terça-feira, 30 de setembro de 2014

O Poeta Alucinado

                                                 
                A poesia brune e luz o enigmático amor e, inapropriadamente, instiga um desapego na alma do versejador. A poesia altiva e clareia a lucidez e, inexplicavelmente, salienta insensatez no espírito do incauto obreiro das inspirações. Acredite, às vezes, os poetas alucinam. É quando perdem as ilusões e se afogam nas arriscadas correntezas da realidade. Ser poeta é perigoso! Creia-me!
                Há um limite de tênues sinais na área da insana sanidade do porão da linguagem. É lá onde a dubiedade, das emoções e dos sentimentos, embriaga a alma. Entende? Quem corre atrás do vento compreende. Os poetas! Eles sabem que o redemoinho das palavras sempre os engole, arrasta-os para o reino da solidão, para um deserto densamente povoado.  Os poetas só não percebem quando seus pés estão se afundando, lentamente, nos pesadelos da realidade, na irreflexão. Efeito da narcose do limo que escorre das palavras. A pele da alma sangra, um fogo jorra da rubra íris a distribuir estrelas luminosas por aí... Pelas intransitáveis esquinas. Tudo decorrente da árdua luta com as palavras. Um exército de Lexemas secos, de vocábulos pegajosos, de palavras enigmáticas e escorregadias que nunca param de inquerir a volúvel senha do baú das sintaxes: - Trouxestes a “Chave”?
É um aceso sinal quando as marcas do tempo sulcam o rosto de um grande vate e este fica impossibilitado de se contemplar, até no brilho metálico do espelho. Foi o que aconteceu com o grande poeta alemão Friedrich Hölderlin, ele caiu, quase por opção, no labiríntico porão das palavras e transcendeu, ficando sem coragem de olhar a sua imagem na superfície refletora, o lugar sem lugar. Preferiu tornar-se uma demente árvore, nas bordas de uma floresta: “Ai de mim! Onde vou ver / flores no inverno, e onde / o brilho do Sol, / e sombras da Terra? / Os muros estão postos / mudos e frios, ao vento / tilintam as flâmulas.”
De tanta ficção macabra, histórias sinistras, poemas perturbadores e de uma paixão irrefreável por bebidas fortes, Edgard Allan Poe enlouqueceu! E ao ser chamado de louco redarguiu: — “Doido, eu? Resta saber se a loucura não representa, talvez, a forma mais elevada de inteligência." Poe, desde menino, tinha medo do escuro e, na sua derradeira coma alcoólica, já hospitalizado, pedia aos médicos que explodissem seu cérebro: — Senhor, socorra a minha pobre alma! Na certa se lembrava de um corvo a lhe responder: — Neve more.
Sim, amigo, os poetas, às vezes, perdem o siso, arruínam as faculdades, ficam privados do juízo. Mas não é motivo para ter pena deles. É o resultado de uma busca inesgotável de sentidos. Pagam o preço!
Está pagando o preço o senhor Mario Gomes, perambulando pelas ruas de Fortaleza, como um mendigo sem dono, um cão pulguento abandonado para morrer no meio da rua. Na realidade é um grande poeta, um andarilho por opção caminhando nos desertos da cidade, na sua solidão povoada. Uma fotógrafa vendo a figura ímpar e assombrosa de Mario na mesa de um bar, clica-o e manda a foto para um concurso cultural na revista National Geographic, além de premiada, chama atenção para demência de um Poeta Alucinado, que nos diz: - Não estou abandonado. Abandonei o vício de viver obedientemente a esta sociedade. E completa, poeticamente: — Eu, pela manhã, como lagartas e, no crepúsculo, defeco borboletas.
O fundador da Academia de Letras de Crateús, poeta Júnior Bonfim, ainda bem lúcido em sua verve poética, a definiu assim: É um Templo Ecumênico para quem cultua a liberdade da palavra. Recebemos, diariamente, como numa igreja, a visita de escritores, poetas e admiradores da nossa cultura. Um dia, subitamente, como aparição espontânea, surge por aqui um grande poeta, tal qual um beija-flor atraído pelo pólen do Templo da Poesia. O poeta crateuense Zezinho retornava à terra natal depois de 64 anos perambulando pelo mundo a distribuir estrelas com a rubra íris de versejador. Todas as quintas-feiras, ele chegava bem cedo, com uma arroxeada flor na mão, para homenagear a ALC. Recitava seus versos maravilhosos sobre a natureza, sobre amor e sobre a fé. Pediu até que mandássemos, pela internet, um soneto para uma de suas musas prediletas, a apresentadora do programa Mais Você, Ana Maria Braga. Ficamos, impacientes, a aguardar resposta.
Mas a Insensatez já corroía o espírito do incauto obreiro das inspirações e só notamos quando o vimos perdido no labirinto cruel das palavras. Da calma, para o irrequieto distúrbio, foi só um pulo da cadeira: — Êpa!!! Tem alguém de plantão aqui, Seu Raimundo!
Lembrei-me de Allan Poe, assustado com um corvo. Perguntei: — Como? O que você falou mesmo, poeta? Ele aproveitou e do seu deserto de insanidade total, disparou: — Eles estão usando telepatia para me perseguirem! Deve ser o capiroto fantasiado de homem. Acham que sou o herdeiro do Rei da França. Minha cabeça está para estourar, não aguento mais! Estou em petição de miséria.
Continuou, por um bom tempo, com um  rosário confuso de insanidades súbitas: — O tio Duda, ele mesmo, passou três meses estudando entre os monges do Tibet. Trouxe uma droga poderosa para ligar a alma ao corpo. Ele dá uma de morto! É a droga da imortalidade. Sabido, ele, não? É mentira! Ele está morto como eu estou!  A vida inteira com essa criatura me perseguindo. Meu Deus, que horror!
O poeta sumiu, como os beija-flores que chegam e se vão. Preocupados, procuramos por toda cidade e nada. Desceu na correnteza do rio da ilusão, fugindo das suas perseguições imaginarias.
O perturbado amigo Zezinho, em sua rápida passagem pelo Templo da ALC, deixou-me com uma grande preocupação. Como o poeta, Friedrich Hölderlin, estou a imaginar as penúrias do porão das palavras e fico com meus botões a dizer: — Ai de mim! Como será quando o verão da insensatez florir, sem o aroma das poesias, na Ribeira do Poti?


Raimundo Cândido