua residência. Na pedra, já com a face bem escavada, as facas dos açougues da cidade, e das donas de casa, são afiadas com uma prática aperfeiçoada e que já virou foi arte. Puxa duas vezes o fio da lâmina, num ângulo de 30°, inverte a face e depois empurra duas vezes, sempre embebendo o local com água.  Conhece quando está tudo no gume certo e só no olhar. Uma pena que a tradição de amolador de faca, passando de pai para filho, esteja chegando ao fim. Observado ali, aquele espetáculo de amolar peixeiras, imagino como a vida do cidadão Oton Nunes foi afiada pelo tempo, pelas tantas abrasividades que a vida lhe fez enfrentar.
Um dia, seu pai Agileu resolveu cavar um cacimbão no quintal de casa, com ajuda de Oton e Zé Pagão.  Já haviam dinamitado umas pedras e nos 7 metros de profundidade necessitou de mais duas dinamites. Após Cobrir a boca do cacimbão com tabuas de madeiras, acenderam o pavio. O fogo desceu rápido no fio do estopim e eles ficaram, de longe, aguardando o bruuuummm da explosão. Nada. Pensaram que o fogo na corda havia se apagado. Seu Agileu resolveu descer na escada que ficara dependurada. Oton toma a frente e diz: - Não pai! Quem vai sou eu! E desceu. Quando chegou pertinho percebeu que o estopim ainda queimava e faltava uns 20 cm para chegar às dinamites. Não dava tempo subir, então se dependura entre a escada e a parede, imaginando: “Agora eu morri!”. A explosão jogou pedras e muita poeira no ar. A mãe, Dona Mosinha, se desesperou: - Oh meu Deus, o meu filho morreu! Nem bem sentou a poeira, Oton surge na boca do cacimbão, todo empoeirado, sem nenhum arranhão e dizendo: - Pensei que ia sair daqui só o bagaço!
Ajudava o pai, todo santo dia, no açougue dentro do Mercado Central. Às vezes ia ao curral do açougue matar gado e era bom nisso. Sabia como enfiar o trinchete afiado para cortar o tendão do cabelouro e o animal caía ali mesmo.  Oton e seu amigo Elias Vieira formavam uma dupla inseparável, como carne e unha, eram os reis da vadiação na Rua Frei Vidal. Qualquer malfeito que aparecia por lá, logo afirmavam: “Ou foi o filho do Seu Agileu ou o filho da Donana Vieira.” 
Certa vez foram matar uma rés no Polo Agrícola do Junco e pediram a espingarda socadeira do Sr. Raimundo Cândido emprestada.  Colocaram chumbo grosso, pólvora e espoleta . Oton acertou o tiro bem no meio da testa do animal que caiu de “cu trancado”, com eles dizem. Vendo as aves de arribação, que revoavam aos bandos por ali, revolvem recarregar a espingarda, mas encontram um cachorro doido pelo caminho. Elias segura a espingarda pelo cano para espantar o cão quando a arma, acidentalmente, dispara. Os dois ficam feridos e Oton leva uma descarga de 32 chumbos pelo corpo. Guarda como lembrança desta tragédia dois caroços de chumbo num dos pulmões e outro encostado na aorta, bem perto do coração.
Existem pessoas que possuem magnetismo para atrair acontecimentos infelizes no seu caminho e Oton, com certeza, é um destes felizardos.  Sua biografia está repleta de fatos marcantes. Haviam matado seu irmão Airton, numa briga fútil de mesa de bar. Não faltou quem fosse avisar ao seu Agileu que Moésio, o algoz de seu filho, estava na barbearia do Sr. Luiz Freire, ali perto. A família Nunes viu a oportunidade de perpetrar uma vingança. Ao chegarem à barbearia são recebidos na bala e o Oton se joga no chão para se desviar dos tiros, mas o irmão de Moesio, inesperadamente,  sai de trás de uma porta e desfecha 8 golpes de faca nas costas do Oton.  Por sorte o avião do governador do Estado, Parcifal Barroso, estava por estas bandas e o levou para Fortaleza, escapando mais uma vez da morte, mesmo tendo perdido muito sangue.
Há de se pensar que a existência do nosso personagem foi só de sofrimento e reveses. Mas não, ele era um bon vivan, trabalhava muito, mas fez o que quis e como quis, não perdia uma chance de fazer troças e gozar da vida. Bares, cervejas, mulheres e baralhos rechearam seus dias de alegria. Por ser um espirito brincalhão e inteligente estava sempre acompanhado de amigos e curiosos para ouvi-lo contar causos, fazer gestos debochados e demonstrar sua memoria prodigiosa ao recitar a carta–testamento de Getúlio Vargas, deixando os frequentadores das bodegas do João e do Valmir de boca aberta: “Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam; e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz ...” Tinha intimidade com todos os baralhos que surgia por ali, conhecia-os pelas costa.  E, com certeza , o  que mais gostava era de frequentar os cabarés da cidade na companhia do amigo Elias Vieira. Uma das mulheres, a Bacana, ele sempre trazia para a sua república e era quando tudo se acalmava por uns dias. Por pouco tempo, alias!
A temporada de tranquilidade só era quebrada quando o estranho poder de atrair fatalidades se ativava. No bar do Valmir resolvem preparar um tira-gosto num prato de balança, usando álcool como combustível para o fogo. Era só o que a fatalidade queria: um magote de bêbados, um vidro de álcool e fogo: mais uma explosão! O Vidro estoura no corpo do Oton que vira uma tocha humana. Queimaduras de 3° grau fazem com que a pele das mãos saísse como luvas. Passou 20 dias internado na policlínica do Dr. Olavo, sendo cuidado pelo afamado enfermeiro Binha.
O levado Oton continua firme na Rua Frei Vidal da Penha, amolando suas facas e relembrando um passado nada comum para um simples mortal e o estranho magnetismo vai perdendo seu poder de atrair fatos marcantes. O filho do Sr. Agileu foi, duramente, amolado pela vida e foi, incisivamente, afiado pelo tempo que lhe aprimorou a existência longa. Sim, a lenda Oton, da Rua Frei Vidal, nunca se envergou a nada, porque uma lenda é a encarnação de uma história fora do comum. A incomum vida de Oton Melo Nunes, o afiador de facas!

Raimundo Cândido

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

É Preciso a Poesia.


                                                              (Moises Pimentel)

Sou poeta sim, pois não?
Você também, meu irmão
Que chora por benquerer
Ama sem nunca entender
É o coração que é demais!

Eu digo que sou poeta
Outros me dizem pateta
Por sentir, ter emoção
Por chorar sem ter razão
Por ver que beleza existe
Onde todos veem o triste

As dores do coração
Exigem uma expressão
Ter alguém que lhe conheça
Um doido que as reconheça
E delas extraia beleza
Um poeta, com certeza

Tenha coragem, meu irmão
Assuma que o ser humano
Sem poesia é sem sal
O sonho não vira real
Sem que o poeta o expima
Num belo verso, na rima.

O poeta Moises Pimentel, casado com a crateuense Fátima, é genro de dona Mazé, matriarca do Clã dos Pintos, que dia 31/10/2018 estará completando 104 anos.

sexta-feira, 6 de julho de 2018

Casa de vó, fogão de lenha


              Num canto já enegrecido da acolhedora cozinha, o fogão de lenha era estrela. A impressão era a de que o dia só começava mesmo depois que minha avó empurrava-lhe alguns paus de lenha seca boca adentro, fazia um amontoado de gravetos embebidos em querosene e... zás! em pouco tempo o fogo surgia, enchendo, num primeiro momento, a cozinha com toda aquela fumaça, depois a casa inteira de vida. Alimento é vida.
             Não demoraria muito, sob o vigor do abano de palha, as chamas, bailando em cores vibrantes e calor intenso virariam brasas. Ainda podia se ver por algum tempo a fumaça, agora mais dissimulada. Permanecia por ali apenas denunciada pelas brechas do telhado que deixavam passar pontos de luz do sol. Vindas do teto em direção ao chão, as frestas de sol se acinzentavam, um sinal claro do respirar das chamas.
             Fogo feito, lenha estalando, chapa quente, hora das panelas. Buscava dentre aquelas emborcadas sobre o girau do lado de fora da janela. Fosse dia de galinha, escolheria a maior. O ritual era o mesmo, no fundo uma demão de cinza de borralho misturada a sabão. Vovó dizia que assim elas não empretejavam quando em contato com o fogo. Sabedoria popular. Pra mim, uma criança de pouco mais de oito anos, uma mágica.
              Eram panelas vividas, assenhoradas, cheias de cicatrizes, tampas tortas, mas incrivelmente brilhantes, areadas à exaustão. Sinal de zelo. Mesmo na simplicidade, toda dona de casa que se prezasse tinha sua bateria de panelas impecável e um conjunto de copos de alumínio enfileirados no banco de potes à espera das visitas. O de “aseia” era sempre o que tibungava em busca da água fresquinha que o pote abrigava. Mas esta é outra história.
             Tudo pronto... hora do velho fogão de lenha trabalhar. O alho pisado com a pimenta do reino, a verdura fresquinha colhida Do canteiro que se avistava no terreiro, o borbulhar do torresmo pururucando na gordura, o feijão na primeira água de cozimento, o ovo estralando na frigideira, o café coado no saco de pano, o leite que fervia e formava um véu ao transbordar, a pipoca do milho-gordura colhido na última safra, o mingau de puba... tantos cheiros, tantos sabores, fosse o que fosse, tudo convidativo, inebriante, feito ali, sob as rústicas “trempes” do fogão. Sabores nobres, sabores de casa da avó.
               Comida feita, bocas saciadas, todos descansam e o fogão também. Lá fora, no alpendre, uma rodada de café. O ruge-ruge se mudou pra lá. A cozinha, enfim, celebra a solidão. Não se ouve passos, tilintar de pratos, bater de colheres, vozes altas intercaladas com o mastigar prazeroso do almoço. Todos se foram deixando apenas o cheiro encorpado do café. Nenhum sinal de vida ou quase isso. Sob o fogão de lenha já limpinho, asseado, ronrona o bichano da casa à procura de um lugar quentinho. Assim finda o labor da estrela da cozinha, das chamas ao chamego.
              Li, certa vez, um texto de Rubem Alves que dizia: “O fogão de lenha é lugar de saudade. Porque os fogões de lenha, eles mesmos, são fantasmas de um mundo que não mais existe.” Verdade. Infelizmente, verdade.
              Para minha vovó, de quem guardo lembranças, uma delas, a que escrevi agora.
                Lidiana Imani
(Escritora  crateuense, Professora de Português do Colégio Vitória)

domingo, 1 de julho de 2018

Novo Oriente de Vida e de Morte.



(Na garganta o grito ensanguentado, / no corpo / as janelas da tragédia /
                                                 escancaradas para soltar a vida.)   Juarez Leitão                                 
                                                                                                                                                                                                                                                                       
           O povoado que brota como uma semente, que cresce e se desenvolve à medida que as pessoas vão chegando, quando cidade, sofre do estigma das sociedades incivilizadas.  A Lagoa do Tigre foi o gérmen primordial da cidade de Novo Oriente. O grande lago perdido no meio da mata, encontrado por vaqueiros que seguiam rastros de erados marruás, era dominado por uma incivil onça pintada da pata quebrada, diz uma lenda.  A urbanidade que desabrochou por ali foi o embrião da cidade conhecida como a terra do feijão e do milho.  
O vale, ao lado da Lagoa, pertencia ao donatário Rodrigo Alves da Silva, o Capitão Rodrigues, que doou um pedaço de terra para que se construísse a Capela de São Francisco. O Pe. Afonso Gouveia veio de Pelo Sinal, hoje Independência, para celebrar a primeira missa e também para catequisar a disposição ferina que aflorava por aquelas margens. O pároco achou aquele pé de serra muito parecido com o Oriente Médio e o rebatizou de Novo Oriente, que progrediu pela pecuária e pela agricultura de terra fértil.    
No Distrito de Emaús, sopé da Serra da Ibiapaba, fica o povoado de Bom Jardim. Ali, como na velha carta de confirmação a Dom Manoel, em se plantando tudo dá! As safras de milho e feijão batem recorde em cada boa quadra invernosa. Às vezes, nos baixios, bem no miolo de uma vazante de capim, encontramos umas moitinhas de folhas alongadas chamada de erva, a famosa cannabis sativa que ajuda na renda dos pequenos agricultores.  E, mesmo numa terra fértil, a luta daquele povo sempre foi dura, tentando sobreviver!
No final da década de 50, nas terras do Sr. Clarindo Lúcio, em Bom Jardim, além do milho e do feijão, havia o cultivo do fumo. Era uma pequena roça de tabaco, com as folhas verdinhas e ovais, para produzir fumo de rolo.  Na calçada alta da casa da fazenda, ele ficava tecendo as folhas amadurecidas, e já destaladas, para fazer as grosas cordas enroladas numa estaca, que tinha que ser revirada constantemente para que a negra calda se espalhasse por todo rolo do fumo. Da calçada eles viam a pedra onde o facínora Aristides Rosal caiu com um tiro no peito, depois de uma histórica emboscada. Nas conversas Clarindo afirmava: —Lembro-me como se fosse hoje daquele sábado, era o inverno do mês de Maio de 1939, quando atocaiaram o Rosal. Lá na frente, depois daquela pedra, tinha um canto de cerca, coberto de um mato verde, onde o tocaieiro ficou por três dias e três noites, amoitado, só esperando, pois o cangaceiro tinha que passar por aqui. O tiro foi certeiro, atravessou o peito do infeliz e a bala veio ricochetear aqui na minha parede. Dizem que foi o caboclo Cambirimba quem fez o serviço, mas não foi. Eu sei que foi o negro Abel, o mais certeiro pistoleiro do Padre da Varzinha. Teve gente que o viu pegando água numa cacimba, por isso eu afirmo que foi ele. E constata o que todos já sabiam: “Nosso pé de serra é muito violento!”
Tarde da noite, com ajuda do filho Toinho que segurava uma lamparina, retirava as folhas de fumo que estavam estendidas numa cerca quando ouviu os gritos de um homem que caminhava apressado, vindo do lado de Novo Oriente: — Matam o João Belo! — Matam o João Belo! Foi o Raimundo Aurélio com uma facada e à traição, numa mesa de jogo, lá no Mercado Velho! E o mensageiro seguiu rumo à fazenda Barro Vermelho, para avisar que tinham assassinado o patrão deles.
Clarindo chama a esposa e seguem para Novo Oriente, agora na categoria de cidade, para o velório do amigo João. À medida que caminha o grupo vai aumentando, pois o falecido era estimado por todos naquela região. E confabulam sobre as causas, os motivos de tal tragédia. Clarindo falava dos que já haviam tombado dentro do Mercado: - Lá, mataram o Mimoso. Mataram o Moreira cujo rifle estava quente de tanto atirar na polícia. O José Preto, o Leonel e o Antônio Medeiros também tombaram lá dentro e é só olhar os quatro portões, estão todos furados de bala. E agora foi meu amigo João Belo! Alguém pergunta: — É verdade que ele vinha sofrendo ameaças de morte? Clarindo responde: - É verdade sim! Ele foi jurado de morte e foi até Fortaleza pedir proteção ao secretário de polícia.
Percorrerem, a pé, duas léguas e, por fim, chegam a Novo Oriente. Mesmo na madrugada, a casa de João Belo já estava apinhada de gente, até nos altos batentes da calçada do Mercado, bem em frente do velório.  Em cada grupinho uma parte da vida do finado era relembrada, alguns levavam para o lado político: - O João, como chefe político e coletor da região, fez muitos inimigos e, como a UDN do Virgílio Távora foi derrotada, ele tinha que ter tomado mais cuidado. Outro se indignava: - Como é que pode! Desligaram, propositalmente, o motor da luz e a polícia ajudou segurando o João para que o Raimundo Aurélio o esfaqueasse. Atento ao jogo de baralho nem notou a trama, a primeira facada foi nas costas e a da barriga fez o intestino dele cair. O covarde do assassino ainda voltou para dá uma última facada na garganta. Quem diria que o irmão do St. Hermínio, um herói nacional, fosse tão covarde assim!
Clarindo se achegava mais, para ouvir os comentários. Uma pessoa alertava, querendo asseverar a causa do homicídio: — A Maria Luiza, filha do Abdias Ximenes, tinha uma inimizade com ele, e o Raimundo é cunhado dela! E outro lembra: — Ele tinha feito um acordo com os Clarindos, o Zé Clarindo será o nosso primeiro prefeito eleito e ele seria o segundo, mas com essas juras de morte já estava preparando sua mudança para Cratheús.
E não faltou quem se apiedasse do momento mais triste: — Quando levaram o João Belo pra casa, ele tentou falar e o filho pequeno viu quando espirou foi sangue no lugar da voz. Até a dona Maria, sua esposa, foi alertada que nunca se deve deixar a rede de alguém armada enquanto este sai para jogar!
O menino, que viu o pai nos estertores da morte, era o grande escritor Juarez Leitão, que tempos depois transformou a dolorida visão em versos: “E me lembro de ti, / cavaleiro de fêmeas e de anseios, / nas noites e nos dias da saudade / que me guardam menino espantado. / O espanto / de teus olhos me agarrando com súplica / e acenando molhados, / Na garganta o grito ensanguentado, / no corpo / as janelas da tragédia / escancaradas para soltar a vida. / E tua vida era rubra. / Eu vi.”
Na terra do feijão e do milho onde reina a vida e a morte, de vez em quando, ainda sobressai um medo que se espalha pelas ruas do Mercado Central como um silencioso esturro da onça pintada da pata quebrada da Lagoa do Tigre. É quanto tudo escurece e só se vê o povo fechando as portas das casas, pelo temor de outra feroz incivilidade de algum homem/tigre da região.
Raimundo Cândido